Gestação interrompida

Justiça de PE autoriza aborto de feto anencefálico

Autor

10 de maio de 2005, 19h27

A gestante Luciana Patrícia Figueiredo Vasconcelos, de Pernambuco, foi autorizada a fazer o aborto de feto anencefálico. A decisão foi do desembargador Sílvio de Arruda Beltrão, da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que acatou o pedido da gestante em Mandado de Segurança.

Para o desembargador, ficou evidenciado o risco à saúde de Luciana, sem falar no abalo psicológico e drama emocional a que estará submetida se não interromper a gestação.

Segundo Beltrão, “cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana”.

“Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina”, afirmou o desembargador.

Em abril desse ano, o Supremo Tribunal Federal admitiu o uso de ADPF — Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental como recurso cabível ao caso. A interrupção de gravidez em casos de anencefalia está em discussão no Supremo. O mérito ainda será julgado.

Leia a íntegra do Mandado de Segurança

Mandado de Segurança nº 123022-6

Comarca do Recife Impetrante : Luciana Patrícia Figueiredo Vasconcelos Impetrado : Exmº. Sr. Dr. Juiz de Direito da 1ª Vara do Júri da Capital Relator : Des. Silvio de Arruda Beltrão DECISÃO INTERLOCUTÓRIA

LUCIANA PATRÍCIA FIGUEIREDO VASCONCELOS, através de Defensor Público, legalmente habilitado, impetrou o presente Mandado de Segurança, contra decisão judicial oriunda do MM. Juízo de Direito da 1ª Vara do Júri da Comarca da Capital, proferida no âmbito do Alvará Judicial nº 001.2005.008906-5. Alega a impetrante que postulou perante o Juízo a quo autorização para proceder com a interrupção do estado gestacional do qual se encontra, em face do laudo emitido por médico do Instituto Materno Infantil de Pernambuco – IMIP (fls.28), que registra a ausência de calota craniana do feto, tendo, contudo, o togado monocrático exarado sentença, julgando improcedente o pedido formulado no cerne da lide pioneira. Argumenta, ainda, que se trata de decisão teratológica, porquanto erigida em desarmonia com o posicionamento jurisprudencial hodiernamente consolidado sobre a matéria, que se inclina em interpretar extensivamente a excludente de punibilidade prevista no inciso I, do art.128, do Código Penal Brasileiro. Cabe-me, no exercício do juízo de admissibilidade da presente ação mandamental, tecer, preambularmente, breves comentários no tocante a escolha da via processual de que se trata, em virtude da grande celeuma gerada sobre o assunto. É que, a Lei nº 1.533/51, em seu art.5 º, II, estabelece que não cabe mandado de segurança em se tratando “de despacho ou decisão judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição”.

De outra banda, é induvidoso que está estabelecido no plano constitucional que “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”, ex vi do inciso LXIX, do art.5º, da CF/88. Registre, por oportuno, que é imperioso entender-se que a liminar em mandado de segurança possui, como visto, status constitucional e, sendo assim, não pode ser acutilada por leis infraconstitucionais. Além do mais, pode-se afirmar que, se o acesso à Justiça é assegurado em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito (art.5º, XXXV, CF/88), com muito mais razão, no meu sentir, deverá sê-lo se se tratar de direito líquido e certo. Cumpre esclarecer, por pertinente, que o direito líquido e certo a ser protegido com o manejo do mandamus não é, apenas, o direito material, até porque o mesmo, ainda, não está revestido do caráter de certeza e liquidez, só verificado por ocasião do trânsito em julgado da ação.

Nesse passo, observa-se, pois, a natureza acautelatória da demanda sob apreço, pelo que se constata, por conseguinte, a indispensabilidade da existência de dano irreparável ou de difícil reparação, para admissibilidade do remédio heróico constitucional contra ato jurisdicional.

