Direitos humanos

Federalização de crimes só é válida em último caso

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

17 de maio de 2005, 20h42

“Justiça tardia não é Justiça, é injustiça manifesta” (Rui Barbosa)

“A demora na administração da justiça constitui, na verdade, pura denegação de justiça”, conforme conhecida parêmia, atribuída ao Conselheiro De la Bruyère” (José Rogério Cruz e Tucci, em Tempo e processo).

A emenda constitucional n. 45, que reformou parcialmente o Judiciário brasileiro, foi promulgada em dezembro de 2004 e, desde então, tem rendido várias e boas polêmicas. Uma das mais interessantes diz respeito ao incidente de deslocamento de competência, instituto criado por meio da introdução de um novo inciso e de um novo parágrafo ao artigo 109 da Constituição Federal, que cuida da competência dos juízes federais.

Com efeito, o artigo 109, inciso V-A, passou a prever que também compete aos juízes federais processar e julgar “as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo”. E o parágrafo 5º estatui:

“§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.

É justamente nesse parágrafo que estaria uma relevante e controvertida questão constitucional, no entendimento da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) (1) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Tanto que esta última, no início de maio de 2005, ajuizou a ADIN 3486/DF, com pedido de medida cautelar, para que o STF venha a declarar a inconstitucionalidade da EC 45/04 exatamente na parte em que instituiu o incidente de deslocamento de competência (IDC). Foi sorteado relator da ação o ministro Cezar Peluso, oriundo da magistratura paulista.

Várias organizações não-governamentais de direitos humanos e organismos internacionais, assim como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) (2), são favoráveis ao incidente de deslocamento. A expectativa é de que o Supremo Tribunal Federal defina os limites e pressupostos do IDC, mas rejeite a ADIN. Aliás, a posição da AMB não surpreende, já que, durante a tramitação da PEC 29/00 (Reforma do Judiciário), a associação de magistrados sugeriu emenda para suprimir o IDC do texto original e, alternativamente, tentou modificar o incidente para que só fosse possível sua instauração durante a fase pré-processual.

A seguir, analisaremos algumas características do incidente de deslocamento de competência e apontaremos razões pelas quais esse novo e importante instituto deve ser mantido no ordenamento jurídico.

Incidente de deslocamento de competência

É antiga a luta de organizações de defesa da pessoa humana para instituir no Brasil a federalização dos crimes contra os direitos humanos, o que resultou na inclusão da proposta no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) de 1996. No espaço legislativo, a primeira iniciativa materializou-se com a PEC 368-A/96, do Poder Executivo, que acabou sendo incorporada à PEC 96/92 (mais tarde PEC 29/00, no Senado), da Reforma do Judiciário, convertendo-se, oito anos depois, na EC 45/04.

A construção da tese da federalização dos delitos contra os direitos humanos encontrou substrato na escalada da violência e da impunidade em várias regiões do País. São exemplos os massacres, chacinas e crimes de mando ocorridos em Eldorado dos Carajás, Vigário Geral, Carandiru, Parauapebas, Xapuri, Candelária e Queimados, só para citar alguns dos mais recentes. A atuação de grupos de extermínio em várias cidades brasileiras, somada à impunidade generalizada, fez crescer as pressões internacionais sobre a União, responsável, no plano externo (artigo 21, inciso I, da Constituição Federal), pelo cumprimento das obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos.

Esse cenário negativo acabou por ser o catalizador que faltava para o efetivo estabelecimento de uma nova vertente processual para a defesa dos direitos da pessoa humana, quando violados no Brasil, em consonância com a internacionalização do direito humanitário e com a admissão da personalidade jurídica internacional da pessoa humana.

Pode-se conceituar o IDC – Incidente de Deslocamento de Competência como um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos (3) em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte. Cuida-se de ferramenta processual criada para assegurar um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e para preservar um dos princípios pelos quais se guia o País nas suas relações internacionais e obviamente também no plano interno: a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF).


Sendo também, como me parece, uma garantia individual, o IDC tem aplicação imediata, por força do artigo 5º, §1º, da Constituição Republicana. Essa sua natureza decorre da sua própria finalidade, qual seja, a efetiva prestação da jurisdição nos casos de crimes contra os direitos humanos, servindo primordialmente aos interesses da vítima e da sociedade, no ideal de segurança jurídica e de reparação, mas também prestando-se a resguardar a posição jurídica de autores de delitos, no que diz respeito à duração razoável do processo (4) e ao respeito aos seus direitos fundamentais por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal.

Alvo de severas críticas, o incidente de deslocamento não revela, como alguns querem ver, qualquer nota de desconfiança preconcebida quanto à atuação da Justiça das unidades da Federação (5). Trata-se tão-somente de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (6), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (7), a Organização dos Estados Americanos e, por via indireta, o Tribunal Penal Internacional) (8) e de efetiva proteção aos direitos humanos em nosso território, em virtude da internacionalização do direito humanitário e das obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo País, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José, 1969), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o recente Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (9), e as convenções da ONU contra a tortura e para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por exemplo.

A federalização de crimes desta ordem encontra respaldo no direito comparado (10). Segundo Francisco Rezek (11), “Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações”.

Como instituto processual penal, o IDC deve ser visto em consonância com o novo inciso LXXVIII do artigo 5º da CF, também introduzido pela EC 45/04, que a todos assegura, no âmbito judicial e administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Tais dispositivos coexistem no plano genético com a regra do §3º do artigo 5º da Constituição, que equiparou a emendas constitucionais os tratados de direitos humanos que venham a ser aprovados, em dois turnos de votação, por maioria qualificada de três quintos dos membros das duas casas do Congresso.

Neste sentido, o deslocamento de causas de competência da Justiça estadual para a Justiça federal é justamente mais um desses meios que garantem a celeridade da tramitação de processos. Trata-se de uma garantia individual posta à disposição tanto de acusados quanto de vítimas de delitos. Em caso de arquivamentos indevidos, omissão ou demora injustificável na prestação jurisdicional em causas de direitos humanos, podem os interessados provocar a federalização, dirigindo-se ao Procurador Geral da República, que, então, decidirá sobre a instauração do incidente, não sem antes realizar uma apuração preliminar.

De fato, cabe ao Procurador-Geral da República, na condição de promotor natural, em qualquer fase da investigação (12) ou do processo (13), suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, quando presentes três pressupostos objetivos: a) prática de grave crime contra os direitos humanos; b) possibilidade de responsabilização internacional do Brasil; c) omissão, leniência, excessiva demora, conluio ou conivência dos órgãos de persecução criminal do Estado-membro ou do Distrito Federal (14).

Citando a professora FLÁVIA PIOVESAN (15), o Procurador-Geral da República CLÁUDIO FONTELES afirma “[…] a possibilidade de se promover o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, verificando como preenchido os requisitos acima mencionados na excepcional situação de demora injustificada na investigação, processo ou julgamento de graves violações de direitos humanos ou quando haja fundado receito de comprometimento da apuração dos fatos ou da atuação da Justiça local, argumentando que tal hipótese ‘está em absoluta consonância com a sistemática processual vigente (vide o instituto do desaforamento), como também com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos (que admite seja um caso submetido à apreciação de organismos internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no dever de proteger os direitos humanos’)” (16).


Embora ainda não exista norma regimental regulamentando o procedimento do novo instituto, a Resolução n. 06/05 da Presidência do Superior Tribunal de Justiça, determinou que o incidente deve ser apreciado pela 3ª Seção do STJ, composta pelos ministros da 5ª e 6ª Turmas do tribunal, entre os quais se escolherá o relator. Ouvida a autoridade judiciária estadual suscitada (17), o procedimento será submetido a julgamento colegiado.

