Política na Corte

Ações de interesse do governo provocam cisão no Supremo

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27 de maio de 2005, 13h55

O Supremo Tribunal Federal (STF) vive uma situação de desconforto com a forma de atuação de ministros indicados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em processos envolvendo interesses políticos e econômicos do governo. Os quatro nomes definidos pelo presidente Lula para o tribunal — Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau — têm chamado a atenção por sucessivos pedidos de vista em julgamentos cruciais para o governo.

Nas últimas semanas, os ministros mais experientes, os chamados decanos da Corte, têm demonstrado publicamente a sua insatisfação pedindo para antecipar os seus votos quando há vistas dos “mais novos” em questões de interesse do Palácio do Planalto.

Esse desconforto ficou claro na semana passada quando o governo sofreu uma reviravolta na votação do STF sobre a elevação da Cofins — em uma ação que representa, no mínimo, R$ 18 bilhões para os cofres públicos. Cinco ministros votaram contra o aumento na contribuição e o governo ficou por apenas um voto de ser derrotado, o que só não ocorreu porque houve pedido de vista de um indicado por Lula, o ministro Eros Grau.

Após tomarem conhecimento do pedido de vista de Grau, os ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Carlos Velloso quiseram antecipar seus votos, pois já se consideravam preparados para votar. Essa prática contraria a liturgia do tribunal. Normalmente, os ministros do Supremo costumam aguardar o processo voltar do colega que pediu vista para se manifestarem somente depois disso. Trata-se de um procedimento de respeito ao colega e de reconhecimento de que ele poderá trazer argumentos novos ao plenário e influenciar a todos na formulação da decisão final. Mas, nas últimas semanas, tem ocorrido justamente o contrário.

No julgamento da Cofins, Marco Aurélio deu uma indireta aos colegas após o pedido de vista de Grau. “Vamos concluir esse julgamento hoje. Chega de angústia!”, reiterou o ministro. Ele e os outros três decanos do STF (Pertence, Mello e Velloso) adiantaram o voto a despeito do pedido de vista de Grau. Todos foram contrários à elevação da Cofins, em prejuízo ao governo.

No julgamento sobre a abertura da CPI dos Bingos, em 4 de maio passado, o “atropelo” ao pedido de vista de ministros “mais novos” ficou evidente. Celso de Mello fez um amplo voto (de mais de três horas de leitura) a favor do direito da minoria no Congresso Nacional de propor investigações. Mello defendeu a instalação da CPI. Eros Grau pediu vista imediatamente depois. Marco Aurélio resolveu, então, antecipar o seu voto. Pertence e Carlos Britto fizeram o mesmo. Os três acompanharam Celso de Mello: foram a favor da abertura da CPI dos Bingos — um tema delicado para o governo pois a investigação foi proposta após as denúncias de ligações suspeitas entre Waldomiro Diniz, então assessor do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e empresários do jogo do bicho.

Um quarto ministro, Gilmar Mendes, também pediu a antecipação de seu voto no caso da CPI dos Bingos. Foi impedido pelo presidente da Corte, Nelson Jobim: “Ministro! Ministro! Vamos aguardar!”, disse Jobim, em voz baixa, como num apelo à moderação e paciência. O processo ainda não voltou e, portanto, o governo ainda tem chances de evitar a derrota.

“Não havia necessidade de pedido de vista. O caso já havia sido muito debatido e todos conheciam o inteiro teor do processo”, ressaltou um ministro da Corte ao Valor.

Esse episódio inusitado ocorreu duas semanas depois de uma flagrante derrota do governo no STF. Em 20 de abril passado, os ministros julgaram a intervenção federal nos hospitais administrados pela Prefeitura do Rio de Janeiro. A ação tinha forte cunho político.

A intervenção nos hospitais do Rio foi decretada logo após o PFL anunciar a candidatura do prefeito carioca, Cesar Maia, à Presidência, no início desse ano. Na época, o ministro da Saúde, o petista Humberto Costa, estava fragilizado, com a cabeça a prêmio no processo de reforma ministerial.

