Remédio legal

MP-SP quer derrubar lei que proíbe pílula do dia seguinte

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18 de maio de 2005, 17h30

O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, entrou com ação contra a lei que proíbe a distribuição da pílula do dia seguinte na rede de saúde pública de São José dos Campos, interior do estado. Segundo o procurador, a Lei 6.800/05, aprovada pela Câmara Municipal da cidade, é inconstitucional.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de liminar apresentada ao Tribunal de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho alega que os vereadores invadiram a competência da União e dos estados de formular e executar “políticas globais de atendimento e procedimentos referentes à Saúde”.

O procurador-geral afirma também que, por se tratar de lei de iniciativa dos vereadores, ela violou o princípio constitucional da separação de poderes.

Em relação à discussão religiosa que envolve a questão, Pinho sustentou: “Ao que indicam as circunstâncias do caso, houve sim motivos outros, especialmente ligados a credo religioso, com a indicação de que tais medicamentos são abortivos. Ocorre que, sem qualquer fundamentação científica mais séria, apenas a convicção religiosa não pode se transmudar em dever (lei); o Estado brasileiro é laico e garante aos nacionais os seus direitos independentemente de convicção religiosa”.

Leia a íntegra da ação

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, no exercício da atribuição prevista no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar n.º 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2º, e 129, inciso IV, da Constituição Federal e artigo 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, vem, respeitosamente, promover perante esse Colendo Tribunal de Justiça a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em relação à Lei Municipal n.º 6.800, de 12 de maio de 2005, do Município de São José dos Campos, que “Dispõe sobre a proibição de distribuir os medicamentos de anticoncepção de emergência pela Rede Pública de Saúde do Município e dá outras providências”, por malferir os artigos 1.º, 5.º, 24, 111, 144, 219, parágrafo único e 233, V, da Constituição do Estado, pelos motivos e fundamentos a seguir expostos.

1. A Lei n.º 6.800, de 12 de maio de 2005, do Município de São José dos Campos, tem a seguinte redação:

LEI N.° 6.800, DE 12 DE MAIO DE 2005

DISPÕE SOBRE A PROIBIÇÃO DE DISTRIBUIR OS MEDICAMENTOS DE ANTICONCEPÇÃO DE EMERGÊNCIA PELA REDE PÚBLICA DE SAÚDE DO MUNICÍPIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS

“Art. 1.º Fica proibido distribuir medicamentos de “anticoncepção de emergência” (AE), também conhecieos como “pílula do dia seguinte” (PDS), pela Rede Pública de Saúde e entidades por ela mantida ou conveniada.

Art. 2.º O Poder Executivo regulamentará a presente lei, no prazo másixom de 30 dias.

Art. 3.º Esta lei entrerá em vigor na dada da sua publicação, regovadas as disposições em contrário”

(autoria: Vereador Lino Bispo e outros)

2. Como se vê, o dispositivo legal — de iniciativa de vereadores — malfere vários princípios constitucionais eis que:

a) disciplinou assunto que se insere na competência legislativa (concorrente) da União e dos Estados Federados, (art. 24, XII – proteção e defesa da saúde), bem assim na competência material da União e dos Estados para a formulação e execução de políticas globais de atendimento e procedimentos referentes à Saúde (art. 200, I, da Constituição da República, artigos 219, parágrafo único e art. 223, V, da Constituição do Estado de São Paulo), desrespeitando os artigos 1.º, 24, 111 e 144, 219, parágrafo único e 223, V, da Constituição do Estado; e

b) sendo lei é de iniciativa de vereadores, violou o princípio da separação de poderes (art. 5.º da Constituição do Estado).

De fato, assim dispõem as referidas normas constitucionais:

“Art. 1º – O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

Art. 5º – São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 2º – Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 – criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

2 – criação das Secretarias de Estado

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 219 – A saúde é direito de todos e dever do Estado.

