Produtividade judicial

Justiça é lenta porque juizes resistem às mudanças

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6 de maio de 2005, 21h41

Um juiz de primeira instância de São Paulo criou um método de correição permanente que faz o acompanhamento digital dos processos. Sua invenção é considerada inovadora e garante a máxima eficiência ao seu trabalho, mas continua circunscrita à vara onde ele atua. O Tribunal de Justiça de São Paulo não se interessou em conhecer o sistema e muito menos em implantá-lo no estado.

Este é apenas um exemplo de como a falta de iniciativa e a inépcia administrativa do Judiciário de segunda instância contribuem para dificultar a distribuição de justiça no país. É um exemplo também da mentalidade conservadora dos desembargadores, da rigidez hierárquica e do sistema de gestão centralizada que caracterizam o segundo grau de jurisdição brasileiro.

Este modo de ser e de agir explica, em parte, porque o maior TJ do país tem hoje 600 mil recursos parados à espera de julgamento, além das ações que sobem todos os dias da primeira instância. Elucidam, ainda, casos como o do Tribunal de Justiça do Paraná, onde um processo demora cerca de 40 dias para ser re-autuado (procedimento que consiste em trocar a sobre-capa da primeira para a da segunda instância) e a razão de apenas quatro tribunais de Justiça do Brasil terem conseguido julgar todos os processos que entraram na segunda instância em 2003.

De acordo com levantamento feito pela revista Consultor Jurídico com base no Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, do Supremo Tribunal Federal, 863.173 processos deram entrada nos Tribunais de Justiça dos 23 estados pesquisados. Foram julgados 679.832. Isso significa que, de cada dez processos apresentados à Justiça, dois não foram julgados. Os dados são de 2003.

Apenas os tribunais de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Amapá e Goiás conseguiram dar vazão a todos os recursos entrados. O Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país, julgou apenas 65% dos casos que recebeu. Por causa disso, um processo demora cerca de cinco anos apenas para ser distribuído em São Paulo.

Abaixo da corte paulista, dentre os que forneceram dados ao STF, estão o TJ do Pará e do Distrito Federal (empatados com 55% de eficiência), Piauí (51%), e Roraima, que conta com o pior desempenho no ano, com apenas 31% de produtividade.

Ao levar em conta o desempenho dos desembargadores, o tribunal do Rio Grande do Sul é primeiro da lista, com 1.274 recursos julgados por cada desembargador. Em seguida vêm São Paulo, com 848 processos cada um, Santa Catarina, com 844, e Mato Grosso do Sul, com 844.

Conservadorismo

Há pouca renovação na Justiça estadual de segundo grau. Estudo da Associação dos Magistrados Brasileiros indica que a faixa etária dos desembargadores estaduais é mais alta que a identificada nas esferas federais e trabalhistas. Por estarem a mais tempo na atividade jurisdicional, eles tendem a ser mais avessos a mudanças que os mais jovens. É a história do “eu sempre fiz assim e sempre deu certo”. Não teria porque mudar, agora, práticas já cristalizadas ao longo dos anos. A tendência ao conservadorismo é, aqui, muito maior.

Dentro desse raciocínio inclui-se outro dado. De todas as esferas do Judiciário, a que registra o menor grau de informatização é a estadual. Nela, apenas 60% dos usuários, taxa que inclui também os funcionários das cortes, usam computadores contra os 73% averiguados na Justiça Trabalhista e os 90% da Justiça Federal.

A tendência também pode ser conferida pela resistência à utilização do artigo 557 do Código de Processo Civil. O dispositivo autoriza que recursos de matérias com jurisprudência já pacificada sejam resolvidos monocraticamente pelo relator, sem necessidade de levar o processo à apreciação de todos os desembargadores que compõem a turma. Por meio dele, não há porque esperar a próxima reunião, que costuma ser semanal, para decidir sobre uma ação. Decide-se individualmente, o que aumentaria a produtividade.

“Os tribunais estaduais são os mais avessos a mudanças. Pela própria tradição do Judiciário [os desembargadores] chegam ao tribunal cansados, depois de já terem sofrido no início de carreira”, diz o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato. As cortes de segunda instância são, por essa razão, mais “elitistas, mais distantes da sociedade e os que menos querem mudar o estado de coisas atual”.

Cultura prolixa

O conservadorismo leva a práticas como a desnecessária produção de sentenças eruditas em grau de recurso, carregadas de invocações doutrinárias e jurisprudenciais. Por ser uma revisão da decisão dada em primeira instância, a resposta poderia ser mais singela. Isso porque quando chega aos Tribunais de Justiça, o processo “já conta com razões e contra-razões muito bem fundamentadas. Não é costumeiro que o juiz de primeiro grau erre, não há porque as decisões serem proferidas com outras expressões. Bastaria mantê-las com uma ou outra alteração”, diz o desembargador do Tribunal de Justiça paulista e ex-presidente do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo Renato Nalini.

Acórdãos mais simples, mas não menos fundamentados, podem ser a solução para dar vazão aos mais de 600 mil processos represados no TJ-SP, por exemplo. Além disso, uma saída é dividir as reclamações por temas – matérias iguais podem ser julgadas de uma só tacada. No lugar de 18 laudas, poderiam ser feitas somente duas. “A decisão mais insuportável é a que não vem nunca. Quando começaram a notar que o serviço começa a sair mais rápido, os recursos que não têm razão e são impetrados pela confiança na lentidão deixarão de ser levados à Justiça”, afirma Nalini.

O fato é que a saída para a atual crise no Judiciário passa pela simplificação do sistema recursal, pela racionalização da demanda, pela identificação e combate às fontes de litigiosidade e, claro, pela informatização. A contratação de funcionários – e o conseqüente aumento do número de desembargadores – como muitos defendem, deve ser não a solução, mas a última resposta aos problemas existentes hoje. A tradicional resposta é insuficiente diante do aumento da demanda e esbarra em um impedimento orçamentário: os limites resultantes da circunstância fiscal no país.

“[Aumentar a folha] é como tentar esvaziar uma piscina com o copo d’água. Uma hora você consegue esvaziá-la, mas o tempo que levará será muito maior”, diz o juiz convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e Coordenador do Gabinete Extraordinário para Assuntos Institucionais do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino. Na mesma fonte bebe Busato. “O problema da má-administração é muito maior que o da falta de funcionários. A superposição de funcionários dos tribunais de Justiça é muito mais alta se comparada a empresas privadas, que tem produtividade muito melhor”, diz.

Não que a falta de orçamento não influencie o bom andamento das cortes. O Tribunal de Justiça fluminense registra eficiência maior que o paulista, por exemplo, mas tem também um orçamento maior. Ao contrário do TJ-SP, o tribunal do Rio conta com o fundo de reaparelhamento e modernização – financiado pelo integral repasse das custas judiciais ao Tribunal –, que gera orçamento sem pressionar as contas públicas estaduais. No fim das contas, o TJ-RJ gasta dois pontos percentuais a menos do orçamento estadual que o TJ-SP.

“A insuficiência deve ser relativizada”, diz Dino. Mas não há porque cruzar os braços e não olhar para exemplos de sucesso implementados em outros tribunais e nas instâncias de primeiro grau. Afinal, não se trata de competição. Trata-se de empenhar-se para que a Justiça seja feita. E logo.

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