Depois do lance espetacular da intervenção, o ministro ficou no cargo. O relator da ação, movida pela prefeitura do Rio, ministro Joaquim Barbosa, propôs uma solução de consenso. Ele sustentou que o decreto do presidente Lula não configurava intervenção no Rio, mas sim, um ato de natureza administrativa. A solução seria no sentido de o STF indicar modificações para o governo fazer no decreto. Se fosse aceita, a proposta de Barbosa evitaria a derrota total do governo no processo. Mas não foi.

O decano da Corte, Sepúlveda Pertence, fez uma advertência sobre a inconveniência da proposta de Joaquim Barbosa e ressaltou que a Constituição não permite intervenção federal nos municípios. Os demais ministros também fizeram duras críticas ao decreto. Após ver a consistência da posição dos colegas, Joaquim recuou e resolveu acompanhá-los. O governo acabou sendo derrotado por unanimidade no STF.

A influência desta estratégia dos ministros indicados por Lula foi visível na votação das regras do modelo do setor elétrico. O caso ainda está em tramitação e o governo conta com cinco votos favoráveis e apenas dois contrários. Os votos favoráveis foram proferidos pelos quatro ministros indicados por Lula, além de Jobim. Os votos contrários são dos ministros Gilmar Mendes e Sepúlveda Pertence. Eles concluíram que o governo não poderia ter fixado as normas do setor elétrico por medida provisória.

O julgamento do modelo do setor elétrico foi paralisado duas vezes. O primeiro pedido de vista foi de Joaquim Barbosa, em fevereiro de 2004. Quando Joaquim levou o seu voto, foi a vez de Eros Grau pedir vista, em agosto daquele ano. Com essas duas vistas, o governo ganhou um fôlego de mais de um ano na implementação do modelo, criando o fato consumado, inclusive com a transformação da MP em lei, no Congresso. Apenas em março passado o processo foi retomado. Mas, logo, interrompido novamente, dessa vez pela ministra Ellen Gracie, indicada para o STF por Fernando Henrique Cardoso.

Outra ação importante na área tributária, suspensa por pedido de vista, é a que trata de créditos de IPI na compra de matérias-primas tributadas sob alíquota zero ou não tributadas. Cezar Peluso interrompeu o julgamento em dezembro do ano passado. Ele chegou a se manifestar a favor do reconhecimento do crédito às empresas, mas recuou e pediu para rever a questão. O governo conta com seis votos favoráveis — o mínimo necessário para ganhar a causa — mas existe a possibilidade de mudança no resultado pois os ministros que já votaram podem a rigor alterar os seus votos até a conclusão do julgamento.

A impressão de que todos os ministros indicados por um governo costumam sempre apoiá-lo nos julgamentos é falsa. Isto não acontece sempre. Nelson Jobim costuma questionar a politização das discussões no STF que levam, segundo ele, a mídia a resumir as decisões da Corte como “contrárias” ou “favoráveis” ao governo. Para o presidente da Corte, este tipo de análise leva à “politização do Judiciário” e acaba, por tabela, a tirar muitas discussões jurídicas de seu campo técnico.

Indicado por Lula, o ministro Carlos Britto, por exemplo, tem se notabilizado por contrariar o governo em alguns processos importantes. No ano passado, Britto concedeu uma liminar ao governo do Paraná para suspender leilão da Agência Nacional do Petróleo (ANP). A decisão contrariou o governo federal, pois ameaçou investimentos da Petrobras.

O problema só foi resolvido com a intervenção de Jobim, que cassou a liminar de Britto. Depois, no julgamento do mérito da ação, Britto votou contra a Lei do Petróleo. Se o seu voto tivesse sido seguido pela maioria, os futuros leilões de gás e petróleo seriam amplamente prejudicados, pois as empresas que fossem disputá-los não teriam mais a certeza de que seriam proprietárias desses produtos.