Assim sendo, entendo que, inobstante não seja cabível in thesi a impretação do writ quando for possível a impugnação de decisão judicial por recurso de efeito suspensivo, em havendo a possibilidade de irreparabilidade do ato jurisdicional vergastado, é de se admitir a ação mandamental como instrumento de evitar o prejuízo a ser suportado pela parte demandante.


Aliás, a doutrina processualista mais abalizada não discrepa do entendimento acima externado, consoante se pode depreender da lição insculpida sob o escólio de Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz, ao asseverar que: “É claramente possível observar que os tribunais só têm permitido o uso de mandado de segurança contra atos jurisdicionais quando haja possibilidade de dano irreparável e não exista outro meio capaz de evitar esse dano. Em suma, havendo ilegalidade e abuso de poder por parte do órgão jurisdicional, será sempre cabível o mandado de segurança para controle de seus atos. Resta-nos então reiterar que é cabível o mandado de segurança nos casos em que o órgão jurisdicional age com ilegalidade, por não conceder medida cujos pressupostos legais estavam presentes. (GRIFEI)” (in Legitimidade passiva em mandado de segurança contra ato jurisdicional (488-504). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. São Paulo, 2002: RT. Coords. Cássio S.Bueno, Eduardo Arruda Alvim e Teresa Arruda Alvim Wambier).

No mesmo diapasão, vale destacar o posicionamento firmado por Carlos Alberto Salles, ao pontificar que: “O cabimento da medida, é evidente, está sempre condicionado àquela finalidade dada pelo texto da Constituição (…) mesmo que abstratamente não se vislumbrem situações nas quais a via mandamental seja adequada, sua disponibilidade há de ser sempre afirmada, não se podendo desdenhar da complexidade e gravidade das situações apresentadas pelos casos concretos, eventualmente não solucionáveis pelas vias recursais ordinárias”. ( in Mandado de Segurança contra Atos Judiciais (121-151). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. São Paulo, 2002: RT. Coords. Cássio S.Bueno, Eduardo Arruda Alvim e Teresa Arruda Alvim Wambier).

In casu, ante a natureza do litígio pioneiro, é inquestionável que a urgência da tutela jurisdicional perseguida pela impetrante e denegada no cerne do Juízo primitivo, verifica-se premente na hipótese sub examine, conforme se depreende da exposição dos fatos narrados na proemial.

Realce-se, também, que a construção jurisprudencial tem quedado no sentido de atenuar o entendimento sumular anteriormente construído, flexibilizando o caráter restritivo das Súmulas 267 e 268 do S.T.F. e se inclinando em admitir o remédio heróico constitucional contra ato jurisdicional passível de recurso com efeito suspensivo, desde que haja uma situação onde se faça necessário preservar o direito lesado, em face da ineficácia do recurso cabível.

Oportunamente, trago à colação julgado que cai como uma luva sobre o caso sub judice, senão, vejamos: “A despeito do que estabelece a Súmula 267/STF, a jurisprudência e a doutrina sempre aceitaram o uso do mandado de segurança contra decisão judicial, desde que esta fosse impugnada por recurso próprio, tempestivo e desprovido de efeito suspensivo e, ainda, fosse teratológica e afrontosa ao direito, suscetível de causar dano irreparável ou de difícil reparação.” (RMS 11962/SP, STJ – 4ª Turma, rel.Min. Jorge Scartezzini, julg em 26.10.2004, DJ de 06.12.2004, p.311).

Outrossim, é bom atentar para o fato de que, no caso concreto, a interposição do recurso apelatório, por si só, não teria o condão, pelo menos até o processamento do julgamento meritório, de propiciar à postulante a prestação judicial que necessita para a proteção do alegado direito, que lhe fora negado no âmbito da instância primária, sendo de bom alvitre salientar que até o término da tramitação da apelação é certo que a gravidez em tela, seguramente, já terá alcançado o seu termo.

