Deslocamento negado

Fonteles arquiva pedido de federalização de crimes

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4 de maio de 2005, 13h58

O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, determinou o arquivamento do incidente de deslocamento de competência dos sete crimes cometidos contra moradores de rua na cidade de São Paulo. As agressões aconteceram em agosto de 2004. Foram vítimas dos crimes hediondos 13 moradores de rua. Sete morreram, todos golpeadas na cabeça.

O pedido de federalização do crime havia sido feito pela Fundação Interamericana de Direitos Humanos e o pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo. A reclamação foi feita com base na emenda constitucional da reforma do Judiciário que abriu a possibilidade de modificação de competência para julgamento dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos.

A representação reclamava que o Superior Tribunal de Justiça se manifestasse favorável ao deslocamento de competência, para a Justiça Federal, do inquérito policial – que tramita no 1º Tribunal do Júri da Capital. O inquérito apura a responsabilidade de múltiplos homicídios, consumados e tentados, contra moradores de rua.

Em seu despacho, o procurador-geral da República salienta que falar em federalização dos chamados crimes contra os direitos humanos é um grande equívoco. Para ele, a rigor, o incidente de deslocamento de competência deve-se dar em casos excepcionais.

“Trata-se de uma jurisdição subsidiária, que deve ser acionada, verbi gratia, apenas naquelas circunstâncias em que os Estados-membros apresentem quadro de leniência na definição dos feitos criminais movidos contra os que violam os direitos humanos, ou mesmo tolerem a desmoralização, pela reversão do quadro procedimental, dos que promovem a defesa dos direitos humanos”, afirmou Fonteles.

Nas investigações iniciais, a polícia suspeitou de que o massacre tivesse envolvimento com o tráfico de drogas na região central e da disputa por pontos de segurança clandestina. Até agora as suspeitas não foram confirmadas.

Dois policiais militares e um amigo deles chegaram a ser presos, mas já estão soltos. Em novembro do ano passado, o Ministério Público considerou as provas da polícia insuficientes e pediu a liberdade dos suspeitos.

Leia a íntegra do despacho do procurador-geral da República

PGR nº 1.00.000.011297/2004

INTERESSADO: FUNDAÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E OUTRO

ASSUNTO: INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

DESPACHO:

A FUNDAÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS e o CENTRO SANTO DIAS DE DIREITOS HUMANOS DA ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO vêm perante esta Procuradoria-Geral da República protocolar representação de instauração de incidente de deslocamento de competência, com fulcro no § 5º, do artigo 109, da Constituição Federal, inserido pela recente emenda 45/2004.

2. Descrevem os requerentes a ocorrência de 7 (sete) homicídios de moradores de rua, acontecidos no período de 19 de agosto a 2 de setembro de 2004, sustentando a necessidade da instauração de incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal perante o e. STJ, em síntese, diante da absoluta inércia da polícia civil estadual e sob o argumento de que as investigações não estão comprometidas com a busca da verdade dos fatos, tendo sido instauradas apenas “com o interesse em provocar querelas de natureza político partidária entre as administrações estadual e municipal” (fls. 02). A respeito:

“Uma vez noticiados esses fatos, houve um intenso clamor popular de repúdio aos ataques realizados, dando início, de um lado, à uma reação da sociedade por meio de suas entidades de Direitos Humanos e de outro, ás investigações policiais.

Estas investigações, contudo, foram instauradas, como percebe agora a sociedade paulistana, não com o intuito de encontrar os responsáveis por esses atos bárbaros mas sim, com o interesse em provocar querelas de natureza político partidária entre as administrações estadual e municipal.

Num primeiro momento, sem uma denúncia concreta que lhe fornecesse suporte, passou a polícia a procurar provas que incriminassem membros da Guarda Civil Metropolitana, objetivando, com isso, lançar a responsabilidade pelo ocorrido sobre a administração municipal.

Em um segundo instante, não logrando êxito na primeira tentativa, e com isso passaram-se cerca de trinta dias, foi lançada a gratuita hipótese de que os crimes teriam sido cometidos por skinheads, sem, no entanto, lograr comprovar esta versão.

Num terceiro momento, vendo frustadas as teorias diversionistas lançadas e sob pressão da opinião pública, passou a interrogar os moradores de rua de modo ameaçador, como comprovam os depoimentos dos servidores municipais que acompanham a presente representação, de modo a inibir declarações que pudessem apontar os culpados, justamente no momento em que eram fortes os inícios colhidos pela imprensa e pelas entidades de Direitos Humanos, no sentido da participação de policiais militares e seguranças privados na ação delitiva.