Entendemos que deve ser conferida oportunidade ao Ministério Público Estadual e ao réu ou investigado para se manifestarem no incidente, em nome do contraditório, da ampla defesa (art. 5º, LV, CF) e do devido processo legal, porque são ou serão partes na relação jurídica processual estadual. Afinal, no que diz respeito ao Ministério Público Estadual, que até então era o dominus litis, ter-se-á a supressão da atribuição constitucional para a persecução (art. 129, I, CF), razão pela qual deverá ser ouvido para exercer a defesa de seu espaço de atuação (18). E, no que se refere ao suposto autor do delito, deve-se assegurar em todos os eventos processuais a oportunidade de manifestação e contra-argumentação, já que está em jogo o seu jus libertatis. Não seria demasiado permitir oportunidade para que as vítimas ou seus representantes legais se fizessem ouvir no incidente, nos mesmos moldes em que se admite a assistência de acusação nas ações penais públicas (19).

Em síntese, o IDC pode ser conceituado como:

a) incidente processual penal objetivo, de base constitucional, para modificação horizontal (20) da competência criminal em causas relativas a direitos humanos (ratione materiae);

b) garantia individual de efetividade da Justiça Criminal e de razoável duração do processo penal;

c) mecanismo de sucessão ou substituição da atividade da Justiça dos Estados ou do Distrito Federal pela Justiça da União, dentro do esquema de federalismo cooperativo (21), nos casos de violação a direitos humanos;

d) instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União (22);

e) incidente processual que tem em mira a redução da impunidade e a concreta proteção dos direitos humanos.

3. O IDC, a ação interventiva e outros “deslocamentos”

Não é nova no sistema constitucional brasileiro a possibilidade de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal para a garantia dos direitos humanos.

Em situação similar à autorizada pelo IDC, o artigo 34, inciso VII, alínea ‘b’, da Constituição Federal permite à União intervir nos Estados e no Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana. Conforme o artigo 36, inciso III, a decretação da intervenção dependerá de provimento pelo STF de representação do Procurador-Geral da República.

Como se percebe, o incidente de deslocamento é uma forma alternativa, mais sutil e menos traumática, de intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal, para atender aos mesmos objetivos já consagrados no artigo 34 da Constituição. Na verdade, não se tem propriamente uma intervenção. Trata-se de atuação complementar da Justiça Federal, em virtude de negativa ou retardo de prestação jurisdicional pelos entes subnacionais. Da mesma forma que na intervenção federal, o legitimado para provocar o incidente é o Procurador-Geral da República, que deve dirigir-se, todavia, ao Superior Tribunal de Justiça para a fixação final da competência. Esta sempre será federal em potência. Vale dizer: doravante todos os crimes contra os direitos humanos previstos em tratados internacionais são virtualmente de competência federal. Basta que estejam presentes os pressupostos do deslocamento, para que se dê a substituição da jurisdição estadual/distrital pela federal. Cuida-se então de uma assunção de competência condicionada ao atendimento de certos requisitos, ordenada pelo Superior Tribunal de Justiça.

A opção do constituinte derivado pelo STJ (e não pelo STF) no julgamento do IDC deve-se ao próprio regime de distribuição de competências dos tribunais superiores na Constituição de 1988. Pois o STJ, tribunal encarregado da uniformização da interpretação da lei federal em todo o País, é a corte competente para decidir conflitos de competência entre juízes vinculados a tribunais diversos (artigo 105, inciso I, alínea ‘d’, da CF). E é exatamente uma espécie de “conflito” de competência que o STJ decide quando julga o incidente de deslocamento, pois, nos casos de grave violação a direitos humanos previstos em tratados internacionais, há uma competência virtual ou potencial da Justiça Federal que se pospõe à competência tradicional da Justiça Estadual, para esses mesmos delitos, caso esta se revele ineficiente.


Verificada a similitude do IDC com o sistema de intervenção federal, é válido realçar que o novo incidente tem outros precursores constitucionais. De fato, por força do artigo 144, §1º, inciso I, da Constituição, a Polícia Federal, que é a polícia judiciária da União, pode apurar “infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme” (23). O texto deste dispositivo atende ao dever internacional de persecução (24) dos crimes previstos em tratados internacionais, dado o evidente interesse da União na preservação de sua responsabilidade perante a comunidade das nações.

A Lei n. 10.446/02, no seu artigo 1º, inciso III, regulamentou essa atribuição da Polícia Federal, concorrente com a da Polícia Civil, de investigar infrações penais “relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte”. Note-se que aqui não se trata de substituição da atuação da Polícia Civil pela investigação da Polícia Federal, mas de persecução conjunta por ambas as corporações policiais em dois inquéritos simultâneos. Coisa bem diferente se dá no incidente de deslocamento de competência, em que o Ministério Público Federal e a Justiça Federal efetivamente substituem os órgãos estaduais respectivos, já que não faria sentido permitir duas ações penais com o mesmo objeto (bis in idem).

Pode-se ainda argumentar, em favor do IDC, que há no sistema jurídico brasileiro outros instrumentos processuais que acarretam modificações, seja de atribuição seja de competência.

É o caso da ação penal privada subsidiária, garantia individual que se coaduna com o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (artigo 5º, XXXV, CF) (25), e está prevista no artigo 29 do Código de Processo Penal. Assim, em caso de inércia absoluta do Ministério Público, faculta-se ao particular ofendido ou a seu representante legal, manejar queixa-crime para a persecução criminal de delitos originariamente de ação penal pública. O caso é, pois, de substituição de legitimado. Como aqui estamos diante de um direito fundamental talhado para garantir o acesso à Justiça e à prestação jurisdicional, ninguém ousa inquiná-lo de violador do princípio do promotor natural ou do princípio acusatório. Nesta medida, a ação privada subsidiária da pública é um dos meios que se presta a garantir a célere tramitação dos feitos criminais, diante da demora injustificada ou da inércia do Ministério Público em promover a ação penal.

Situação de claro deslocamento de competência da justiça estadual para a federal ocorre nos casos de conexão entre crimes de competência federal e crimes de competência estadual. A questão está hoje sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça no enunciado n. 122:

“Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do Código de Processo Penal”.

Com isso, o STJ pacificou o entendimento de que, no concurso de “jurisdições” (26) de igual categoria (juiz de Direito vs. juiz federal), a competência federal prepondera sobre a competência estadual. A primeira é expressa na Constituição, ao passo que a segunda é residual, embora mais ampla.

Ainda no que concerne à competência, as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos são defesas processuais tradicionais, que ocorrem no curso de ações penais e cíveis. Tais instrumentos processuais jamais foram contestados ao argumento de que ofendem o princípio do juiz natural (art. 5º, LVIII, CF). Quantas são as exceções de incompetência (em razão da função, material [27] e territorial), de suspeição e de impedimento que alteram o juízo ou afastam juízes antes acreditados como “naturais”? Evidentemente, essas ferramentas de processo, como também o IDC, não afetam a segurança jurídica na atividade jurisdicional, pelo simples fato de alteraram o juízo tido como competente. E isto é óbvio, porque todos os órgãos jurisdicionais envolvidos, tanto nas velhas excções como no novo incidente de deslocamento, são pré-existentes e pré-estabelecidos, não existindo qualquer juízo ex post factum (28) ou tribunal de exceção. Como antes se disse, o juiz federal que receberá a causa deslocada é também juiz natural porque, desde o início, segundo a própria Constituição brasileira, aquele juízo era virtualmente ou condicionalmente competente para os processos relativos a graves violações a direitos humanos. Trata-se então de juiz natural potencial.

Ainda pode-se argumentar mais. Do mesmo modo que nas exceções processuais e nos conflitos de competência, também não há violação aos princípios da segurança jurídica e do juiz natural nos casos de remoção ex officio de magistrados. Tais remoções, como é óbvio, atendem ao interesse público, e nenhum réu dirá que a substituição de um determinado magistrado, por razões de ordem pública, ofende qualquer garantia individual. Neste passo, não se pode esquecer que a EC 45/04 conferiu ao Conselho Nacional de Justiça a faculdade de remover magistrados (artigo 103-B, §4º, inciso III, da CF), em decisão administrativa, sempre que presentes graves razões de ordem pública. Logo, não há porque temer a mera substituição de um juiz estadual por juiz federal, presentes determinados requisitos, e em situações excepcionais, também motivadas pelo interesse público e estribadas em princípios fundamentais do Estado brasileiro, como são a dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos humanos.


