Crise na Justiça

Tribunais estão abarrotados de processos irrelevantes

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12 de maio de 2005, 16h22

Num debate sobre os problemas de acesso à Justiça no Brasil, um estudioso americano trouxe ao grupo multidisciplinar uma indagação que parece óbvia, mas que passa despercebida a quem está diretamente envolvido, ou mesmo acostumado, a um país de tantas diferenças e contradições: como é possível haver dificuldade de acesso à Justiça se os juízos e tribunais brasileiros estão abarrotados de processos?

Realmente, parece um paradoxo. Como se pode falar em crise de acesso se, a cada ano, na Justiça Comum, Federal e do Trabalho são ajuizadas mais de 10.000.000 de novas ações, segundo o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário organizado pelo Supremo Tribunal Federal?

Na verdade, do ponto de vista formal temos as garantias próprias a um Estado Democrático de Direito, em que se constitui direito fundamental previsto na Constituição o acesso ao Poder Judiciário, com possibilidade de assistência judiciária integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Mesmo no plano material, muito já se fez no Brasil para tornar efetiva essa garantia constitucional.

Como frutos desse esforço podem ser arrolados os juizados especiais; juízos arbitrais e de mediação; comissões de conciliação prévia; e novos instrumentos de realização da Justiça, inclusive para defesa de interesses coletivos e difusos. O processo do trabalho, por exemplo, já nasceu impregnado de princípios voltados a facilitar o acesso ao Judiciário, merecendo destaque a informalidade, a concentração dos atos processuais em audiência e a gratuidade, consistente na vedação de cobrança de custas ou quaisquer encargos antecipadamente.

A raiz do problema está onde, então? Infelizmente, em boa parte decorre de desvirtuamentos éticos que já foram bem retratados em deplorável – mas realista – propaganda de TV na qual se anunciava que “o negócio é levar vantagem em tudo, certo?”.

Um número muito grande de processos não decorre de dúvida sobre o direito que cabe a cada parte, mas de mera resistência injustificada ao cumprimento de obrigações legais ou contratuais. E isso ocorre por quê? Porque, é óbvio, há interesses que extrapolam as teses que, não raro, são fastidiosa e reiteradamente exibidas a um juiz ainda desprovido de meios para dar plena efetividade à maioria de suas decisões.

Ouso afirmar que isso não ocorre apenas na Justiça do Trabalho. E o que é mais grave: os entes públicos são os campeões na lista, em todos os níveis. Por exemplo, analisados os recursos extraordinários e agravos de instrumentos protocolados no STF entre 1º de janeiro de 2002 e 30 de junho de 2004, constatou-se que, de fato, o poder público é o grande litigante. Os sete maiores usuários do Supremo são órgãos do Executivo. Quem deveria dar o exemplo é o primeiro a emperrar a Justiça com recursos e, como se não bastasse, a valer-se, depois de transitada em julgado a sentença, da interminável fila dos precatórios.

Em muitos casos, dá lucro dever na Justiça. Basta comparar os juros de mercado com os cobrados do devedor num processo judicial. Pode-se dizer que a frase “vou buscar meus direitos na Justiça” está sendo substituída por “se quiser, vá me cobrar na Justiça”. Tudo isso sem levar em conta lides totalmente simuladas, em que uma das partes nem sabe que está movendo a ação.

Além disso, medidas que em tese seriam hábeis a aliviar o trabalho da Justiça acabam tendo uso também desvirtuado. São conhecidos casos de comissões de conciliação prévia, por exemplo, no âmbito da Justiça do Trabalho, que acabaram servindo de “cabide de emprego” a ex-dirigentes sindicais e de outras tantas que visavam apenas a impedir o acesso ao Judiciário, com a homologação de acordos aviltantes, quando não fraudulentos.

Somem-se a esse quadro interesses corporativos e de mercado de trabalho; uma formação acadêmica voltada mais ao estudo das leis e dos processos do que ao direito propriamente dito e à autocomposição dos conflitos; um arcabouço de instrumentos processuais defasado; sucessivas crises conjunturais e econômicas; um sistema legal caótico e cheio de medidas provisórias.

Pode-se, assim, ter idéia clara de como é relativamente fácil entrar na Justiça; difícil é sair dela, pois prateleiras e mais prateleiras dos fóruns e tribunais são ocupadas por processos que não precisariam ter sequer iniciado, com prejuízo àqueles realmente relevantes.

Enquanto isso, o Congresso Nacional debruçou-se durante mais de uma década na reforma do Poder Judiciário e não chegou nem perto da solução desses problemas.

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