Direitos fundamentais

MP quer impedir corte de água e luz de família carente

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9 de maio de 2005, 17h12

O Ministério Público de São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública na Vara da Infância e da Juventude do Jabaquara pedindo que a Eletropaulo — Metropolitana Eletricidade de São Paulo e a Sabesp — Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo restabeleçam e mantenham os serviços para uma mulher de São Paulo, portadora de HIV e mãe de quatro menores de idade.

Na ação os promotores Vidal Serrano Nunes Júnior e Motauri Ciochetti de Souza argumentam que embora o corte dos serviços se deva a falta de pagamento, estão em questão os direitos fundamentais da mulher, que também está com pneumonia e por isso impedida de trabalhar.

“As empresas demandadas são concessionárias do Poder Público e nada obstante colocam-se em desabrida violação ao comando contido no parágrafo 1º, do artigo 227, da Constituição Federal que, em tintas claras, prescreve que ‘o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente’”, afirmam os promotores na ação.

Na ação os promotores pedem a concessão da tutela antecipada no sentido de determinar às empresas que restabeleçam o fornecimento de água e de energia no imóvel, no prazo de 24 horas.

Leia a íntegra da Ação Civil Pública

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO FORO REGIONAL DO JABAQUARA

PPIC nº 023/05

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através da Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e Juventude da Capital, pelos signatários, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar AÇÃO CIVIL PÚBLIC, nos termos dos arts. 129, III, da Constituição Federal, 201,V e 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em face da ELETROPAULO — METROPOLITANA ELETRICIDADE DE SÃO PAULO S.A e da SABESP — COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos:

I – DOS FATOS.

1. Por meio de representação do Conselho Tutelar do Ipiranga, chegou a esta Promotoria de Justiça a informação de que a família da Sra. Jandira, mãe de quatro crianças, todas menores de idade, está passando dificuldades uma vez que a mãe dos infantes é portadora do vírus HIV e atualmente se encontra com pneumonia, impedindo-a de trabalhar. A falta de recursos financeiros para suprir as necessidades básicas acarretou no corte de fornecimento de luz e do abastecimento de água por inadimplemento. Desta maneira, constata-se uma iminente situação de risco em relação às crianças e aos adolescentes que habitam nessa residência. Diga-se, em acréscimo, que na citada residência ainda reside outra pessoa incapaz, uma portadora de esquizofrenia. Foi instaurado Inquérito Civil Público para apuração dos fatos.

2. No bojo das investigações, foi determinada a expedição ofícios à SABESP e à ELETROPAULO. A primeira respondeu que o imóvel encontra-se com seu fornecimento de água cortada desde 16/12/2004 devido ao não adimplemento das contas referentes ao período de 08/1998 a 01/2005. A segunda respondeu que o corte foi efetuado devido à falta de pagamento das faturas regulares, além de constatação de fraude no medidor de energia elétrica. Ambos alegaram a existência de dívidas remanescentes, também não quitadas.

3. A Sra. Jandira não nega que tenham faltado os pagamentos devidos, todavia não tem condições de arcar com os mesmos, necessitando que seja feito um re-parcelamento da dívida. As empresas, todavia, se mostram contrárias a um novo acordo, o que gera maiores problemas à família da Sra. Jandira uma vez que sem uma flexibilização das partes não será possível a liquidação da divida, determinando que ela, sua irmã (esquizofrênica) e, sobretudo, seus filhos continuem a viver em condições sub-humanas, sem ao menos possuírem as condições básicas de salubridade para que possam se desenvolver e trilhar a vida com seus próprios pés.

4. Assim sendo, tendo em conta a legitimidade atribuída ao Ministério Público pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 201, V), tanto para tutela de interesses individuais como metaindividuais, pretende-se, com esta ação, a preservação dos direitos das seguintes crianças e adolescentes:

• Willian Augusto Ferreira (31/03/88)

• Wellington Ferreira (09/05/92)

• Paola Cristina Ferreira (23/08/93)

• Paloma Kenia Angelina Ferreira (24/03/96)

II – DO DIREITO.