Mais oposição e mobilização deveria haver contra a instituição de listas precárias de juízes substitutos e de juízes eleitorais, elaboradas sem qualquer parâmetro objetivo, numa prática que enseja fixações indevidas e alterações arbitrárias e imotivadas de juiz natural em determinados Estados. Trata-se, aí sim, de praxe deletéria e claramente inconstitucional que permite a alguns Tribunais literalmente escolher a dedo certos magistrados, fora da lista regular de substituição ou abandonando a premissa territorial, em regra para atender a critérios pouco ou nada republicanos.

Por fim, ainda no que se refere ao princípio do juiz natural, há que se considerar que o objetivo do incidente de deslocamento é proteger direitos fundamentais das vítimas e assegurar o interesse público da persecução criminal, para redução da impunidade. O instituto presta-se também, como antes mencionado, à proteção de autores de delitos, já condenados ou não, e que venham a ter seus direitos individuais gravemente violados pelo Estado. Neste sentido, ainda que se pudesse falar em afastamento do princípio do juiz natural (o que não é efetivamente o caso), a adequada ponderação dos interesses contrapostos permitiria perfeita harmonização do aparente conflito, em favor do reconhecimento da constitucionalidade do deslocamento da competência, já que tudo é feito de forma a ampliar a efetividade da Justiça, reduzir a impunidade e garantir direitos da pessoa humana. Em síntese, o constituinte derivado não reduziu a esfera de proteção dos direitos do cidadão, mas sim a ampliou por meio de um novo instrumento garantista, o incidente de deslocamento de competência.

Crime em Anapu

Foi em razão do homicídio da religiosa Dorothy Stang que pela primeira vez o Procurador-Geral da República fez uso do incidente de deslocamento de competência.

O crime hediondo ocorrido em Anapu, no oeste do Pará, mobilizou a sociedade e mais uma vez colocou o Brasil nas manchetes de jornais estrangeiros e na mira de organismos internacionais de defesa de direitos humanos.

Dorothy Stang foi morta em 12 de fevereiro de 2005 a tiros de revólver. Em função da Lei n. 10.446/02, dois inquéritos policiais foram instaurados para apurar o fato, um da Polícia Civil do Pará e outro pela Polícia Federal. Em 7 de março de 2005, o Ministério Público do Estado do Pará, representado pelo promotor de Justiça Lauro Freitas, denunciou Vitalmiro Bastos Moura como mandante do delito. Amair Feijoli foi denunciado como intermediário. Rayfran Neves Salles foi acusado de ser o autor dos disparos e Clodoaldo Batista foi denunciado como co-autor. A denúncia, por homicídio qualificado, foi recebida pelo juiz de Direito Lucas Do Carmo Jesus, da comarca de Pacajá, que abrange o Município de Anapu/PA.

Embora a Polícia Civil, o Ministério Público Estadual e a Justiça do Pará tenham agido com rapidez invulgar, em 4 de março de 2005, pouco antes do oferecimento da denúncia (29) pela Promotoria de Pacajá, o Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, provocou o STJ para a definição da competência. E o fez, por considerar que o delito de mando cometido contra a referida ativista teria representado uma grave violação a direitos humanos e teria sido motivado por um longo conflito fundiário coletivo no Pará, em torno da implantação do PDS – Plano de Desenvolvimento Sustentável.

O IDC 1/PA foi distribuído ao ministro Arnaldo Esteves Lima, integrante da 3ª Seção do STJ, a quem cabe a competência para dirimir a questão, em virtude da Resolução STJ n. 06/05 e do artigo 9º, §3º, I, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Como se trata de crime doloso contra a vida, a competência foi fixada originalmente no tribunal do júri da comarca de Pacajá. Caso o STJ determine o deslocamento, o processo será julgado pelo júri federal da subseção de Marabá/PA, naturalmente não havendo supressão da competência do tribunal popular.

Marcante no despacho do relator foi sua opção por assemelhar o IDC ao desaforamento (30) e determinar que o suscitado, a Justiça Estadual paraense, prestasse informações para a instrução do incidente, apresentado pela PGR (31). A resposta do suscitado foi apresentada pela presidência do Tribunal de Justiça do Pará em 22 de março de 2005. O Ministério Público estadual também apresentou suas razões no incidente. Ambos os órgãos estaduais contrapuseram-se ao deslocamento pretendido pelo Ministério Público Federal (32).

Deslocando ou não a competência no caso de Anapu, queremos crer que o STJ colherá a oportunidade para balizar o novo instituto, esclarecendo o que vem a ser uma grave violação a direitos humanos e quais delitos podem ser considerados crimes contra os direitos humanos para efeito do artigo 109, §5º, da Constituição.

Parece claro que essa parametrização judicial não deixará de considerar como modelo os crimes hediondos e os a eles equiparados, assim como cuidará de pôr em relevo que crimes contra os direitos humanos são aquelas condutas, já típicas conforme a lei brasileira e que também violem bens jurídicos tutelados em convenções internacionais humanitárias de que o Brasil seja parte.


Como o instrumento também visa a dar maior rapidez à persecução, não há porque o STJ determinar a suspensão de ação penal estadual que já tenha sido proposta, como se dá nos casos de conflito positivo de competência (art. 116, §2º, CPP). Destarte, o inquérito e a ação criminal estaduais sempre deverão tramitar normalmente até o julgamento do IDC, aproveitando-se, sempre que possível, todos os atos praticados no juízo de origem, em nome dos princípios celeridade, da economia e da conservação. Evidentemente, por cautela, deve-se permitir tanto ao Ministério Público Federal quanto à Polícia Federal (33) a realização de investigações pré-processuais (34) simultâneas à apuração estadual para evitar o perecimento de provas e assegurar a viabilidade e o sucesso de futura ação penal federal.

Também será prudente estabelecer a excepcionalidade do IDC, como instrumento de definição cabal da competência da Justiça Federal — que, nestes casos, é potencial, complementar e subsidiária (35), por assim dizer —, para o julgamento de crimes desta espécie. O deslocamento se dará apenas quando a Polícia Civil, o Ministério Público e o Judiciário estaduais forem de todo omissos, inertes, lenientes ou coniventes com uma situação de flagrante e grave violação a direitos humanos. Vale dizer, só caberá o deslocamento quando, por similitude com a ação penal privada subsidiária, uma determinada noticia criminis for “engavetada” e quando se revelar a inoperância, deliberada ou não, dos órgãos estaduais de persecução criminal e de prestação jurisdicional. Tal federalização ocorrerá sempre em função do interesse público na punição de crimes contra os direitos humanos.

Neste contexto, o IDC é também um novo mecanismo para garantir a efetividade do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, segundo a máxima nec delicta maneant impunita. Assim, em certos casos, não serão somente o juiz de Direito e a Procuradoria-Geral de Justiça que realizarão o controle do referido princípio (art. 28 do CPP). Em caso de arquivamentos indevidos ou de encerramento de investigações em gabinete, poderá a Procuradoria-Geral da República obter o deslocamento da competência da causa para a Justiça Federal, cabendo então ao Ministério Público Federal, respeitado o princípio do promotor natural, verificar a adequação e a regularidade do arquivamento promovido perante o juízo estadual.

Dever de persecução

Por atender a finalidades tão relevantes, é que o IDC merece aplausos de diversas organizações não-governamentais. Para a Associação Juízes para a Democracia (AJD), “A medida se justifica em face da competência subsidiária das Cortes internacionais, que prevêem, nas hipóteses de esgotamento das vias internas ou de injustificável atraso na prestação jurisdicional, condição de procedibilidade das queixas apresentadas aos órgãos internacionais de controle e proteção de direitos humanos” (36). Em outras palavras, o IDC representa mais um via interna para obter a responsabilização, perante tribunais brasileiros, de autores de crimes contra os direitos humanos, evitando a sujeição do País a vexames e condenações internacionais por retardo ou denegação de justiça (37).

Segundo noção corrente no direito internacional público, por denegação de justiça, entende-se a inexistência de tribunais regulares, ou de vias normais de acesso à justiça; a recusa de julgar, de parte da autoridade competente; o retardamento injustificável da decisão judicial, com violação da lei processual interna, etc.