Parágrafo único – Os Poderes Públicos Estadual e Municipal garantirão o direito à saúde mediante:

1 – políticas sociais, econômicas e ambientais que visem ao bem-estar físico, mental e social do indivíduo e da coletividade e à redução do risco de doenças e outros agravos;

Art. 223 – Compete ao sistema único de saúde, nos termos da lei, além de outras atribuições:

(…)

V – a organização, fiscalização e controle da produção e distribuição dos componentes farmacêuticos básicos, medicamentos, produtos químicos, biotecnológicos, imunobiológicos, hemoderivados e outros de interesse para a saúde, facilitando à população o acesso a eles (…)”

Os parâmetros da Constituição da República referidos pela Constituição do Estado (art. 1.º e 144) são:

“Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos (…)

Art. 24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;

Art. 200 – Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos (…)”


3. A Lei Municipal n.º 6.800, de 12 de maio de 2005, do Município de São José dos Campos, invadiu, inconstitucionalmente, área de competência legislativa da União e dos Estados (legislar sobre políticas públicas de saúde) e da competência material dos mesmos, ou seja, a de formular e executar as políticas públicas globais em termos de Saúde Pública. Tratou de assunto que, sequer de longe, pode-se afirmar como de ”interesse local”: A Constituição da República é clara, ao prever que aos Municípios somente:

‘Art. 30 – Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (…)’

4. A distribuição de pílulas chamadas de ”anticoncepção de emergência” é tema que não se insere na cláusula do ”interesse local” (art. 30, I, da Constituição da República) sendo, como é obvio, um assunto de interesse geral ou nacional. Sequer competência suplementar, no caso, dispõe o Município (art. 30, II, da Constituição da República), pois, como explica Fernanda Dias Menezes de Almeida, ”…só cabe a suplementação em assuntos que digam respeito ao interesse local. Nenhum sentido haveria, por exemplo, em o Município suplementar legislação federal relativa ao comércio exterior ou relativa à nacionalidade ou naturalização.” (”Competências na Constituição de 1988”, 2.ª ed., São Paulo, Atlas, p. 156).

Sobremais, não se pode esquecer que o Município somente pode suplementar a competência privativa de outros entes federados, quando necessário ao exercício de sua competência material privativa, o que não é o caso, obviamente. Diz a mesma autora que:

‘(…) terá cabimento a legislação municipal suplementar quando o exercício da competência material privativa do Município depender da observância de normação heterônoma. Isto poderá ocorrer em relação à legislação federal e à legislação estadual. Quanto à legislação federal, o Município complementará ou suprirá normas gerais da União ao exercer, por exemplo, a competência privativa de instituir os próprios tributos. De fato, a instituição de tributos, por qualquer das esferas, se deve pautar pelas normas gerais de Direito Tributário postas pela União. Nesse caso, o Município estabelecerá as normas tributárias específicas (competência complementar) e poderá até mesmo editar normas gerais, admitindo-se, em tese, que à União se omita em expedi-las (competência supletiva). É possível ainda a legislação suplementar do Município nas hipóteses em que, para o atendimento de competência material privativa, o Município tenha que observar lei federal que à União caiba editar no exercício de sua competência legislativa plena.’

E tanto a União como o Estado de São Paulo exerceram sua competência legislativa na matéria. Somente na órbita da União existe a Lei Federal n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, a dispor sobre as ações, coordenadas e planejadas do Sistema Único de Saúde – SUS, bem assim a Lei Federal n.º 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a criar o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

5. O medicamento citado nesta ação (”anticoncepcional de emergência”) teve sua comercialização autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ao que indicam as circunstâncias do caso, houve sim motivos outros, especialmente ligados a credo religioso, com a indicação de que tais medicamentos são abortivos. Ocorre que, sem qualquer fundamentação científica mais séria, apenas a convicção religiosa não pode se transmudar em dever (lei); o Estado brasileiro é laico e garante aos nacionais os seus direitos independentemente de convicção religiosa (art. 5.º, VIII, da Constituição da República: ”ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa…”).

Ademais, a Constituição da República incentiva a paternidade responsável, estando claro que compete ”…ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito” (art. 226, §7.º, da Constituição da República).

6. O Município invadiu tema sobre o qual não dispõe de competência consittucional. REINHOLD ZIPPELIUS escreve sobre a estrutura de Estado como o nosso que: “O Estado Federal, é, pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas.’ Apud, Celso Bastos e Ives G. Martins, Comentários à Constituição do Brasil, p. 107, Saraiva, São Paulo, 3.º vol. Tomo I).


Para HELY LOPES MEIRELLES: ‘(…) estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa — e inútil, por incompleta — a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local, é de se assinalar, a título exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local.” (Direito Municipal Brasileiro, p. 135, Malheiros, 12.ª ed.).