Em vista destes graves acontecimentos, o signatário da presente, ainda antes do final de agosto, solicitou que a Polícia Federal assumisse as investigações, fato que, como se sabe, não ocorreu.

Hoje, decorridos mais de quatro meses das eliminações dos moradores de rua, a polícia só conseguiu apenas o indiciamento de dois policiais militares e segurança privado que foram denunciados por formação de quadrilha e tráfico de drogas e não homicídio qualificado, como deveria ter ocorrido. Essa denúncia, entretanto, restou não recebida o que implicou na imediata soltura desses supostos responsáveis, sem que, desse dia em diante, nenhuma medida tenha sido tomada para a apuração dos fatos.

A precariedade dos dados, relativamente à identidade das pessoas assassinadas e gravemente feridas, deve-se ao fato de que o procedimento corre em sigilo, decretado a pedido do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa e que somente poderá ser quebrado mediante intervenção dessa Douta Procuradoria.

O caso, neste momento, se encontra sem o devido andamento, aguardando o esquecimento público, para então ser definitivamente arquivado.

Esta situação só está ocorrendo, a nosso juízo, em virtude do envolvimento de agentes policiais estaduais no caso. A polícia estadual não tem isenção suficiente para levar as investigações a termo e encontrar os responsáveis pelos graves fatos narrados na abertura desta representação.

Assim, face ao exposto e, ainda, aos documentos acostados a presente, fica demonstrado que é necessária a transferência das investigações para o âmbito federal, para que possam ter regular prosseguimento com a apuração devida do ocorrido e punição dos agressores” (fls.02/03).


3. Consoante salientado em recente pleito de deslocamento de competência ajuizado por esta Procuradoria-Geral da República perante o egrégio Superior Tribunal de Justiça – no caso do assassinato da irmã Dorothy Stang – o texto constitucional erige dois requisitos a amparar o pleito de federalização dos crimes contra os direitos humanos:

a) a grave violação de direitos humanos; e

b) a garantia de que o Brasil cumpra com as obrigações decorrentes de pactos internacionais, firmados sobre direitos humanos.

4. A douta Procuradora do Estado de São Paulo Dra. Flávia Piovesan, no artigo Direitos Humanos Internacionais e Jurisdição Supra-Nacional: A exigência da Federalização [1], vem destacar a possibilidade de se promover o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, verificando como preenchido os requisitos acima mencionados, na excepcional situação de demora injustificada na investigação, processo ou julgamento de graves violações de direitos humanos ou quando haja fundado receito de comprometimento da apuração dos fatos ou da atuação da Justiça local, argumentando que tal hipótese “está em absoluta consonância com a sistemática processual vigente (vide o instituto do desaforamento), como também com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos (que admite seja um caso submetido à apreciação de organismos internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no dever de proteger os direitos humanos)”.

5. Ocorre que, in casu, não restou evidenciada a inércia injustificada na apuração dos fatos narrados na exordial, nem tampouco qualquer descomprometimento da apuração dos acontecimentos descritos. O Exmo. Sr. Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo e o Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça do Estado do mesmo Estado, respectivamente, a fls. 42-51 e 53-60, prestaram as devidas informações, afastando os fatos e argumentos trazidos pelos requerentes.

6. O Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo deixa claro a fls.53/60 que os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal não se mostraram inertes. Isto porque foi instaurada ação penal pela prática de crime de quadrilha (Processo-criminal nº 050.04.079248-0) e, quanto aos delitos de homicídio narrados na exordial, constata-se que foi instaurado o inquérito policial n. 052.04.3151-0, sendo que o Ministério Público no Estado de São Paulo “está dando continuidade ao acompanhamento dos trabalhos policiais, aprofundando, inclusive, por meios próprios, todas as vertentes investigatórias que o caso permite vislumbrar, concluindo que a representação ora formulada não encontra respaldo na realidade dos fatos que consubstanciaram o trabalho investigatório desenvolvido até o presente momento, que não sofreu qualquer tipo de interrupção como ainda se encontra em pleno andamento” (fls. 56/57).

7. Dentre as diligências realizadas pelo Ministério Público Estadual, verbi gratia, vale citar:

“Observa-se, pelo conteúdo do inquérito policial, cuja cópia, na íntegra, segue anexa, que durante as investigações policiais foram ouvidas 2 (duas) vítimas – as demais, na avaliação dos médicos que as assistiam, não apresentavam condições físicas para prestar declarações minimamente confiáveis (…).