A necessidade de esgotamento dos recursos internos é uma regra geral para abrir-se acesso a cortes internacionais. Somente permite-se o processamento de petições perante tais tribunais transnacionais quando não mais existem meios para a obtenção da prestação jurisdicional no Estado soberano requerido, ou quando as vias judiciais existentes são comprovadamente ineficientes ou facciosas. Cuida-se, de fato, de uma condição de procedibilidade, cujo implemento, em relação ao Brasil, passa a ser mais operoso em virtude da possibilidade de utilização do incidente de deslocamento de competência (um caminho a mais), no plano nacional.

Por isto, a federalização dos crimes contra os direitos humanos responde à necessidade de cumprir o dever internacional de persecução criminal. Sendo signatário de convenções internacionais que lhe impõem a investigação, o processo e o julgamento de crimes cometidos sob sua jurisdição, o Brasil, como Estado-federal, não tinha como preservar sua responsabilidade por omissão, perante a comunidade das nações soberanas, especialmente quando graves crimes previstos em tratados eram entregues exclusivamente à competência do Judiciário estadual. As omissões dos Estados recaiam sobre a União.

Por meio do IDC, o Brasil poderá cumprir seu dever internacional de persecução em qualquer caso, seja nos crimes de competência originária da Justiça Federal, seja nos casos de competência deslocada da Justiça Estadual. A inércia, retardo, corrupção ou ineficiência desta não terá o condão de acarretar imediata (38) e indiretamente a responsabilidade internacional do Brasil. Com isto, também reduzir-se-á a impunidade.


Impõe-se, notar, todavia, em homenagem aos princípios da presunção de inocência e da verdade real, assim como em respeito às diversas feições do princípio favor rei, que não há obviamente qualquer obrigação internacional de condenação. Evidentemente, o dever de persecução recomenda investigação rigorosa, acompanhamento por órgão de acusação independente e julgamento por juiz imparcial (fair trial), sem desvirtuamento do sistema processual (due process of law), que repudia condenações sem justa causa, justiçamentos sumários, condenações espúrias, baseadas em provas ilicitamente obtidas, ou decretos desprovidos de suporte probatório suficiente ao juízo de certeza. Não se admite “justiça para inglês ver”.

A obrigação internacional de investigação e processamento de delitos previstos em documentos internacionais passou a ser ainda mais relevante em virtude da adesão do País ao Tratado de Roma, de 1998. Ao associar-se a esta convenção, o Brasil submete-se (rectius: seus cidadãos) à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI), em funcionamento desde 2002 em Haia, na Holanda. Para reforçar este vínculo, a EC 45/04 previu expressamente, no §4º do artigo 5º, a referida sujeição, o que significa que, em caso de denegação de justiça no Brasil, causas sujeitas à lei penal brasileira e previstas no Estatuto do TPI poderão vir a ser julgadas na corte penal internacional, conforme o artigo 5º e 17 do Estatuto, ora incorporado ao ordenamento jurídico nacional por força do Decreto n. 4388/02. A jurisdição do TPI guarda, em relação à jurisdição do Brasil, a mesma nota de complementaridade que existe entre a Justiça Federal e a Estadual, por força do incidente de deslocamento de competência.

A competência federal

Independentemente do IDC, já se podia antever, no regime anterior à emenda constitucional n. 45/2004, hipótese de competência da Justiça Federal para o julgamento de graves crimes contra os direitos humanos que comprometessem a responsabilidade internacional do Brasil.

De fato, conforme o inciso V do artigo 109, são competentes os juízes federais para julgar “os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”. Ou seja, os crimes previstos em tratados internacionais (a regra tem em mira principalmente as convenções internacionais de direitos humanos e os tratados sobre crime organizado) já eram de competência federal antes da emenda 45, desde que os fatos tivessem “tocado” o território brasileiro e o de outro país, em qualquer dos momentos do iter criminis (do início da execução à consumação, incluída a tentativa). Trata-se da clássica hipótese dos crimes à distância (39).

Neste particular, a Constituição Federal de 1967, no seu artigo 119, inciso V, previa que aos juízes federais competia processar e julgar “[…] os crimes previstos em tratado ou convenção internacional e os cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada, a competência da Justiça Militar”. Como se vê, não existia a limitação ora vigente no art. 109, V, da Constituição, que hoje engloba tão-somente os crimes à distância, consumados ou tentados, previstos em tratados internacionais.

No entanto, mesmo riscando-se do mapa o IDC e deixando-se de lado os crimes à distância, ainda seria possível estabelecer, em consonância com a tradição jurídica brasileira e com o direito comparado, a competência federal para o julgamento de crimes delineados em tratados internacionais. É que, numa situação bem mais abrangente que a dos atuais incisos V e V-A, o inciso IV do artigo 109 prevê que são de competência da Justiça Federal os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União. Quem negará que os crimes instituídos em tratados internacionais de direitos humanos, que podem, por si mesmos, acarretar a responsabilização internacional do País (representado pela União) não interessam a essa mesma União?

“IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.

Difícil é admitir a hipótese contrária, dado que o interesse da União é evidente! Afinal, é a União quem mantém relações com Estados estrangeiros e firma compromissos com organizações internacionais. É o Estado brasileiro que tem personalidade jurídica internacional e responde perante a comunidade das nações por violação de suas obrigações convencionais. É a União quem legisla privativamente sobre direito penal e é também este ente que personifica os ideais republicanos traçados nos artigos 1º e 4º da Constituição.


Nesta mesma linha, que acentua a competência federal originária in casu, o inciso III do artigo 109 da Constituição também permite implicitamente a federalização de crimes contra os direitos humanos, na medida em que atribui aos juízes federais a competência para julgar “as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional”. Parece razoável que, não havendo adjetivo posposto às causas mencionadas no inciso, tanto podem ser de competência federal as causas cíveis quanto às criminais, que estejam fundadas em tratado internacional.

Daí percebe-se que a federalização dos crimes contra os direitos humanos nada mais é do que a consagração de ideais expressos e implícitos na própria Constituição Federal, antes mesmo das modificações promovidas pela Reforma do Judiciário, novidade que em nada ofende o federalismo cooperativo vigente no País e que confirma a complementaridade das jurisdições estadual e federal, em nome do acesso à justiça e do combate à impunidade.

Traços comuns

A ação direta de inconstitucionalidade proposta pela AMB está fundada em argumentos razoáveis. Mas algumas alegações são inconsistentes, como a de que o IDC subtrairia competência do júri popular. Nada disto ocorre, porquanto o deslocamento atinge apenas o juiz togado processante, preservando-se a constituição do conselho de sentença no momento oportuno (judicium causae). Ora, não há um povo “estadual” e um povo “federal”. O Povo é um só. Nos crimes dolosos contra a vida eventualmente deslocados por meio de IDC, o “povo” que julgará os fatos será o mesmo, o da comarca estadual ou o da subseção federal em que se deu o fato, conforme o critério territorial. Enfim, nada se tira do júri (art. 5º, XXXVIII, da CF).

Todavia, na mesma ADIN, dão o que pensar as alegações relacionadas à legalidade estrita (pela falta de prévia definição do que é “grave” violação e do que são “crimes contra os direitos humanos”), a suposta ofensa ao princípio da segurança jurídica (intensificada pela discricionaridade do Procurador-Geral da República na formulação ou não do pedido de deslocamento) e, principalmente, a alegada violação ao princípio do juiz natural, que seria modificado ex post factum.

Reforçando o que antes dissemos, mesmo aí não temos dúvidas de que há precedentes já incorporados ao nosso sistema e que afastam a alegação de ofensa ao princípio do juiz natural, como é o caso do desaforamento, em que as partes ou o juiz — no caso de suspeita de parcialidade do júri ou de dúvida sobre a segurança pessoal do acusado, ou ainda por razão de ordem pública —, ou somente as partes — no caso de demora do julgamento causada pelo juiz — podem requerer ao Tribunal de Justiça ou ao Tribunal Regional Federal o deslocamento da competência para a realização da sessão plenária de julgamento, respectivamente, em outra comarca estadual ou em outra circunscrição judiciária federal.

