Desabafo oficial

Advogado faz críticas ácidas à Justiça em sustentação oral

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22 de maio de 2005, 12h38

O que seria apenas mais uma defesa em Mandado de Segurança julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo se transformou numa feroz crítica à Justiça. Numa sustentação oral, o advogado David Teixeira de Azevedo, vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da seccional paulista da OAB, soltou o verbo e expôs aos desembargadores da 4ª Câmara Criminal a quantas anda o crédito do Judiciário perante os advogados.

O Mandado de Segurança contestou a decisão do juiz que proibiu o advogado Francisco Lobo da Costa Ruiz de gravar uma audiência criminal. Os desembargadores também negaram o pedido mas, em contrapartida, ouviram um desabafo que, via de regra, é feito somente quando encerradas as sessões.

Na defesa (leia a íntegra abaixo), Azevedo discorreu sobre cada um dos pontos que tanto incomodam os advogados no cotidiano forense. “O Direito não está nos códigos, cujas leis são ignoradas. O Direito não está na ciência, cujos princípios são intencionalmente desconhecidos. O Direito não está nem na jurisprudência, cujas orientações mudam a cada instante. ‘Direito é o que a gente pede e o juiz dá’”, afirmou o advogado, citando a frase atribuída ao renomado processualista Sérgio Pitombo.

Entre as críticas, o excesso de prazo das prisões, como num Habeas Corpus em que um cliente seu “experimentava o cárcere há mais de 250 dias sem que nem mesmo iniciasse a instrução com produção de prova de acusação”. O HC foi negado e o cliente permaneceu preso.

O advogado atirou também na distância que o Poder Judiciário costuma guardar dos jurisdicionados. “Fico angustiado porque não posso entrar neste tribunal às dez horas da manhã para assistir a um julgamento. Eu, cidadão. Ao ingressar hoje no Tribunal perguntaram-me se sou advogado. Respondi que sim. Permitiram-me o ingresso. Se ostentasse a relevante e abastardada condição de cidadão, impediriam meu ingresso, porque somente após as 13 horas é que se permite ao homem comum a aproximação do Poder Judiciário”, disse.

Noutro trecho, Azevedo reforça a crítica de que “Direito é o que o juiz dá”. Segundo o advogado, durante o julgamento de outro Habeas Corpus, o desembargador afirmou que não estaria confortável para conceder o pedido. Para o representante da OAB-SP, “definitivamente, não pode a liberdade do cidadão demorar-se no maior ou menor conforto espiritual do magistrado”.

Para o advogado, “o princípio da legalidade inverteu-se. O cidadão precisa de ter lei permitindo. É tudo proibido a não ser que legalmente seja permitido”.

Leia a sustentação oral de David Teixeira de Azevedo

Meritíssimo Desembargador Hélio de Freitas, presidente desta egrégia Câmara, a quem agradeço a atenção e a deferência de prolongar o julgamento nesta manhã a fim de ser decidida matéria relevante argüida nesta ação constitucional.

Digníssimo desembargador Luis Soares de Melo, receba meus cumprimentos. Sei que Vossa Excelência com cuidado examinou a matéria. Também sei que já tem o seu convencimento e esta sustentação oral pretende trazer alguns subsídios para a completa certeza da justeza e da justiça deste writ.

Excelentíssimo Desembargador Euvaldo Schaib, estendo-lhe igualmente minhas homenagens, as quais alcançam também o ilustre procurador Geraldo Silveira, desde logo o elogiando pelas brilhantes observações e sustentações orais proferidas nesta manhã.

Minha qualidade nesta tribuna é tripla: compareço como advogado, cuja máxima honra é representar a Ordem dos advogados do Brasil, mas compareço entristecido, desanimado, desencorajado. Compareço como cidadão, mas como cidadão aflito e angustiado, porque minhas esperanças parecem residir apenas do Supremo Tribunal Federal. Compareço na qualidade de professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, a ministrar aula no 5º ano. Mas compareço desencantado. É nessa tríplice condição que envergo a beca e assomo a tribuna.

O professor está desencantado. Desencanto da ciência e desencanto do direito feito praxe, porquanto a cada momento de minha aula, após ensinar os alunos um princípio dogmático e os vetores de democracia que o condicionam, sou obrigado a observar que o princípio da ciência jurídico-penal e a linhagem político-criminal apresentada “na prática é diferente”; que os tribunais não têm julgado assim; que as conquistas seculares da ciência jurídico-penal, da dogmática jurídica, responsáveis pela certeza na aplicação da lei, não estão mais valendo.