Dessume-se, portanto, que ao consagrar o princípio do livre acesso à Justiça como direito pétreo e fundamental da cidadania, o legislador constituinte, igualmente, tornou sem propósito a formulação de raciocínios e a elaboração de decisões que, amesquinhando a incidência e a amplitude do mandado de segurança, dificultem ou impeçam o recurso de que se trata ao Judiciário, sendo iniludível que a admissibilidade da impetração deste, na maioria das vezes, faz-se imprescindível como meio de instrumentalização para a consecução do preceito fundamental dantes referido.

Desse modo, considerando-se que a impetração in comento fora proposta contra sentença meritória, tem-se que inevitável é, para que se possa apreciar a ilegalidade do ato imputado de violador de direito líquido e certo, que se proceda com um exame detalhado do julgamento de mérito proferido no âmbito da instância primária.

Compulsando os autos, atendo-me na análise percuciente do ato indigitado de coator, cuido que o Juiz Sentenciante lastreou seu decisório com fulcro nas disposições restritivas previstas no art.128, I e II, da Lei Substantiva Penal, que define as hipóteses legais de inimputabilidade do agente no caso de cometimento de aborto, registrando que aquelas não se afeiçoam à hipótese concreta.


Vale dizer que a referida inimputabilidade a que se refere o citado dispositivo legal se dá em ocorrendo risco de vida para a gestante, não havendo outro meio para salvá-la (aborto necessário) e quando a gravidez resultar de estupro (aborto sentimental). Ainda, ressaltou o Juiz Primo Gradu a inviolabilidade do direito à vida, albergado constitucionalmente (art.5º, caput, CF/88), conferido, igualmente, ao nascituro, bem assim que o aborto eugênico (conveniência para se evitar uma procriação indesejada) não é amparado pelo ordenamento jurídico brasileiro vigorante, tendo, por tal motivo, julgado improcedente o pedido, por entender ser o mesmo juridicamente impossível, extinguindo, contraditoriamente, o feito sem julgamento de mérito, na forma do que dispõe o art.267, VI, do C.P.C.

Contudo, exsurge do decreto sentencial o registro de que o Laudo Médico de fls.11/13 mencionou que “em virtude da malformação apresentada pelo feto ser incompatível com a vida extra-uterina, a paciente nos solicitou interrupção da gestação. Por acharmos procedente a solicitação da mesma, pois com o evoluir da gestação a paciente será submetida a riscos inerentes à própria gestação e à patologia referida, que tem uma maior associação com polidrâmio, gestação prolongada e pré-eclâmpsia/eclampsia, além de implicações psicológicas negativas.”(GRIFEI)

Impende aclarar, que a malformação fetal ora referida, trata-se da anencefalia, definida pela doutrina médica especializada, da seguinte forma: “Anencefalia é anormalidade do sistema nervoso central que se caracteriza, genericamente, pela ausência da abóboda craniana, massa encefálica reduzida a vestígios da substância cerebral. Pelo geral, a gravidez não alcança o termo. Os anencéfalos não sobrevivem. Excepcionalmente, atingem 2 a 3 dias.” (Jorge de Rezende in Obstetrícia. Guanabara Koogan, 4ª edição, pgs. 873 a 875).

À luz das considerações acima escandidas, emerge a certeza inquebrantável que a situação fática ora em exame, embora não delineada de forma a se adequar às previsões restritivas da legislação penal já referida, mereceria melhor tratamento por parte do legislador ordinário. É que, as circunstâncias a que se vê submetida a gestante durante uma gravidez anencéfala, induvidosamente, vulnera a saúde física e psíquica da mulher, como também atenta contra a dignidade de sua pessoa humana.

A propósito, é de se anotar a manifestação expendida pelo Exmº. Des. Alberto Silva Franco, do TJSP, analisando a quaestio iuris sob apreço, quando afirma pontualmente que: “A legislação penal brasileira contém, por sua vez, no art.128 do Código Penal, as indicações autorizadoras do aborto que se resumem no aborto necessário, quando não há outro meio de salvar à vida da gestante, e no aborto, no caso de gravidez resultante de estupro. Nessas duas situações fáticas, a conduta abortiva não se configura tipicamente e não será, por via de conseqüência, punível. É evidente que a hipótese de anencefalia não se acomoda a nenhuma das duas indicações.