Mutatis mutandi, o mesmo acontece no incidente de federalização do julgamento de crimes contra os direitos humanos, com a só exceção de que o incidente de deslocamento é provocado apenas pelo Ministério Público Federal, presentado pelo Procurador-Geral da República. Veja-se o que dispõe o Código de Processo Penal, a respeito do desaforamento:

“Art. 424. Se o interesse da ordem pública o reclamar, ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou sobre a segurança pessoal do réu, o Tribunal de Apelação, a requerimento de qualquer das partes ou mediante representação do juiz, e ouvido sempre o procurador-geral, poderá desaforar o julgamento para comarca ou termo próximo, onde não subsistam aqueles motivos, após informação do juiz, se a medida não tiver sido solicitada, de ofício, por ele próprio.

“Parágrafo único. O Tribunal de Apelação poderá ainda, a requerimento do réu ou do Ministério Público, determinar o desaforamento, se o julgamento não se realizar no período de 1 (um) ano, contado do recebimento do libelo, desde que para a demora não haja concorrido o réu ou a defesa”.

O Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei n. 1002/69) também prevê, por motivos idênticos, casos de desaforamento na justiça castrense, a saber:

“Art. 109. O desaforamento do processo poderá ocorrer:

a) no interesse da ordem pública, da Justiça ou da disciplina militar;

b) em benefício da segurança pessoal do acusado;

c) pela impossibilidade de se constituir o Conselho de Justiça ou quando a dificuldade de constituí-lo ou mantê-lo retarde demasiadamente o curso do processo”.

Os pressupostos do desaforamento na legislação penal comum e na especial acabam sendo muito semelhantes aos do IDC: falta de isenção da Justiça Estadual ou negativa de justiça, por exemplo, assim como a excessiva demora do julgamento. A idéia subjacente nos dispositivos e retratada na expressão “interesse da ordem pública” é semelhante nos três casos: evitar a impunidade ou a denegação de justiça. Os efeitos da aplicação do desaforamento e do deslocamento são simétricos, isto é, em ambos os casos ocorre remessa da ação penal a outra vara para julgamento perante juízo isento, ou sob a presidência de juiz togado diligente e expedito (40).


Portanto, estamos certos de que, se o desaforamento é constitucional, o incidente de deslocamento também o é. E, com o perdão do trocadilho, é um desaforo dizer o contrário, mormente quando se sabe que jamais houve oposição a tão longevo e útil instituto. De fato, na sua atual feição, o desaforamento existe há mais de sessenta anos no CPP e sequer está previsto ou “autorizado” na Constituição.

Como dito, um dos motivos do desaforamento é justamente a presença do “interesse da ordem pública” ou, no processo penal militar, também o “interesse da Justiça”, expressões vagas que mereceriam a mesma crítica dirigida pela AMB ao pressuposto de “grave violação” dos direitos humanos. Aliás, não se perca de vista que a efetiva punição de graves violações a direitos da pessoa humana é interesse público dos mais relevantes. É também ideal de justiça, ao qual estão, sem dúvida, associadas a AMB e a Conamp.

Vale pontuar que o desaforamento, como medida processual penal modificadora de competência, pode ocorrer também quando houver demora injustificada, não provocada pela defesa, para a realização da sessão de julgamento pelo tribunal popular. O prazo para a designação do plenário é de um ano e é contado da data do recebimento do libelo ofertado pelo Ministério Público. Disto se pode concluir que o desaforamento, do mesmo modo que o IDC, é um dos meios que garantem a tramitação célere do processo, conforme pretende o novo inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição. Havendo demora injustificada para a realização do júri, pode ocorrer o desaforamento para outra comarca ou circunscrição. Havendo demora injustificada para o processo ou julgamento de crimes contra os direitos humanos, pode ocorrer o deslocamento de competência da Justiça dos Estados ou do Distrito Federal para a Justiça Federal.

Gênero indefinido

A ADIN 3486, proposta pela AMB, tocou num ponto importante para o sucesso da federalização dos crimes contra os direitos humanos: os seus limites. Deve-se evitar a vulgarização do incidente. Para isto, é necessário estabelecer um rol de infrações penais que se amolde aos objetivos do instituto.

À falta de uma definição normativa clara a respeito do que são crimes contra os direitos humanos, podemos imaginar algumas classificações.

Em função de um estudo conjunto realizado por procuradores da República e por procuradores do Estado de São Paulo (41) e acréscimos posteriores, costuma-se asseverar que um rol ideal de crimes deste gênero abarcaria os crimes dolosos contra a vida; os de extorsão mediante seqüestro; os relacionados a conflitos fundiários coletivos; os crimes praticados mediante violência contra a pessoa e motivados por preconceitos racial, social, sexual, religioso ou de opinião; os contra a liberdade sexual; os delitos contra crianças, adolescentes, deficientes físicos e idosos; os delitos contra índios; os crimes de tortura, terrorismo, trabalho escravo, tráfico de pessoas e genocídio, sempre que tais infrações forem praticadas por organizações criminosas ou por grupos de extermínio ou por agentes estatais ou com o concurso destes.

A professora Flávia Piovesan concorda que muitos dos delitos acima apontados devem mesmo integrar o rol de crimes contra os direitos humanos e assinala que “A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir. Todavia, paradoxalmente, em face da sistemática vigente, a União, ao mesmo tempo em que detém a responsabilidade internacional, não detém a responsabilidade nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processar e punir a violação, pela qual internacionalmente estará convocada a responder” (42) .

O rol acima, todavia, corre o risco de não ser completo e enfrenta a crítica de não ter base clara em lei penal. Trata-se de uma construção doutrinária.

Numa outra classificação possível, e partindo do clássico agrupamento temático do Código Penal brasileiro, os crimes contra os direitos humanos seriam todos os delitos contra a pessoa, englobando os crimes contra a vida, contra a integridade física e contra a liberdade individual. Obviamente, nem todos as infrações penais do Título I da Parte Especial do Código Penal são necessariamente crimes contra os direitos humanos. E outros delitos desta categoria, como os que ofendem a liberdade sexual, não estão ali catalogados entre os crimes contra a pessoa. Além disso, esta opção desconsidera a substancial legislação extravagante. Por esta razão, não nos parece este um bom critério de seleção.


Ainda na tentativa de encontrar um porto seguro nesse mar de possibilidades, poderiam ser considerados graves crimes contra os direitos humanos os crimes hediondos, já definidos na Lei n. 8.072/90, com a redação que lhe deu a Lei n. 8.930/94. Destarte, para colmatar a lacuna do artigo 109, §5º, da Constituição, teríamos o seguinte rol: homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado; latrocínio; extorsão qualificada pela morte; extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada; estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado morte; falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; genocídio; tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo. De igual modo, este agrupamento não é completo e pode restringir a federalização de causas relacionados ao racismo e ao tráfico de pessoas, por exemplo. De outra banda, entre os crimes hediondos estão delitos que não se afeiçoam à categoria de crimes contra os direitos humanos.

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional (ETPI) poderia ser invocado para fornecer outras pistas sobre a conceituação de crimes contra os direitos humanos no Brasil, na medida em que o Tratado de Roma tipificou diversos delitos que ficam sujeitos à jurisdição do tribunal e que indubitavelmente são infrações contra os direitos humanos. Segundo o artigo 5º, §1º, alíneas ‘a’ a ‘d’, do ETPI, incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto n. 4388/02, são graves crimes internacionais o delito de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. Tais infrações penais, definidas por norma internacional, foram integradas ao ordenamento jurídico brasileiro, com força de lei federal ordinária, já que o Tratado de Roma recebeu a adesão do Brasil antes da promulgação da EC 45/04 (43).

Assim, na forma do artigo 7º do ETPI, constitui crime contra a humanidade “qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”: homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população; prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; tortura; agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional; desaparecimento forçado de pessoas; crime de apartheid; outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

No entanto, a especificidade dos crimes tipificados no exíguo código penal do TPI e a difícil compreensão ou caracterização de muitos dos tipos ali mencionados não recomenda sua adoção como parâmetro no caso do IDC.