Assim é, p.ex., o (re) trabalho operado sobre o princípio da razoabilidade. Criado originalmente por Recaséns Siches para limitar e opor fronteiras ao poder de intervenção do estado, foi pervertido e degenerado de modo a justificar a prisão sem termo, a contrição da liberdade sem limite. Tudo é razoável, a extensa prisão é razoável em razão do processo com vários réus, da complexidade da matéria, da sobrecarga do judiciário, etc, etc. Recentemente em um julgamento de ordem de habeas corpus em que um cliente experimentava o cárcere há mais de 250 dias sem que nem mesmo iniciasse a instrução com produção de prova de acusação, ao ser indeferido o mandamus com fundamento no princípio da razoabilidade, pretendi um aditamento para que o Tribunal fixasse o prazo razoável da prisão: 360 dias, 720 dias, 1540 dias? O Tribunal disse ser defeso ingressar na matéria, como se não pudesse conceder ordem de habeas corpus de ofício!


Como cidadão fico angustiado porque não sei quanto tempo ficarei no cárcere e quanto tempo prevalecerá o argumento fundamentado no distorcido princípio da razoabilidade e se os requisitos da prisão preventiva de fato precisam de ser atendidos para haver cerceamento de minha liberdade. Fico angustiado porque não posso entrar neste tribunal às dez horas da manhã para assistir a um julgamento. Eu, cidadão. Ao ingressar hoje no Tribunal perguntaram-me se sou advogado. Respondi que sim. Permitiram-me o ingresso. Se ostentasse a relevante e abastardada condição de cidadão, impediriam meu ingresso, porque somente após as 13 horas é que se permite ao homem comum a aproximação do Poder Judiciário. No Fórum da Barra Funda é pior: mesmo no horário de funcionamento pleno, o cidadão não tem acesso às Varas Criminais. Somente o acusado, o advogado e as testemunhas! Este julgamento é público tanto quanto o das Varas Criminais e, portanto, o povo pode aqui ingressar para festejar a justiça. Mas o povo está sendo alijado da Justiça, as portas estão com estrondo sendo trancadas. Numa oportunidade, ao ir sustentar no Tribunal de Alçada Criminal – cujos trabalhos começavam às nove horas e trinta minutos – meu estagiário foi impedido de subir ao 13º andar onde estão os plenários, sob pretexto do ingresso ser privativo aos advogados e funcionários. Meu estagiário ficou embaixo com uma legião de cidadãos. Falei com o presidente ou vice-presidente, o ilustre magistrado Navarro, apontando a violação do princípio da publicidade e a nulidade, decorrente de tal violação, de todos os julgamentos. O cidadão tem o direito de chegar próximo ao Poder Judiciário para conhecer-lhe a intimidade, conhecer de perto as decisões jurisdicionais e a motivação delas, para ajuizar do acerto e justiça dos provimentos, e, o mais relevante, para fiscalizar o exercício da jurisdição. Como cidadão me preocupo, e muito, porque a prisão cautelar já não tem de obedecer a fundamentos, mas a convencimentos muito íntimos e ao humor do julgador. Hoje, neste Tribunal, ouvi como fundamentação da custódia cautelar em uma ordem de habeas corpus: – “Não estou confortável de conceder a ordem, de pôr na rua o paciente”. Pergunto: que é isto? Não valem mais os pressupostos de cautelaridade que são objetivos? Definitivamente, não pode a liberdade do cidadão demorar-se no maior ou menor conforto espiritual do magistrado!

E como advogado estou combalido, desanimado, depois de quase 25 anos de advocacia. Quando passo no detector de metal e sofro revista no Fórum, como se sobre mim e sobre uma legião de advogados pairasse sempre a sombra da suspeita, como se fôramos bandidos; quando um juiz indefere quarenta e oito pedidos de liberdade provisória no plantão na semana passada, todos com o mesmo fundamento. E quando este Tribunal nas ordens de habeas corpus subseqüentes indefere os 48 pedidos de liminares com o mesmo despacho vazio e sem fundamentação. Quando o ilustre vice-presidente deste egrégio Tribunal não recebe advogados mesmo sendo afirmado haver direito expresso na lei e haver delito de abuso de autoridade na recusa de receber o advogado: “- Ele não recebe advogado, doutor! – Mas é direito meu (art. 7o )! É crime não receber! “Não recebe!”Que esperança pode haver? Que esperança pode haver? Eu trouxe um texto do Dr. Roberto Romano, titular de Ética e Política, que escreveu sobre a “filosofia e as instituições”, “filosofia e a ciência humana” e tratou do Poder Judiciário.