7. Por outro lado, poderiam os autores da Constituição do Estado, no exercício do Poder Constituinte Decorrente, repetir, enfadonhamente, as normas de reprodução obrigatória da Constituição da República, mas preferiram eles, acertadamente diga-se, fórmula sintética do art. 144, determinando, como não poderia deixar de ser, que os princípios estabelecidos na Constituição Federal (somente princípios, não regras) devessem ser observados obrigatoriamente pelos Municípios. Não foi outra a saída encontrada pelos Constituintes nacionais, por exemplo, com o art. 25 da Constituição da República, a determinar que os Estados se organizem segundo os princípios da Constituição da República, sem explicitá-los, também enfadonhamente. Assim:

“Art. 25 – Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.”

Veja-se a correspondência deste artigo com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo (“Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”).

Sabe-se que o princípio federativo — adotado no art. 1.º da Constituição do Estado de São Paulo — é ”…a rigor, um grande sistema de repartição de competências’, sendo esta ‘a chave da estrutura do poder federal’ ou ‘a grande questão do federalismo’, e ainda ‘um problema tipicamente do estado federal”’ (RAUL MACHADO HORTA E DURAND, citados por FERNANDA DIAS MENEZES DE ALMEIDA).

Com KLAUS STERN ve-se que: ‘Ia Ley Fundamental, contiene, sin embargo, si no Derecho del Estado de los Länder, si Derecho del Estado para los Länder; por ejemplo, en los arts. 20, 21, 28, 31, 33 y 35 LFB. El Derecho del Estado Federal es, ademas también, Derecho del Estado Total, es decir, de Ia Federación y de los Länder, que conjuntamente constituyen Ia República Federal de Alemania. La Constitución de los Estados miembros no está fijada exclusivamente en sus textos constitucionales. Sobre ellas inciden determinaciones de Ia Constitución Federal. «Ambos elementos conjuntamente forman Ia Constitución del Land». Esta particularidad se basa en el principio federal. Este entrecruzamiento encuentra su expresión más clara en Ia Confianza federal. (Derecho Del Estado de la Republica Federal Alemana, p. 120, CEC, Madrid, 1987).

A doutrina já resolveu a questão dos princípios que devem os Estados observar (o que, obviamente, aplica-se aos Municípios, já agora por força do art. 144 da Constituição do Estado). Ao comentar sobre o conteúdo do art. 25 da Constituição da República, a direcionar as competências dos Estados (como o art. 144 da Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO refere-se à existência das ‘regras de preordenação institucional’, ‘regras de extensão normativa’ e ‘regras de subordinação normativa’, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, nestes termos:


“(…) Ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que siga determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções). Exemplo de tais regras de subordinação normativa é o que decorre do art. 37 da Constituição brasileira, que preside à atuação da administração pública direta ou indireta. Da mesma forma, o art. 39 da Constituição direciona diretamente a legislação dos Estados (bem como do Distrito Federal e dos Municípios) quanto aos servidores públicos. Observe-se que esta subordinação normativa pode ser direta ou indireta. Ela é direta (e imediata) quando deflui, sem intermediário, da Constituição Federal e obriga desde logo o legislador. É indireta (e mediata) quando se faz por meio da legislação federal obrigatória para os Estados. Esta “subordinação normativa indireta” ocorre no campo da competência legislativa concorrente da União e dos Estados (bem como do Distrito Federal), que enuncia o art. 24 da Constituição brasileira. Com efeito, este artigo confere à União a competência de “estabelecer normas gerais” (art. 24, § 1.°). Conseqüentemente, a estas normas gerais se subordinam as que os Estados editarem em vista de suas peculiaridades (art. 24, §§ 2.°, 3.° e 4.°).” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. I, p. 197, Saraiva, 1997).

8. A norma da Constituição da República já predefiniu a legislação municipal negativamente proibindo que adote certas normas ou soluções. Claro que, apenas por não repetir explicitamente os princípios da Constituição da República, não significa que os Municípios fiquem livres para — em uma curiosa situação então — dispor de mais poderes constituintes que o Estado (já que não se discute que, quando a este, seu Poder Constituinte Decorrente é limitado). Trata-se o artigo 144 da Constituição do Estado de norma de repetição obrigatória, vale dizer:

“…as normas centrais da Constituição Federal, tenham elas natureza de princípios constitucionais, de princípios estabelecidos ou de normas de preordenação, afetam a liberdade criadora do Poder Constituinte Estadual e acentuam o caráter derivado desse poder. Como consequência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo das normas de preordenação A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do estado, por um processo de transplantação. A norma de reprodução não é, para os fins da autonomia do Estado-membro, simples norma de imitação, frequentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de imitação exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação traduz a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional. (Raul Machado Horta, Poder constituinte do estado-membro, RDP, 88/5).

