Poder desarmado

Membros do Judiciário não devem ter porte de armas

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  • Grijalbo Fernandes Coutinho

    é desembargador no TRT-10 (DF e TO) mestre em Direito e Justiça pela UFMG autor da pesquisa e do livro Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhadora – A inexorável relação entre a nova marchandage e degradação laboral as mortes e mutilações no trabalho (LTR 2015) ex-presidente da Anamatra.

9 de maio de 2005, 20h53

É inquestionável o fato de que os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público estão sujeitos, diante das relevantes funções estatais desempenhadas, a atos violentos de represálias por parte dos infratores do ordenamento jurídico. Os agentes políticos que atuam na área penal, na maioria das vezes, vivem sob constante ameaça do crime organizado de quadrilhas das mais diversas origens.

Não podemos desprezar que tantas outras categorias profissionais do Estado também exercem atividades propiciadoras da reação criminosa de pessoas e grupos. Do mesmo modo, trabalhadores e lideranças sindicais não vinculados ao poder público, em determinadas regiões do país, em face da postura assumida em defesa de idéias, da vida com o mínimo de dignidade e de princípios, estão com a integridade física ameaçada o tempo todo, provavelmente em grau muito mais elevado do que os próprios agentes do poder público.

A luta pela urgente reforma agrária e as cruzadas cívicas pela eliminação do vexatório trabalho escravo enfrentam resistências dos “quartéis armados” de milícias mercenárias contratadas por particulares que se julgam donos da terra e detentores do direito de tirar a vida alheia. A violência decorrente do quadro de miséria que assola o País, sem nenhuma dúvida, oferece ao morador mais humilde das metrópoles brasileiras o risco permanente de desaparecer a qualquer momento.

Nenhuma vida vale mais do que outra. As garantias da magistratura existem para a defesa da sociedade e não para a proteção solitária do juiz.

Nos últimos meses, por evidente equívoco, outras categorias profissionais do serviço público têm solicitado ao Congresso Nacional a concessão do direito do porte de arma para os seus integrantes, havendo a respectiva aprovação legislativa da medida em sucessivas votações.

Será que a solução passa pelo armamento de todos os ameaçados?

É evidente que não.

E assim o é porque a autorização conferida a alguns para ostentar tal “prerrogativa” tem se revelado um retumbante fracasso como meio de defesa de qualquer cidadão ameaçado. O crime planejado, especialmente o de encomenda, como de resto toda e qualquer ação covarde, não permite ao detentor do porte de arma ter uma reação capaz de evitá-lo.

Somente uma pesquisa com base científica será capaz de desmistificar esse engodo, mas a análise do elevado número de atos de violência perpetrados contra agentes armados faz intuir conclusão desoladora da utilidade dessa estratégia. O direito de usar arma pode até produzir uma sensação enganosa de maior segurança. Lamentavelmente, os juízes e os promotores, quando ameaçados, ainda que detentores do porte de arma, acabam sendo vítimas fatais da violência.

Por outro lado, o Estado deve ser capaz de oferecer real segurança aos seus agentes políticos ameaçados e a todos os cidadãos em situação de risco, por meio de planejamento, da investigação científica, da repressão sistemática aos grupos e bandos armados, viabilizando, assim, com ações práticas, o funcionamento de um aparelho policial voltado para a defesa da vida humana.

Não vamos coibir a violência com a utilização de ações individuais. É preciso, evidentemente, selecionar prioridades orçamentárias governamentais, a não ser que o Estado Democrático de Direito previsto na Constituição Federal seja tão frágil quanto o papel que o carrega, alvejado sem dó nem piedade pelos verdadeiros donos do poder.

O porte de arma conferido a juízes e a membros do Ministério Público pode servir à prática de violência pelo próprio agente do Estado, sem que tenha sofrido qualquer ameaça e sem relação com o desempenho de suas funções. É triste, mas necessário, constar que isto ocorre, como se deu nos casos do juiz de Sobral, no Ceará, cujo ato brutal terminou por ceifar a vida de um indefeso trabalhador, e do promotor de São Paulo que matou um de dois jovens contra os quais atirou, sem motivo relevante até o momento confirmado.

Não se olvide de que também o aparato policial está a merecer algumas restrições na utilização das armas, além de treinamento eficaz e profundo estudo psicológico do perfil de seus agentes, responsáveis, em muitas ocasiões, por atos bárbaros de violência.

No Estado Democrático de Direito, ao contrário do que ocorre no Estado com viés “policialesco”, não há lugar para o armamento desenfreado da população, nem mesmo para o oferecimento de uma falsa segurança a juízes e promotores mediante o porte de arma individual. Tal caminho implica na omissão criminosa do Estado em tarefa que é indelegavelmente sua.

A Carta Política, que não tolera normas de conteúdo vazio, estabelece o princípio da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e como regra inafastável em qualquer hipótese de interpretação, integração ou aplicação do sistema jurídico. Sob tal direcionamento, impossível me parece adotar medidas estimuladoras da violência contra aqueles a quem os agentes públicos primeiro devem voltar a força de sua defesa.

Reflito aqui posição pessoal, registrando que a matéria será objeto de amplo debate entre juízes do trabalho brasileiros.

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