Neste trabalho ele adverte de como o segredo e o sigilo sempre significaram o exercício desregrado de um poder. Parece ser assim mesmo. Como diz o apóstolo João: “as coisas não vêm à luz pra que as obras más não sejam manifestas!” E é bem por isso que os regimes totalitários, os fundamentos do nacional-socialismo, do nazismo, sempre foram caracterizados pelo sigilo e pelo segredo. Agora não dão vista para advogado tenha ou não tenha procuração nos autos. É a inquisição. “- Não doutor, está sob segredo, sob sigilo. O senhor não pode ter acesso”. Impetra-se mandado de segurança e o Tribunal indefere a liminar, porquanto existe um urgente interesse público no segredo. Tudo como se não houvesse ingente interesse público na garantia do direito de defesa!

Temos de cumprir, na realidade, um rito de passagem nos tribunais de segundo grau para alcançar o Supremo Tribunal Federal, que afirmou o direito incondicionado do advogado de acesso aos autos. Parece que somente no Supremo são produzidos votos lúcidos! O Ministro Marco Aurélio afirmava estar assustado e constrangido por ter de corrigir votos e manifestações dos tribunais inferiores com explícita violação dos princípios e fundamentos constitucionais garantidores. Isso combali; isso abate; isso desespera. Desespera quando o Poder Judiciário é feito loteria e não se pode afirmar ao cidadão com direito muito líquido e muito certo o sucesso da demanda. O cliente chega ao escritório e pergunta: “Doutor eu vou ganhar?” Não tenho a mínima idéia. Pode ser que sim, pode ser que não. “O que diz a lei?” Você vai ganhar. Mas eu vou ganhar? Não sei.


Desgraçadamente tenho de concordar com o professor Pitombo, processualista de renome, saudoso professor da Universidade de São Paulo, que jocosamente deu uma definição de direito odiosa e por ele odiada, contudo agora me parecendo verdadeira: “Direito é o que a gente pede e o juiz dá”. O Direito não está nos códigos, cujas leis são ignoradas. O Direito não está na ciência, cujos princípios são intencionalmente desconhecidos. O Direito não está nem na jurisprudência, cujas orientações mudam a cada instante. “Direito é o que a gente pede e o juiz dá”.

Qual é a hipótese destes autos? É a mais simples, a mais singela, a de menor indagação jurídica possível: ingresso do advogado com gravador no Fórum e a possibilidade de gravar a audiência. No caso deste remédio, o advogado quis ingressar com um gravador no Fórum. Impedem-lhe a passagem. “O senhor não vai entrar”. Diz ele, “Eu vou porque tenho direito”! Entra, vêm os policiais e ele reforça, “Não me toquem! Eu tenho o DIREITO de entrar com este gravador aqui!” Impetra-se mandado de segurança e responde uma das autoridades coatoras, o diretor do fórum: “Eu nunca proibi o ingresso de gravador no fórum”.

Com isto, o Ministério Público aponta neste aspecto haver o mandamus perdido objeto. A segunda autoridade coatora – o juiz da Vara – sustentou a falta de amparo legal para a realização da gravação da audiência. O advogado afirmou ao magistrado que iria gravar a audiência. O magistrado: “eu indefiro”. Mas porque indefere? “Falta de amparo legal”. Mas como falta de amparo legal? Eu não tenho que ter amparo legal para me permitir gravar. Isto faz parte do princípio da publicidade do processo. “Indefiro”. Mas como indefere?! Não há proibição!

Hoje em dia tudo é proibido e a permissão tem de ser expressa. O princípio da legalidade inverteu-se. O cidadão precisa de ter lei permitindo. É tudo proibido a não ser que legalmente seja permitido. No entanto, no caso específico de gravação de audiência há lei permitindo (art. 417 do CPC). O Código de Processo Civil é explícito (e que subsidiariamente aplica-se à disciplina processual penal por força do art. 3º do CPP): “o depoimento datilografado, registrado sob taquigrafia, estenotipia e outros meios idôneos de documentação, será assinado pelo juiz, pelo depoente, pelos procuradores, facultando-se às partes a sua gravação”. A permissão é expressa e explícita! É legal; é previsto em Lei! O que diz a lei dos Juizados Especiais Criminais? Permite a gravação!