A repartição de competências é a ‘chave de abóbada’ do sistema federal; conspurcada aquela conspurca-se este. É o que ocorre no caso dos autos, com a violação, pelo Município, de princípios constitucionais sensíveis.

9. Por outro lado, a Lei Municipal n.º 6.800, de 12 de maio de 2005, do Município de São José dos Campos é de iniciativa de vereador, violando, igualmente, o princípio da separação de poderes, eis que disciplina e confere atribuições a órgãos do serviço público — aqueles integrantes da Rede Pública de Saúde — sendo que, neste caso, a iniciativa é privativa do Executivo. Decidiu, a propósito, o Colendo Supremo Tribunal Federal:

‘AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.719-1 – ES

RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 7.157, de 30 de abril de 2002, do Estado do Espírito Santo. Votou o Presidente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Marco Aurélio, Presidente, e Moreira Alves, e, neste julgamento, o Senhor Ministro Nelson Jobim. Presidência do Senhor Ministro limar Galvão, VicePresidente. Plenário, 20.03.2003.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. – É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. – As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. – Precedentes do STF.

IV – Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.’


A administração da cidade, sabe-se, incumbe ao que, modernamente, chama-se de ‘Governo’, e que tem na lei seu mais relevante instrumento, participando, sempre, o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos.

Proibir a distribuição de um determinado medicamento ou droga, ato pontual e específico, não está na competência da Câmara Municipal, que sempre legisla ”in genere”. O Legislativo não emite ”ordens” ao Poder Executivo, no seu campo específico de atuação (princípio da ”reserva de administração”). Ao que pretende chegar a Câmara Municipal citada, melhor se denominaria como um sistema diretorial, não presidencial de governo, que se caracteriza, aquele, essencialmente, ”…pelo fato de que o órgão político e governamental é a Assembléia (Parlamento, Corpo Legislativo). Esta, na verdade, é quem toma as decisões de política geral, sob a forma de diretrizes (além de votar as leis), como é quem elege uma Comissão (Diretório), a qual desempenha as tarefas do Executivo, juridicamente preso às diretivas emanadas da Câmara. Esse ‘Legislativo’ é, assim, e mais que tudo, um Poder ‘Deliberativo’. O Diretório, ou seja, o conjunto de ministros fica incumbido de executar as decisões desse Poder, cada um no campo de sua competência. Não tem ele, consequentemente, política própria. Seus membros são, como elegantemente se diz, comissários da Assembléia, obrigados a fazer o que esta determinar.’

Há competências claras do Poder Executivo; o princípio da legalidade deve ser, ultrapassado de há muito o liberalismo, bem compreendido.

Ademais, a falta de razoabilidade da medida prevista na lei é clara. Ora, sob inspiração de credo religioso — sem qualquer maior demonstração empírica — proibir a distribuição de medicamento em Município, sendo que o mesmo produto está à venda livremente nas farmácias do mesmo Município, não é, sequer minimamente, razoável.

10. DA SUSPENSÃO LIMINAR

Tendo em vista a imediata vigência da lei, autêntica superfetação de legislação já existente, a impedir a distribuição de medicamentos, necessária a liminar. Quando se trata do controle normativo abstrato e desde que haja a cumulativa satisfação dos requisitos concernentes ao fumus boni juris e ao periculum in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão de eficácia de dispositivos legais impugnados, até o advento da decisão final.

Neste caso, tais requisitos se fazem presentes, de modo que está translúcida a conveniência de sustar, provisoriamente, a eficácia dos dispositivos questionados. De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182). É o que se requer.

11. Ante o exposto, é a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, para, com a juntada das informações pertinentes do senhor Prefeito Municipal e Câmara de Vereadores de São José dos Campos, seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 6.800, de 12 de maio de 2005, do Município de São José dos Campos, que “Dispõe sobre a proibição de distribuir os medicamentos de anticoncepção de emergência pela Rede Pública de Saúde do Município e dá outra providências”, por malferir os artigos 1.º, 5.º, 24, 111, 144, 219, parágrafo único e 233, V, da Constituição do Estado, com as comunicações de estilo para sua expulsão do ordenamento jurídico.

RODRIGO CÉSAR REBELLO PINHO

Procurador-Geral de Justiça

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