No caso, embora a gestante possa vir a sofrer agravos na sua saúde física, psíquica e social, sua vida não está em jogo. Já, na segunda hipótese, fica exposta, à plena luz, ao farisaísmo com que se lida com a questão do aborto. Aqui, coloca-se em cena a liberdade de autodeterminação da mulher, mesmo que isso signifique a morte de um feto com plena e total viabilidade. No conflito de interesses entre a vida intra-uterina do feto, dotado de todas as potencialidades humanas, e o agravo sofrido pela mãe na sua honra e na sua liberdade, dá-se preferência à mulher grávida em detrimento do filho resultante do estupro.

O balanceamento dos bens jurídicos em jogo não é, contudo, o mesmo, quando, de um lado, está um embrião ou feto condenado irreversivelmente à morte e, de outro, uma gestante seriamente agravada em sua saúde física, psíquica e social. É manifesto o tratamento desigual e hipócrita que se dá à mulher grávida no caso de anencefalia” ( in Anencefalia : Breves considerações médicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. RT Informa. Março/Abril 2005, pg.13)

Alicerçando entendimento tomando por base o pensamento acima elaborado, firmo meu convencimento, no sentido de que a situação fático-jurídica ora analisada remete para a problemática da antinomia constitucional, visto que do lado do nascituro se questiona a garantia ao direito à vida e, do lado da gestante, a violação de sua dignidade humana e do seu direito à saúde, sendo certo que os direitos colidentes se encontram amparados por norma constitucional de conteúdo principiológico.

Decerto que, o deslinde da questão requer a aplicação precisa das normas de interpretação constitucional, a fim de possibilidade a elaboração de juízo de ponderação, fulcrado no princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade. No meu sentir, na hipótese in concreto, vê-se de forma irrefutável, a menor incidência da garantia constitucional do direito à vida no concernente ao feto, eis que, hodiernamente, é assente no cerne da ciência médica o entendimento de que a gravidez em tela, provavelmente, não alcançará seu término e, acaso isso aconteça, será impossível a sobrevida do nascituro, porquanto a deformidade da qual é acometido é totalmente incompatível com a vida, consoante já explicitado, o que diferencia da hipótese do aborto eugenésico, que prevê a retirada do feto, apenas, em virtude de meras deformidades, não havendo, necessariamente, inviabilização da vida pós-parto.


Por sua vez, igualmente, é inconteste que o fato de que se trata, proporciona lesão à saúde física e psíquica da gestante, bem assim atenta contra a sua dignidade enquanto pessoa humana, uma vez que impõe situação vexatória e constrangedora, posto que a submete a levar a termo uma gravidez que não logrará êxito e, ainda, poderá lhe trazer sérios problemas de saúde, valendo ressaltar que o preceito ora invocado, perfaz-se, também, em princípio fundamental, previsto no nosso ordenamento jurídico-constitucional, no inciso III, do art.1º, da Carta da República de 1988.

Ademais, oportuno registrar algumas das contradições verificadas na legislação brasileira, donde destaco a pertinente à Lei nº9434/97, que regula o transplante de órgãos humanos, que em seu art.3º prevê a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante, dês que diagnosticada a morte encefálica do paciente.

Deflui da analise acima procedida, a certeza de que, presentemente, do ponto de vista médico-legal é a morte encefálica o parâmetro para definir a morte de uma pessoa, havendo de se questionar o porque de se invocar o direito à vida de um feto que, lamentavelmente, sequer, possui condições de vida cerebral e, conseqüentemente, de vir a adquirir personalidade no mundo jurídico, após seu nascimento.