Pelo princípio da legalidade, gravam-se os depoimentos, os atos processuais, eles estão lá, gravados! O art. 792 do Código de Processo Penal afirma que as audiências, sessões, serão todas públicas, salvo um urgente interesse publico. A exceção é quando elas se farão em segredo. Uma extensão da publicidade é poder levar de qualquer modo, por qualquer meio, tudo o se desenvolve na intimidade e nas entranhas do Judiciário. E os julgamentos, principalmente nos EUA, não são transmitidos pela televisão? Seria de muita valia democraticamente se este julgamento, hoje, estivesse sendo transmitido pelas redes de televisão. Os julgamentos e debates na Suprema Corte brasileira são públicas e passam nos meios de comunicação social. As audiências, portanto, são também públicas e devem alcançar o povo pelos meios de comunicação os mais amplos possíveis. Sim! Ora, se é direito do advogado, se é direito das partes gravar, provindo este direito de uma norma processual civil que incide, coabita com o princípio da publicidade no processo penal, nada há que justifique o impedimento.

O advogado tem de ter direito de exercer sua profissão. Como custos legis, detém o direito e o dever de fiscalizar. Se ele não puder ter essa segurança no exercício de sua profissão e na defesa de seu cliente, como fará? Como exercer a profissão, a velar pela regularidade formal do processo se não se pode impugnar um termo por exemplo lavrado por estenotipia.

Recentemente, em uma audiência de plenário do júri levado a termo por estenotipia, impugnei um quesito de participação, assim redigido: “fulano…contribuiu de qualquer modo ao crime?” Eu impugnei. Isto é genérico demais, e permite a regressão ao infinito! Requeri a especificação, ao que o magistrado corrigiu: “Contribuiu de qualquer modo emprestando o veículo”. Novamente impugnei. – Excelência, eu também quero impugnar, porque o jurado fica entre duas alternativas: (i) contribuiu de qualquer modo, e, exemplificativamente, (ii) emprestando o veículo. Por favor, excelência, eu peço que seja: “contribuiu para o crime emprestando o veículo”. “Não, doutor,…” Ah, já que indeferiu, então consigne…

Depois um mês, um mês e meio, dezenas e dezenas de audiências do magistrado, outras tantas do advogado, a Ata é datilografada e minha segunda impugnação dela não consta. Apresentou uma petição dizendo haver alguma inexatidão e omissão, visto que havia impugnado. “Não! Afirmou o magistrado. “A ata retrata fielmente os termos da impugnação”. Vim para este tribunal. Conseguiu a realização de novo júri – em que a cliente foi absolvida – não pela nulidade flagrante mas porque a condenação fora absolutamente contrária à prova dos autos.

O advogado deve ter instrumentos para o exercício de sua profissão, para registro dos sucessos da audiência e isso permite o Código de Processo Civil, aplicável ao Processo Penal.

João, o apóstolo João, o apóstolo do amor, no capítulo 3, ver. 21, fala uma coisa muito interessante e com isso gostaria de terminar esta minha sustentação oral: “Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que suas obras sejam manifestas. Porque são feitas em Deus”. O Poder Judiciário sempre se confundiu historicamente com a divindade. O poder que V. Exas. detêm é o jus vitae et necis. O direito de vida e morte cívica e moral. Os senhores dão vida ou os senhores sepultam. Isso é um poder divino. A obra do judiciário tem de estar na luz. A obra de V.Exas. deve estar na luz.

Porque que as obras dos juizes em geral devem estar na luz. Peço a concessão do Mandado de Segurança para que se faculte a este advogado, e será útil esta decisão também porque será facultado a todos os advogados a gravação e o exercício de seu mister.

Digo aos senhores desembargadores: não é advogado que quer gravar audiência para “pegar” juiz, não se trata de nada disso não. O anseio do advogado, hoje em dia, em gravar uma ou outra audiência, especialmente as audiências complexas, reside principalmente na estenotipia. Estenotipia que antes era uma faculdade: “O advogado permite que seja feita a estenotipia?” O advogado permitia e ela era feita. Agora não adianta o advogado se opor. Ele tem de assinar o termo no escuro e confiar na verdadeira judicatura de um escrevente. Porque este último, na consignação das palavras, as faz do modo que quer, de boa ou má fé, confundindo termos e idéias. Na redação do termo, na redação da ata, no que de conteúdo eles terão, no que fizer o estenotipista é que estará a verdadeira judicatura. Já não serão vossas excelência os operadores do Direito. Muito obrigado.

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