Ainda no curso das investigações policiais, no tocante à prova técnica, conforme indicações constantes do Relatório Final elaborado pela polícia, procederam-se à realização de diversos exames periciais (vistorias nos veículos apreendidos, exames bioquímicos em objetos apreendidos, exames em locais dos crimes, exames de identificação papiloscópica, exames de corpo de delito nas vítimas, cujos laudos encontram-se acostados aos autos, restando fazer a juntada de alguns dos seus respectivos laudos e a provável realização de exames de corpo de delito complementares nas vítimas (…).

Além disso, procederam-se à quebra do sigilo telefônico dos 3 (três) indiciados e cumpriram-se mandados de busca e apreensão domiciliar em relação aos 3 (três) indiciados e a outra pessoa sobre a qual recaíram suspeitas (…)” (fls. 54 – informações do Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo).

8. Daí se verificarem afastadas as alegações de inércia das autoridades públicas responsáveis pela persecutio criminis.

9. Importante destacar que, consoante certidão acostada a fls. 67/70, o Processo-criminal n.º 050.04.079248-0 se encontra na fase de instrução e julgamento.

10. Ademais, também não restou comprovado o fundamento trazido pelos requerentes de que as investigações dirigidas pela Polícia Civil no Estado de São Paulo estão descomprometidas com a busca da verdade dos fatos.

11. O Exmo. Sr. Secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo aponta que:


“ Para arrimar sua pretensão o requerente recorre a fatos inverdadeiros e, até, caluniosos. Afronta a seriedade da secular polícia judiciária de São Paulo – a qual jamais deixou quedar na penumbra um crime de repercussão – a assertiva de que as investigações foram instauradas ‘com o interesse em provocar querelas de natureza político partidária entre as administrações estadual e municipal” (fls. 45).

12. A referida Autoridade Pública vem a justificar que “houve, sim, em certo instante, o direcionamento das investigações sobre os beleguins municipais, todavia não sendo estas gratuitas porque motivadas por depoimentos de testemunhas, indícios estes que jamais poderiam ser desconsiderados simplesmente pelo temor de suscitar o desagrado do leal defensor da Prefeita Municipal, Senhor Hélio Bicudo. No instante seguinte a polícia paulista investigou, e prendeu, integrantes da Polícia Militar de São Paulo, numa prova irrefutável de imparcialidade e intransigência nas apurações (fls. 45). Acrescenta que “ A Polícia Civil não desprezou quaisquer indícios como subsídio á descoberta da verdade. Por esse motivo não ignorou uma carta apógrifa portada pelo Padre Júlio Lancelotti, a qual lançava suspeitas sobre certo grupo racista (no caso skinheads)”.

13. É de mister apontar que eventual crime de abuso de autoridade praticado por alguns policiais civis durante a oitiva do Sr. “Genildo”, descrito a fls. 02 e 12/20, pelos requerentes, não é tido como fundamento capaz de ensejar o deslocamento de competência de todo o feito. Caracteriza-se como um fato isolado, que não tem o status, no caso sub examen, de “grave violação aos direitos humanos”, além de não ter substancialmente influenciado na persecução dos crimes narrados nestes autos, conforme aponta o Exmo. Sr. Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo (fls. 46).

14. O acolhimento do incidente de deslocamento de competência, previsto no artigo 109, § 5º, da CF, consoante bem salientou o Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo “deve ser insubstituível, ou seja, não se justifica a sua aplicação se houver a possibilidade de adoção de outras medidas que possam garantir a repressão às condutas ofensivas aos direitos humanos” (fls. 59).

15. Ao final, cumpre salientar que se falar em “federalização” – pura e simples – dos chamados “crimes contra os direitos humanos” é um grande equívoco. Isto porque, a rigor, o incidente de deslocamento de competência deve-se dar em casos excepcionais. Trata-se de uma jurisdição subsidiária, que deve ser acionada, verbi gratia, apenas naquelas circunstâncias em que os Estados-membros apresentem quadro de leniência na definição dos feitos criminais movidos contra os que violam os direitos humanos, ou mesmo tolerem a desmoralização, pela reversão do quadro procedimental, dos que promovem a defesa dos direitos humanos.

16. No caso examinado, tanto não se constata.

17. Ante o exposto, determino o arquivamento do presente expediente.

Brasília, 11 de abril de 2005.

CLAUDIO FONTELES

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

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