Portanto, faltando lei definidora e na busca por um critério de corte com algum grau de razoabilidade, de objetividade e adequação, temos como apropriado considerar crimes contra os direitos humanos, para os efeitos do §5º do artigo 109 da Constituição, todos os delitos previstos nos tratados internacionais de direito humanitário de que o Brasil seja parte, sempre que a vítima for uma pessoa humana ou um grupo de pessoas. Nesta categoria, estão inseridos os crimes de tortura, de genocídio, de racismo, os delitos contra crianças e adolescentes, de exploração de trabalho escravo, entre outros.

Quanto ao adjetivo que antecede o gênero criminal em questão, consideramos que “graves” violações a direitos humanos são todas as ofensas aos bens jurídicos tutelados em tais convenções internacionais, quando, conforme a lei penal brasileira, a pena máxima cominada ao delito for superior a um ano, de reclusão ou detenção. Com este critério equiparamos o conceito de “crimes graves” ao conceito de infrações graves para fins de extradição, previsto no artigo 77, inciso IV, da Lei n. 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro). Ali lê-se que não são extraditáveis os crimes a que “a lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 (um) ano”.

Ou ainda, numa classificação intermediária que toma por parâmetro as infrações penais de menor potencial ofensivo, serão graves os crimes contra os direitos humanos quando a pena máxima, em abstrato, for superior a dois anos de detenção ou de reclusão. É limite que se tira do artigo 2º da Lei n. 10.259/01.


Uma outra interpretação, menos rigorosa, poderia admitir a conceituação de graves crimes contra os direitos humanos como sendo os delitos punidos, em abstrato, com pena máxima não inferior a quatro anos de prisão. O patamar de quatro anos, em concreto, é o limite até o qual, segundo o Código Penal (art. 44, inciso I), permite-se a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por pena restritiva de direitos. O mesmo critério de quatro anos aparece no artigo 92, inciso I, ‘b’, do Código Penal, para a imposição da perda do cargo ou função pública, como efeito secundário não automático da condenação.

Esse critério tem a vantagem de encontrar respaldo em texto internacional. Pelo artigo 2, letra ‘b’, da Convenção das Nações Unidas contra Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) , concluída em 2000 e em vigor para o Brasil desde 28 de fevereiro de 2004, é considerado crime grave todo “ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior”. A convenção, já integrada ao ordenamento jurídico brasileiro, tem força de lei e pode servir de parâmetro seguro para a conceituação da expressão “grave violação a direitos humanos”, pressuposto do incidente de deslocamento de competência. Por isto, esta nos parece a melhor solução para a aparente indeterminação do §5º, do artigo 109 da Constituição.

Naturalmente, as categorias acima elencadas partem do pressuposto de que a gravidade do crime mede-se pela pena. No entanto, não se pode a priori desconsiderar premissas diversas, como a que depreenda a gravidade do crime pela sua repercussão social ou pelo clamor público causado pelo delito.

Qualquer que venha a ser o critério adotado pelo legislador ou apontado pela jurisprudência do STJ e do STF para definir os crimes contra os direitos humanos, é importante tomar em conta que para, ocorrer o deslocamento de competência preconizado pelo constituinte, é imprescindível a configuração de pelo menos um dos seguintes pressupostos: envolvimento do poder econômico, do poder político, de agentes públicos ou de organização criminosa. Um ou mais de um destes eventos deve coexistir com a denegação de justiça, entendida como a não apuração do fato, a demora da apuração do fato, da instauração ou da condução do processo, ou a realização de manobras para a alteração da verdade ou a eliminação de provas para facilitar a impunidade, absolvições espúrias ou a prescrição.

Legitimação

Segundo o artigo 109 da Constituição, somente o Procurador-Geral da República pode promover o incidente de deslocamento de competência perante o STJ. Quanto a este tema, há de se recordar que o então senador Roberto Requião apresentou emenda na Comissão de Constituição e Justiça pela qual pretendia igualar os legitimados para o IDC aos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. Embora seja desejável que outros sujeitos possam provocar o incidente perante o STJ, a equiparação dos róis é incompatível com o sistema acusatório. Imagine-se a exótica possibilidade de partidos políticos e sindicatos intervirem em incidentes no curso de ações penais!

Por outro lado, é acertada a escolha do Procurador-Geral da República como legitimado. Além de ser o chefe do Ministério Público da União, esta autoridade republicana também dirige o Ministério Público Federal e é o promotor natural perante o Supremo Tribunal Federal, o que vale dizer que ali atua como representante máximo do Ministério Público Nacional, falando em último grau em nome do MPF, do MPM, do MPDFT e do Ministério Público dos Estados. Ou seja, no STF e também no STJ, o Procurador-Geral é o dominus litis por excelência (art. 129, I, CF).

A legitimação do PGR também se justifica na medida em que, por meio do incidente, o Chefe do Ministério Público Federal age como ombudsman nacional, zelando “[…] pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”. Assim, propondo o incidente, o Procurador-Geral da Republica nada mais faz do que promover medidas para a garantia de direitos fundamentais violados pelos poderes públicos.

Embora plenamente justificada a legitimação do PGR, o ideal é permitir que os legitimados à assistência de acusação, quando habilitados, na forma do artigo 268 da lei processual penal, também possam provocar o incidente perante o STJ, de modo a impedir que à omissão da justiça das unidades federadas se some eventual omissão do Chefe do Ministério Público Federal. A razão dessa ampliação de legitimação está em facilitar a busca da reparação do dano causado pelo crime, que estaria inviabilizada para o assistente por omissão ou descaso da Justiça estadual e, eventualmente, do Procurador-Geral.


“Art. 268. Em todos os termos (45) da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no Art. 31”.

“Art. 31. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.”

Para essa aplicação analógica (CPP, art. 3º), que amplia a garantia, não é necessária alteração constitucional ou lei expressa. Basta que o Superior Tribunal de Justiça acolha o princípio aqui esposado.

Igualmente, seria de boa medida permitir ao presidente da República, por sua condição de Chefe de Estado (art. 84, VII e VIII, CF), a propositura do incidente perante o Superior Tribunal de Justiça. Cabe ao presidente da República a representação do Estado Nacional e aferir a conveniência de assinar e ratificar tratados internacionais, aderir a eles ou denunciá-los. Considerando a independência do Procurador-Geral da República em relação ao Governo, é mais que razoável a legitimação do presidente.

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

VII – manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”.

Para garantir a efetividade do incidente de deslocamento contra eventual descaso do Procurador-Geral da República, imagina-se, de lege ferenda, a alteração da Lei Complementar Federal n. 75/93, que instituiu o Estatuto do Ministério Público da União. Assim poder-se-ia atribuir a órgão colegiado do Ministério Público Federal (o Conselho Superior ou uma das câmaras de coordenação e revisão) (46) a atribuição de rever o posicionamento do Procurador-Geral da República em caso de não provocação do incidente. Dar-se-ia lugar a uma instância de controle no âmbito do Parquet Federal, que funcionaria por similitude ao que prevê o artigo 28 do CPP, no que se refere ao arquivamento do inquérito policial. Deste modo, estaria atendido o princípio da recorribilidade e uma espécie de “duplo grau administrativo”.

De qualquer modo, como posto o incidente, por ora resta ao interessado provocar direta ou indiretamente o Procurador-Geral da República para que promova o deslocamento de competência perante o STJ. O requerimento ao PGR, abrigado pelo direito de petição, pode ser direto ou por intermédio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal existente em todas as unidades da Federação e que desempenha a função de ombudsman regional prevista no artigo 129, inciso II, da Constituição.

Recebido o requerimento, o Procurador-Geral deverá realizar uma investigação preliminar para averiguar se estão presentes os pressupostos do incidente de deslocamento. Portanto, nos autos do pedido deverão ser ouvidos o Ministério Público do Estado requerido, o Judiciário Estadual (de preferência o juiz natural e o presidente do Tribunal) e, se for o caso, o Secretário Estadual de Segurança Pública (47). Apresentadas as explicações destas autoridades, sem prejuízo de outras diligências, o Procurador-Geral estará apto a decidir se há justa causa para provocar o deslocamento perante o Superior Tribunal de Justiça.