Caminhando nessa trilha de entendimento, trago à pulsa julgados que corroboram o entendimento ora manifestado, cujo teor é o seguinte: “Mandado de Segurança. Anencefalia. Alvará de autorização para que a requerente seja submetida à cirurgia. Presença do fumus boni júris e do periculum in mora. Se, os laudos médicos acusam a presença de feto anencéfalo, através de realização de exames de ultra-sonografia realizados em 21.03.2003, e em 25.03, do mesmo ano, demonstrado que a anencefalia é um defeito do fechamento da porção anterior do tubo neural, levando a não formação adequada do encéfalo e da calota craneana, de etiologia multifatorial, é uma condição incompatível com a vida em 100% dos casos, levando ao óbito intra-uterina ou no período neonatal precoce e a gestação é freqüentemente complicada por polidrammia a qual se ocorrente no último trimestre poderá acarretar graves conseqüências para a saúde da gestante, justificada a necessidade de realização de cirurgia para remoção do feto anencéfalo, conduta atípica por não atingir nenhum bem jurídico penalmente tutelado, presentes o fumus boni júris e o periculum in mora, concede-se a segurança.” (MS nº2003.004.00030, TJRJ – 8ª CC, rel.Des. Maria Raimunda T. Azevedo, vu, julg em 26.06.2003 – Revista do Direito do TJERJ, vol 59, pg.374 Ementário: 39/2003 – nº10 – 17.12.2003)

“Afigura-se admissível a postulação em juízo de pedido pretendendo a interrupção de gravidez, no caso de se constatar a má-formação do feto, diagnosticada a ausência de calota craniana ou acrania fetal, com previsão de óbito intra-uterino ou no período neonatal. Apesar de não se achar prevista dentre as causas autorizadoras do aborto dispostas no art.128 do CP, a má-formação congênita exige a situação anômala específica à adequação da lei ao avanço tecnológico da medicina que antecipa a situação do feto” (TAMG – AC, rel.Des. Duarte de Paula – RT 762/147)

Ressalte-se, ainda, que recentemente, em 18.06.2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), ajuizou. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) perante o S.T.F, com pedido de liminar, pugnando pela manifestação daquele Sodalício sobre a matéria, com o fito de que seja estabelecido entendimento no sentido de que a antecipação terapêutica de parto de feto anencéfalo não seja definida como aborto e que seja dada interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, para declarar inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a aplicação desses dispositivos, particularmente, para impedir a intervenção nos casos em que a anomalia em debate é diagnosticada por médico habilitado. Anoto, ainda, que o Exmº. Min.Marco Aurélio Mello, relator da aludida ADPF, por ocasião do deferimento do provimento jurisdicional interino perseguido, manifestou entendimento favorável a não tipicidade da intervenção cirúrgica para retirada de feto anencéfalo, cujo trecho da referida liminar destaco a seguir: “Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto.

Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade.

A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação. (…) Daí o acolhimento do pleito formulado para….o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir do laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.” Diante das razões acima esposadas, verifico, desse modo, presentes os pressupostos autorizativos para concessão da medida liminar ora postulada, isto é , a plausibilidade do direito vindicado, bem assim do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.

Ex positis, em face da solicitação de autorização para realização de aborto, instruída com laudos médicos favoráveis, deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro, e evidenciado o risco à saúde desta, mormente a psicológica, resultante do drama emocional a que estará submetida acaso leve a termo a gestação, pois comprovado está cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro), anomalia incompatível com a sobrevida extra-uterina, outra solução não resta senão autorizar a requerente a interromper a gravidez, em razão de que DEFIRO A LIMINAR, com a conseqüente expedição de competente Alvará, para que o médico assistente da impetrante realize o necessário procedimento médico-cirúrgico.

Proceda-se, ainda, com a notificação da autoridade coatora, para, no decêndio legal, prestar as informações que entender necessárias e, em sucessivo, dê-se vista à douta Procuradoria de Justiça. Expeça-se Alvará. Publique-se. Intime-se.

Recife, 04 de maio de 2005.

Silvio de Arruda Beltrão

Desembargador relator

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!