No julgamento da reforma da Previdência, Britto também votou contra o governo. Ele defendeu o direito adquirido dos servidores a receberem seus vencimentos pelos critérios anteriores à Emenda Constitucional nº 41, aprovada após duras negociações do governo no Congresso. Mas, acabou vencido. Prevaleceu tese contrária, favorável ao governo, defendida por Cezar Peluso, também nomeado por Lula, de que o direito adquirido não é intocável e todos os servidores devem colaborar solidariamente para a sobrevivência do sistema. O governo, porém, acabou vitorioso por sete votos a quatro. Entre os três votos que o governo teve de diferença no resultado final, estavam os de três ministros indicados por Lula. Foram os “fiéis da balança”.

A exceção, entretanto, não anula a constatação de que o tribunal vive, neste momento, uma nova realidade no seu sistema de votação e debate.

Ministros rejeitam partidarização de seus votos

Os ministros indicados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o Supremo Tribunal Federal repudiam qualquer ligação entre os seus votos e o governo federal.

“Estou cansado de votar contra o governo e isso não me incomoda”, afirmou o ministro Joaquim Barbosa. “Evidentemente, eu repudio isso”, enfatizou Eros Grau.

Já Carlos Britto não descarta um sentimento de agradecimento ao presidente Lula por tê-lo nomeado para o STF, mas descarta o favorecimento. “Evidente que há uma vinculação. A gratidão pessoal existe, mas não posso permitir uma gratidão profissional”, explicou Britto.

Os ministros “mais novos” negam qualquer favorecimento ao governo quando pedem vista de processos de interesse político e econômico, adiando a decisão final. Eles disseram que seguem critérios para pedir vista e só o fazem quando têm dúvidas sobre a melhor decisão para o caso ou para trazer pontos novos aos demais colegas da Corte. Mas admitem que a antecipação dos votos dos “mais antigos”, antes que voltem com o processo ao qual pediram vistas, tem provocado situações de desconforto no tribunal.

Eros Grau e Carlos Britto reconhecem que esse procedimento é inusitado. “De fato, esses adiantamentos de votos estão fora da liturgia do tribunal”, disse Britto. “Havia uma liturgia no tribunal e, agora, há um certo desconforto”, afirmou Grau.

O ministro disse ter achado estranho quando os colegas mais antigos do plenário resolveram antecipar os seus votos em cima de seu pedido de vista no processo envolvendo o aumento da Cofins. “Confesso que achei estranhíssimo”, disse Grau. “Parece que estão achando que eu vou engavetar”, completou.

Grau explicou que foi surpreendido no caso da Cofins e, por isso, pediu vista. Ele não iria votar no caso pois havia voto do ministro Maurício Corrêa. Como Grau sucedeu Corrêa no STF, após a aposentadoria deste em maio de 2004, ele não poderia votar. Mas os ministros do Supremo resolveram analisar outras ações sobre a Cofins em que Corrêa não votou. Nessas, Grau podia votar, mas foi pego desprevenido.

Joaquim Barbosa minimizou o desconforto dos integrantes “mais novos” com os “mais antigos”. Segundo ele, em alguns processos, no ano passado, houve antecipação de votos devido à proximidade da data de aposentadoria de alguns ministros. Por outro lado, Barbosa admitiu que a posição dos “mais novos” de votar primeiro é incômoda. “É natural que os mais novos peçam mais vista”, completou Britto. “Os ministros não conhecem tão bem a jurisprudência, não participaram dos ‘leading cases’”, justificou ele.

Barbosa elogiou a atitude de Sepúlveda Pertence, que resolveu antecipar o voto no julgamento da intervenção do governo federal no Rio, relatado por ele. “Como decano, ele cumpre esse papel de clarificação do julgamento”, disse Barbosa.

Britto considerou natural a pouca paciência dos “mais antigos” com os “mais novos” em algumas discussões. “É possível que isso esteja ocorrendo. Pode sim haver uma condescendência menor”, afirmou.

*Reportagem publicada no jornal Valor Econômico

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