É saudável a competição entre as polícias judiciárias, entre o Ministério Público e o Poder Judiciário. Essa concorrência não será predatória, e terá em mira a realização da Justiça. Os beneficiários, obviamente, serão os cidadãos. É o que dizem Flávia Piovesan e Renato Vieira:

“Ao contrário do que sustenta a Conamp, com a federalização dos crimes contra os direitos humanos passa a existir uma salutar concorrência institucional para o combate à impunidade e para a garantia de justiça, expondo-se à sociedade civil os poderes e os limites estatais no cumprimento de seus compromissos internacionais e domésticos. De um lado, encoraja-se a atuação estatal sob o risco do deslocamento de competência em razão da matéria, e do outro se aumenta a responsabilidade das instâncias federais para o efetivo combate à impunidade das violações aos direitos humanos” (48).

Além deste, são vários os motivos que recomendam a federalização das investigações e do julgamento de crimes contra os direitos humanos. Esquematicamente, e à guisa de conclusão, seriam estas as vantagens do IDC:

a) a Polícia Federal e o Instituto Nacional de Criminalística são em geral mais bem equipados e melhor aparelhados que a Polícia Civil e as polícias científicas de muitos dos Estados brasileiros, podendo realizar investigações mais apuradas;

b) a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal estão mais distantes das influências políticas e econômicas locais, tendo, por isto, mais condições de realizar investigações e conduzir ações penais longe dos lobbies e querelas paroquiais;


c) os órgãos federais de persecução não recebem verbas dos cofres públicos estaduais, o que, neste sentido, lhes confere mais independência na persecução de crimes praticados, comandados ou acobertados por agentes políticos locais, uma vez que não podem sofrer retaliações orçamentárias, por exemplo;

d) a investigação e o processo de agentes públicos estaduais e municipais autores de delitos contra os direitos humanos caberá a autoridades federais, podendo reduzir a impunidade, pelo distanciamento da esfera de influência local;

e) poderá haver maior celeridade na tramitação dos inquéritos e das ações penais, já que as varas criminais federais e os tribunais regionais comumente são mais expeditos que os congêneres estaduais; o maior número de causas penais de competência estadual atrasa a tramitação perante estes órgãos;

f) será sem dúvida preservada a responsabilidade internacional do Estado brasileiro perante cortes, organizações e organismos internacionais;

g) haverá estímulo à atuação concreta e pronta dos órgãos estaduais de persecução, para evitar a federalização;

h) ocorrerá seguramente redução dos níveis de impunidade no que tange aos crimes contra os direitos humanos, tanto pela atuação mais presente das autoridades estaduais, quanto pela atuação das autoridades federais, nos casos deslocados;

i) estarão assegurados, por uma nova via, a inafastabilidade da jurisdição nos casos de lesão ou ameaça a direito individual e o princípio da obrigatoriedade da ação penal;

j) garantirá o respeito aos direitos da pessoa humana pelos entes subnacionais e pela União, etc.

Claro que o incidente de deslocamento de competência não é uma panacéia. Não se cuida também de instrumento salvacionista. Não serão a Justiça, a Polícia e o Ministério Público Federal que irão acabar com a impunidade no País. Os Estados-membros têm juízes excepcionais, policiais diligentes e promotores atuantes e independentes. Todavia, a experiência concreta do País demonstra que, em certos casos, é recomendada a transferência dos processos para a Justiça Federal para fazer frente à impunidade e à excessiva demora na prestação jurisdicional, ou mesmo para evitar injunções políticas, tão comuns em algumas regiões do Brasil.

Caberá ao Procurador Geral da República (49), ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, o primeiro pela práxis e os demais pela jurisprudência, definir os exatos contornos e limites do novo instituto. Recomenda-se uma aplicação cautelosa e responsável, para não vulgarizar o IDC, ferramenta essencial para a redução da impunidade, que somente deve ser usada como via alternativa, excepcional e subsidiária para a persecução de graves violações a direitos humanos, que não tenham recebido a merecida atenção das autoridades locais, seja por omissão, leniência, demora injustificada ou conluio destas, sempre tendo como norte o cumprimento de obrigações internacionais do Brasil. Em suma, o incidente somente deverá ser utilizado quando não houver, no plano local, meios hábeis ou eficazes para a apuração e a persecução judicial de graves crimes contra os direitos humanos.

O leading case de Anapu e a ação direta de inconstitucionalidade da AMB gerarão bons embates e bons paradigmas. Espera-se que tudo se dê em nome da efetividade da justiça e da redução da impunidade, sem corporativismos ou preconceitos de qualquer espécie. Afinal, a realização da Justiça em nosso País não é uma utopia federal ou estadual; é, sim, um legítimo anseio de todos os brasileiros.

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Notas de rodapé

(1) A Conamp emitiu nota contrária à federalização dos crimes contra os direitos humanos.

(2) A ANPR deverá habilitar-se como amicus curiae nos autos da ação direta de inconstitucionalidade.

(3) Os “crimes” contra direitos humanos são meramente previstos nos tratados internacionais. Cabe aos Estados signatários de uma determinada convenção implementar suas diretrizes. Assim, a efetiva tipificação de tais infrações penais, no caso brasileiro, depende de lei federal ordinária, conforme os princípios da taxatividade, da anterioridade e da legalidade penal estrita.

(4) A 6ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos declara: “In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of the State and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been previously ascertained by law”.

(5) Mesmo em relação à Justiça do Distrito Federal, cujas causas também podem ser deslocadas para a Justiça Federal.

(6) Espécie de “Ministério Público” interamericano, responsável pela investigação de violações a direitos humanos no continente, conforme o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos). A Comissão foi criada em 1959 e tem sede em Washington, Estados Unidos. Segundo FLÁVIA PIOVESAN, “[…] há atualmente 68 casos contra o Brasil pendentes de apreciação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), sendo que dois deles apontam à responsabilidade direta da União em face da violação de direitos humanos e nos demais, a responsabilidade é do Estado Federado”.

(7) Também prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Tribunal tem sede em São José, na Costa Rica. O Brasil se submete à jurisdição da Corte e pode ser condenado a indenizar vítimas de violações de direitos humanos e a obrigações de fazer ou não fazer.

(8) Instituído pelo Tratado de Roma, de 1998, o TPI funciona na cidade da Haia, na Holanda, sendo composto por quinze juízes e uma Promotoria independente.

(9) Publicado pelo Decreto n. 5017/04.

(10) Nos Estados Unidos, os crimes de narcotráfico podem ser julgados pela Justiça dos Estados ou pela Justiça Federal. Por exemplo, basta que a prisão do traficante seja realizada pela Drugs Enforcement Administration (DEA)¸ um órgão federal, para que o delito seja de competência federal.

(11) Ex-ministro do STF, ex-ministro das Relações Exteriores e atualmente Juiz da Corte Internacional de Justiça da Haia, na Holanda. Citado por SCHREIBER, Simone; CASTRO E COSTA, Flávio Dino. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Disponível no portal da Ajufe: www.ajufe.org.br/index.php?ID_MATERIA=389. Acesso em: 12. maio. 2005.

(12) A investigação criminal não é competência exclusiva da Polícia Judiciária. Assim, o deslocamento pode ser provocado tanto quando exista um inquérito policial em tramitação, quanto um procedimento investigatório independente, instaurado pelo Ministério Público do Estado ou do Distrito Federal. Mas, evidentemente apenas quando estas investigações se revelarem injustificavelmente morosas, facciosas ou “de fachada”.

(13) Incluindo a fase de execução da pena, uma vez que eventual sentença condenatória proferida pela Justiça Estadual ou mesmo pela Justiça Federal (na esmagadora maioria dos casos, as condenações federais são executadas perante varas estaduais) também pode ser descumprida ou irregularmente executada ou ter sua execução indevidamente obstada, igualmente gerando impunidade nessas hipóteses.

(14) Pressuposto implícito no §5º do artigo 109, uma vez que não há razão para o deslocamento quando os órgãos estaduais de persecução e julgamento desempenham legitimamente e a contento suas tarefas constitucionais.

(15) PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional: a exigência da federalização. Em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html.

