A prova que falta

Justiça manda União identificar ossada de desaparecido

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29 de junho de 2005, 17h09

A União terá de fazer o exame de DNA nas ossadas encontradas no cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo, e levadas para a Unicamp há quase 15 anos. A determinação é resultado de liminar concedida pelo juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara da Justiça Federal no Rio de Janeiro, em ação ordinária apresentada por Maria Helena Carvalho Molina, mãe do desaparecido político Flávio Molina.

Construído no começo dos anos 70, o cemitério de Perus foi, durante muito tempo, uma espécie de depósito de cadáveres sem identificação de ativistas de esquerda e indigentes.

Além de confirmar que parte dos ossos encontrados é de Flávio, morto em decorrência de perseguição política em 1971, o resultado do teste de DNA determinado pelo juiz da 17ª Vara Federal poderá instruir uma Ação Ordinária de Responsabilidade Civil com Ressarcimento de Dano que a família move contra a União desde 1991. No processo, Maria Helena quer condenar a União pela prisão ilegal, tortura, morte e ocultação de cadáver de seu filho.

“É certo que até agora não se achou o cadáver; é certo, porém, que ele já foi encontrado num ‘monturo’ e que a inépcia da administração pública não conseguiu, ainda, entregar o que ainda resta de Flávio para a Autora”, afirma o juiz Araújo em sua sentença.

Segundo relatório da ONG Tortura Nunca Mais, apesar de morto desde 1971, somente oito anos depois a família, por investigação própria e com apoio dos Comitês Brasileiros de Anistia, tomou conhecimento do assassinato de Flávio Molina através de documentos oficiais anexados a um processo na 2ª Auditoria da Marinha, sem que jamais tivesse havido uma comunicação, mesmo que informal a seus familiares. Preso no dia 06 de novembro de 1971, em São Paulo, por agentes do temido DOI/CODI, Molina foi torturado até a morte.

De acordo com o documento que consta da auditoria militar, o corpo do rapaz, na época com 24 anos de idade, tinha sido enterrado como indigente no cemitério em Perus, sob o nome de Álvaro Lopes Peralta. O Tortura Nunca Mais afirma, ainda, que nem ao menos retirar os ossos de Flávio foi permitido à família, já que cinco anos após sepultado em uma cova individual seu corpo foi transferido para uma vala comum.

Flavio Molina estudava química na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em julho de 1969, já perseguido por agentes da repressão, deixou a casa dos pais, trancou matrícula na UFRJ e passou a viver como clandestino, militando na ALN (Aliança Libertadora Nacional). Teve duas prisões preventivas solicitadas. Entre novembro de 1969 e meados de 1971 viveu em Cuba. Seu último contato com a família, sempre através de encontros rápidos ou cartas, aconteceu em julho de 1970.

Em sua sentença, o juiz Eugênio Rosa de Araújo afirma que a medida cautelar preordenada à manutenção da ossada encontrada mas ainda não especificada, garantirá o desate do segundo processo e tortura narrado nos autos, o da Autora, permitindo que também ela possa morrer em paz, dando um fim nos seguimentos, ainda sem solução.”

Processo nº 99.0056856-7

Sentença

Autores: MARIA HELENA CARVALHO MOLINA

Réu: UNIÃO FEDERAL

Juiz Federal: EUGÊNIO ROSA DE ARAUJO

SENTENÇA

I – Relatório

Trata-se de ação ordinária proposta por MARIA HELENA CARVALHO MOLINA em face da UNIÃO FEDERAL, com a pretensão de concessão de liminar que antecipe a produção de prova, a fim de instruir o processo nº 91.01.18021-5, movido pela Autora em face da União Federal; de que seja determinado o exame de DNA nas ossadas que restam na UNICAMP; e, caso não tenha seu pleito aceito, que as citadas ossadas sejam transferidas para um local onde não possam vir a perecer e onde possa ser realizado o citado exame.

Afirma a Autora que propôs uma Ação Ordinária de Responsabilidade Civil com Ressarcimento de Dano em face da União Federal, nº 91.01.18021-5, buscando condená-la pela prisão ilegal, tortura, morte e ocultação de cadáver de seu filho, Flávio Molina, morto em decorrência de perseguição política em 1971.

O corpo de seu filho foi enterrado no cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo. Em 1990 as ossadas encontradas foram transladadas para a UNICAMP, com o objetivo de serem identificadas.

Ocorre, no entanto, que as ossadas se encontram em péssimo estado de conservação, apresentando o risco de se tornar impossível a identificação, o que viria a impedir a produção de prova no processo nº 91.01.18021-5.

Documentação à fls. 06/67.

Custas recolhidas à fls. 68.

Deferida a prova referente à identificação do DNA da Autora à fls. 154.

Devidamente citada o Réu contestou à fls.165/168 alegando ilegitimidade da União por considerar responsabilidade dos entes que comprometeram-se em desvendar a alegada perseguição política a conservação e a identificação das ossadas.

Argüiu também ilegalidade do pedido da Autora em querer perícia para caso particular e sem o consentimento da Comissão Especial, conforme o art. 9º, II da Lei nº 9.140/95.