5. Em primeiro lugar, deve-se sublinhar que a pretensão ora deduzida vem escorada em diversos dispositivos constitucionais, em especial naqueles consubstanciadores dos chamados Direitos Fundamentais.

6. O acesso à água e à energia elétrica, no atual patamar de desenvolvimento das relações sociais, constitui, antes de mais, pressuposto básico para concretização do princípio da dignidade humana, núcleo irradiador de diversos outros direitos fundamentais que estão sendo violados pelas empresas-rés, dentre eles, o direito à saúde (arts. 6º e 196 da CF), a defesa do consumidor (arts. 5º, XXXII e art. 170, V) e a proteção da infância e da juventude (art. 227).


7. Diga-se, nesse sentido, que as empresas demandadas são concessionárias do Poder Público e nada obstante colocam-se em desabrida violação ao comando contido no § 1º, do art. 227, da Constituição Federal que, em tintas claras, prescreve que “o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente…”.

8. No caso em pauta, falamos de crianças e adolescentes que, além da orfandade paterna, convivem com a mãe soropositiva, que necessita de constantes cuidados, de fora o fato dos presumíveis preconceitos sociais que devem cotidianamente experimentar.

9. Há de se anotar, induvidosamente, o caráter privado da relação obrigacional em pauta. Contudo, o contrato questionado alicerça-se, em primeiro lugar, na Constituição Federal que, sobre proteger os Direitos Fundamentais declinados, ao organizar nossa ordem econômica, aponta (art. 170, caput) que as relações econômicas são pautadas pela livre iniciativa, mas têm por objetivo maior “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

10. Peculiarmente oportuna, nesse sentido, a lição de J. J. GOMES CANOTILHO, ao sustentar a aplicação direta das normas constitucionais consubstanciadoras de direitos, liberdades e garantias. Vejamos:

“Aplicação direta não significa apenas que os direitos fundamentais se aplicam independentemente de intervenção legislativa. Significa também que eles valem diretamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a constituição”. (1)

11. Na situação exposta, o que existe é a flagrante violação de Direitos Constitucionais não pela lei, mas por um contrato e, sobretudo, por uma conduta empresarial, de empresas que parecem desconhecer o caráter público da atividade que prestam.

12. Não bastassem os argumentos acima alinhados, temos ainda que as rés estão a violar o art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, que prescreve que “os órgão públicos, por si ou suas empresas concessionárias, permissionárias ou qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.” (g.n.)

13. A noção de essencialidade do serviço está intimamente vinculada com a idéia de indispensabilidade; necessidade imperiosa e inafastável à luz da dignidade humana, evidenciando que o propósito do dispositivo foi de impedir a solução de continuidade de serviços como os de abastecimento de água e energia elétrica.

14. Compartilhando de entendimento, a manifestação da jurisprudência:

“Tarifa – Energia elétrica – Corte do seu fornecimento – ilegalidade – Hipóteses em que é vedado à concessionária de energia elétrica suspender seu fornecimento ao usuário, seja este público ou privado, sob alegação de atraso no pagamento das contas – Art. 22 do Código de Defesa do Consumidor – Segurança concedida – Recurso improvido” (I TACSP, Ap. 0781098-2, j. 16-12-98, 4ª Cam., rel. Juiz Térsio José Negrato)

15. Registre-se, ademais, que, neste caso a inadimplência não é resultado de um propósito de não pagamento, mas sim uma conseqüência econômico-social, sobremodo agravada pela patologia experimentada pela mãe dos infantes.

16. Pensando deste modo ( a falta do pai, o quadro patológico da mãe e a presença de uma portadora de doença mental), a conduta das rés chega a uma patamar de crueldade, violando mesmo o art. 5º, III, da Constituição Federal, que prescreve:

a) III – Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. ( grifo nosso)

17. Apesar deste dispositivo ser utilizado majoritariamente no sentido de se coibir qualquer tipo de tortura, não se pode deixar de relacionar o mesmo à proibição de submissão de seres humanos a tratamento desumano e degradante, como o em foram deixadas as crianças e adolescentes indicados.