(16) FONTELES, Cláudio. Decisão nos autos do requerimento de deslocamento de competência n. 1.00.000.011297/2004. Interessados: Fundação Interamericana de Direitos Humanos e outro. Brasília: Procuradoria-Geral da República, 11. abr. 2005.

(17) Questão interessante é determinar se o suscitado é o Poder Judiciário Estadual (caso em que a defesa da competência local caberá ao presidente do Tribunal de Justiça) ou se é simplesmente a Vara ou Câmara Criminal perante a qual tramita o inquérito ou a ação penal. A resolução do STJ ou a emenda regimental que vier regulamentar a matéria deverá cuidar de definir quem é a autoridade suscitada no IDC.


(18) No IDC 01/PA (caso Dorothy Stang), o Ministério Público do Pará manifestou-se nos autos e apresentou argumentos contra a federalização.

(19) Após ser promovido o incidente, DAVID JOSEPH STANG peticionou ao STJ para a federalização do processo que apura o homicídio de sua irmã, a missionária DOROTHY STANG.

(20) Em regra no primeiro grau de jurisdição, de juiz estadual para juiz federal. Mas nada impede que haja o deslocamento de competência de um Tribunal de Justiça para um Tribunal Regional Federal, nos casos de ações penais originárias (Lei n. 8.038/90).

(21) Que superou o federalismo dual, de estrita separação de funções e de esferas de atuação entre o governo central federal e as entidades subnacionais. A propósito, vide SCHREIBER, Simone; CASTRO E COSTA, Flávio Dino. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Disponível no portal da Ajufe: www.ajufe.org.br/index.php?ID_MATERIA=389. Acesso em: 12. maio. 2005.

(22) A União detém a responsabilidade secundária no que tange à proteção dos direitos humanos. A responsabilidade primária é das unidades federadas.

(23) O dispositivo tem alguma similaridade com o título 18 do Código dos Estados Unidos (18 US Code), diploma do direito norte-americano que fixa a competência federal para certos crimes a partir de critério baseado na expressão “interstate or foreign commerce”, que reflete a repercussão do delito em mais de uma jurisdição estadual. Segundo o Black’s Law Dictionary, 7th edition, interstate commerce significa “Trade and other business activities between those located in different states; esp., traffic in goods and travel of people between states”.

(24) Objetivo também buscado com o incidente de deslocamento de competência.

(25) O incidente de deslocamento presta-se a garantir também este princípio constitucional que pode ser violado pela própria Justiça dos Estados ou do Distrito Federal quando recusam ou retardam demasiadamente a prestação jurisdicional.

(26) A jurisdição, na verdade, é uma, havendo mera distribuição de competências entre a União e os Estados.

(27) Casos em que o deslocamento pode dar-se da Justiça Federal para a Estadual e vice-versa.

(28) Importa lembrar que mesmo no plano internacional até bem pouco tempo não havia rigor na vedação a tribunais ex post factum. Vide os exemplos dos tribunais de Nuremberg, para a Ex-Iugoslávia e para Ruanda. Somente com a instalação efetiva do Tribunal Penal Internacional em 2002 passou-se a ter uma corte permanente para o julgamento de crimes ocorridos antes de seu estabelecimento.

(29) Embasada tanto no inquérito da Polícia Civil, quando no inquérito policial federal.

(30) Mais adequado, quanto ao procedimento, seria equiparar o incidente de deslocamento ao conflito de competência, previsto nos artigos 113 a 117 do CPP.

(31) Como dito, o incidente foi proposto antes da propositura da ação penal estadual hoje em curso.

(32) Fonte: Superior Tribunal de Justiça. Acompanhamento processual. IDC n. 01-PA. Acesso em 15. maio. 2005. http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/justica/detalhe.asp?numreg=200500293784&pv=000000000000

(33) A Polícia Federal já pode investigar quaisquer crimes contra os direitos humanos com base na Lei n. 10.446/02.

(34) Esta previsão pode constar de lei, de norma regimental ou resultar de liminar fundada no poder geral de cautela. O PGR pode requerer medida cautelar ao STJ para autorizar o MPF a antecipar a produção de provas, perante o juiz federal virtualmente competente, de modo a assegurar o êxito da futura persecução criminal (federalizada).

(35) Segundo CLÁUDIO FONTELES, “Trata-se de uma jurisdição subsidiária, que deve ser acionada, verbi gratia, apenas naquelas circunstâncias em que os Estados-membros apresentem quadro de leniência na definição dos feitos criminais movidos contra os que violam os direitos humanos, ou mesmo tolerem a desmoralização, pela reversão do quadro procedimental, dos que promovem a defesa dos direitos humanos”.

(36) Citado por SCHREIBER, Simone; CASTRO E COSTA, Flávio Dino. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Ajufe: www.ajufe.org.br/index.php?ID_MATERIA=389. Acesso em: 12. maio. 2005.

(37) Princípio do direito internacional público que se configura quando não há órgão jurisdicional competente para o julgamento; quando se dá o non liquet; ou em caso de excessiva e injustificada morosidade do processo.

(38) Antes da EC 45/04, era o que bastava para abrir-se acesso à Comissão e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

(39) Que não se confundem com os crimes plurilocais.

(40) Uma outra diferença entre os institutos é que no desaforamento não há alteração de competência ratione materiae: muda-se apenas a sede do juízo processante. Já no deslocamento a causa, por sua natureza, passa à competência federal, mudando ou não de sede.

(41) Vide http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html. Acesso em 16. maio. 2005.

(42) Citado por SCHREIBER, Simone; CASTRO E COSTA, Flávio Dino. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Ajufe: www.ajufe.org.br/index.php?ID_MATERIA=389. Acesso em: 12. maio. 2005.

(43) Questão interessante a discutir é se os tratados de direitos humanos aprovados e integrados ao ordenamento jurídico nacional antes da emenda constitucional n. 45/04 continuam a valer como leis federais ordinárias ou se foram recepcionados automaticamente, em função do novo §3º do artigo 5º da CF, como normas constitucionais.

(44) Decreto n. 5.015/04.

(45) “Em todos os termos”, inclusive nos processos incidentes.

(46) Incluindo-se inciso no artigo 57 da LCF n. 75/93 ou alterando-se a redação do artigo 62, IV, da mesma lei.

(47) Assim se deu no procedimento n. 1.00.000.011297/2004, decidido em 11 de abril de 2005 pelo Procurador-Geral da República CLÁUDIO FONTELES, que recusou o pedido da Fundação Interamericana de Direitos Humanos e da Arquidiciose de São Paulo para federalizar a investigação da chacina de moradores de rua ocorrida na capital paulista, em 2004. A Procuradoria-Geral da República ouviu previamente o MP/SP e a SSP/SP e concluiu que não havia inércia das autoridades estaduais ou comprometimento da verdade real, razão pela qual arquivou o pedido. Este caso revela que o Chefe do Ministério Público Federal desempenha um importante papel de instância de controle da viabilidade dos pedidos de deslocamento de competência.

(48) PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Federalização de crimes contra os direitos humanos: o que temer? IBCCrim: São Paulo, Boletim IBCCRIM nº 150 – Maio / 2005.

(49) CONJUR. Deslocamento negado: Fonteles arquiva pedido de federalização de crimes.Revista Consultor Jurídico: www.conjur.com.br. Acesso em 15. maio. 2005. O PGR CLÁUDIO FONTELES recusou o pedido de federalização “[…] dos sete crimes cometidos contra moradores de rua na cidade de São Paulo. As agressões aconteceram em agosto de 2004. Foram vítimas dos crimes hediondos 13 moradores de rua. Sete morreram, todos golpeadas na cabeça. O pedido de federalização do crime havia sido feito pela Fundação Interamericana de Direitos Humanos e pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo”. O inquérito policial tramita na 1ª Vara do Júri de São Paulo/SP. O argumento dos requerentes foi o de que as investigações estão paralisadas pelo suposto envolvimento de policiais estaduais nos crimes. Este caso revela que o Chefe do Ministério Público Federal desempenha um importante papel de instância de controle da viabilidade dos pedidos de deslocamento de competência.

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    é procurador da República no Paraná, ex-promotor de Justiça na Bahia, professor de processo penal na UEFS e mestre em Direito Público pela UFPE.

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