É o relatório. Decido

II – Fundamentação

“Memória

Amar o perdido

Deixa confundido

Este coração.

Nada pode o olvido

Contra o sem sentido

Apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas

Muito mais que lindas,

essas ficarão. “

(Carlos Drummond de Andrade)

O pedido deve ser julgado procedente.

Com efeito, torna-se imperiosa a identificação da ossada do filho da Autora (Flavio Molina) em meio aos inúmeros restos mortais de cadáveres encontrados no cemitério de Perus e, como sempre, uma quantidade de Instituições vêm trabalhando desordenadamente para identificar a morte e dar-lhe uma exéquia cristã.

Consta dos autos que, de fato, neste aglomerado de cadáveres encontra-se a ossada do filho da Autora, restando, tão somente, que os poderes constituídos façam seu dever e recorram ao exame de DNA para a identificação da ossada.

O Ministro da Justiça, a fls. 16, reconheceu a condição de desaparecido em decorrência de atividade política (Art 4º I, b, da Lei 9.140/95) de Flavio Molina, o que denota o fumus bonus iuris da presente medida cautelar.

Por outro lado, o periculum in mora se revela na inércia, desídia e descaso das autoridades estaduais e federais no que concerne a dotar as instituições técnicas dos meios mínimos necessários para p regular exercício de suas atividades, deixando à descoberto crimes escabrosos ocorridos nos anos da Ditadura, varridos para baixo do tapete vermelho do superávit primário por onde desfilam, galhardamente, os hoje “companheiros” que, gostosamente, sobreviveram ao massacre.

A documentação dos autos demonstra que o corpo do filho da Autora se encontra num perdão da expressão, monturo de cadáveres a serem oportunamente analisados.

Isto é inaceitável; é a barbárie do Estado. A Autora, além de ter seu filho torturado e morto, agora tem que ficar olhando para uma caveira se perguntando “é ou não é, eis a questão”.

O tratamento que está sendo dado à Autora é em tudo equivalente a uma tortura moral e o Judiciário – que agora vai ser uma maravilha com o Conselho Nacional – tem que dar uma resposta com um mínimo de eficácia e sem hipocrisia.

É certo que até agora não se achou o cadáver; e certo, porém, que ele já foi encontrado num “monturo” e que a inépcia da administração pública não conseguiu, ainda, entregar o que ainda resta de Flavio para a Autora.

Trata-se de situação em condição suspensiva – o corpo será periciado, assim que encontrado – podendo receber do judiciário não uma sentença condicional, o que é vedado pelo ordenamento processual civil, mas uma prestação jurisdicional que decida a relação jurídica de direito material pendente de condenação, a saber: encontrar a ossada, que seja periciada.

O STJ em aresto de lavra do Min. Sálvio de Figueiredo (Resp. 16.4110)

“PROCESSO CIVIL. RELAÇÃO JURÍDICA CONDICIONAL. POSSIBILIDADE DE APRECIAÇÃO DO MÉRITO. SENTENÇA CONDICIONAL. INADMISSIBILIDADE. DOUTRINA. ART. 460, PARÁGRAFO ÚNICO, CPC. RECURSO PROVIDO.

I – Ao solver a controvérsia e pôr fim à lide, o provimento do juiz deve ser certo, ou seja, não pode deixar dúvidas quanto à composição do litígio, nem pode condicionar a procedência ou a improcedência do

pedido a evento futuro e incerto. Ao contrário, deve declarar a existência ou não do direito da parte, ou condená-la a uma prestação, deferindo-lhe ou não a pretensão.

II – A sentença condicional mostra-se incompatível com a própria função estatal de dirimir conflitos, consubstanciada no exercício da jurisdição.

III – Diferentemente da “sentença condicional” (ou “com reservas”, como preferem Pontes de Miranda e Moacyr Amaral Santos), a que decide relação jurídica de direito material, pendente de condição, vem admitida no Código de Processo Civil (art. 460, parágrafo único).

IV – Na espécie, é possível declarar-se a existência ou não do direito de percepção de honorários, em ação de rito ordinário, e deixar a apuração do montante para a liquidação da sentença, quando se exigirá a verificação da condição contratada, como pressuposto para a execução.”

Dessa forma, o comando da presente medida cautelar, preordenada à manutenção da ossada encontrada mas ainda não especificada, garantirá o desate do segundo processo e tortura narrado nos autos, o da Autora, permitindo que também ela possa morra em paz, dando um fim nos seguimentos, ainda sem solução.

III – Dispositivo

Isto posto, julgo procedente o pedido para determinar à União Federal que, tão logo seja identificada a ossada de Flavio Molina, que seja imediatamente submetida à perícia com posterior remessa do inteiro teor da mesma para a requerente sob pena de, não o fazendo, incida em multa diária de 1.000,00 (um mil reais diários) a contar da data da conclusão do laudo pericial.

Custas ex lege e honorários de R$ 200,00.

Sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição.

P.R.I.

Rio de Janeiro, 02 de maio de 2005.

EUGÊNIO ROSA DE ARAUJO

Juiz Federal Titular da 17ª Vara

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