18. Argumente-se, em acréscimo, que o devido processo legal foi violado, uma vez que o corte no fornecimento foi realizado sem que houvesse procedimento específico, em que se facultasse aos interessados a ampla defesa.

19. Ressalte-se, para finalizar, que a situação das crianças cuja proteção se reivindica encontra amparo ainda nas seguintes disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Artigo 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.’’

Artigo 4º: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder público assegurar, com absoluta prioridade, e efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”


Artigo 7º: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitem o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.’’

20. Irrecusável, portanto, a conclusão de violação a direitos primários das crianças e adolescentes arrolados.

III – DO CABIMENTO DA LIMINAR

21. Como afiançado, os direitos à vida e à dignidade da pessoa humana é assegurado pela Magna Carta, sendo certo que a efetivação de políticas sociais públicas que permitam a garantia desses direitos é competência do Poder Público.

22. Prescindível dizer que se aguardar todo o trâmite processual implicará a permanência das crianças e adolescentes em situação de risco e de insalubridade, acarretando conseqüências mais graves à saúde e a vida dos mesmos, ou seja, degradando o bem da vida em questão.

23. Além do mais, a antecipação da tutela seria apenas uma maneira de fazer as partes retornarem ao status quo, uma vez as empresas agiram sem o respaldo do devido processo legal.

24. À evidência que o processo supõe efetividade: sem ela, o Poder Judiciário seria inerte ante os desmandos e ilegalidades ocorridos no seio social, pois Justiça tardia é negativa de Justiça.

25. Atento a mencionada situação, o estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 213, § 1º, autoriza o Magistrado a conceder a tutela liminarmente sempre que relevante o fundamento da demanda e houver justificado receito de ineficácia do provimento final.

26. É hipótese dos autos: todas as crianças acima arroladas estão impedidas de exercer direito fundamental, consubstanciado no direito ao desenvolvimento em condições dignas de existência, por ato unilateral e de constatado poder superior em relação à parte postulante, o que materializa a relevância da demanda.

27. Aguardar-se o desfecho da demanda, após longa instrução, certamente tornará ineficaz o provimento final, pois as crianças já terão perdido suas infâncias e adolescências em situações degradantes, deixando a ação carente de objeto e negando prestação jurisdicional indispensável para o sadio desenvolvimento dos infantes.

28. Mercê de tais ponderações, cruciais o cabimento e a pertinência da concessão de tutela liminar na hipótese, sob pena de ferir-se os princípios primordiais da dignidade humana e da vida.

IV – DO PEDIDO

29. Diante do exposto, requer-se:

a. a concessão da tutela antecipada no sentido de determinar às requeridas que restabeleçam o fornecimento de água e de energia no imóvel acima, devido à urgência e necessidade específica das crianças e adolescentes citados, no prazo de 24 horas.

b. para dar efetividade à medida, proceda-se também à intimação pessoal dos presidentes das referidas empresas, determinando a continuidade do abastecimento, sob pena de desobediência, sem prejuízo de outras sanções e medidas de apoio.

c. a citação das rés para que, querendo, contestem a presente, prosseguindo-se no feito até final julgamento, quando a ação será julgada procedente, tornando definitiva a proibição de solução de continuidade no fornecimento de água e energia elétrica no imóvel citado, sem prejuízo dos demais ônus da sucumbência.

30. O autor fará prova do alegado por todos os meios de prova em direito permitidos, inclusive a testemunhal, a documental, a diligencial, a pericial, etc.

Dá-se à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).

São Paulo, 28 de abril de 2005

VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR

Promotor de Justiça

MOTAURI CIOCHETTI DE SOUZA

Promotor de Justiça

Nota de rodapé:

(1) .- DIREITO CONSTITUCIONAL. Ed. Almedina, p. 192.

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