Base da Cofins

Leia o voto de Celso de Mello no julgamento da Cofins

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21 de junho de 2005, 18h09

O poder de tributar não dá o direito de o Estado “suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte”. Este foi um dos argumentos do ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, que acompanhou o voto do ministro Cezar Peluso e considerou inconstitucional o alargamento da base de cálculo da Cofins.

A constitucionalidade do alcance da contribuição foi suspensa no dia 18 de maio por um pedido de vista do ministro Eros Grau. Até o momento, o placar está em 5 a 3 contra o Fisco.

Além de Peluso e Celso de Mello, votaram contra a União os ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. Os votos que consideram o aumento constitucional são dos ministros Ilmar Galvão e Maurício Corrêa, já aposentados, e do ministro Gilmar Mendes.

Leia a íntegra do voto

18/05/2005 – TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 346.084-6 PARANÁ

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Tenho salientado, em diversas decisões que proferi no Supremo Tribunal Federal (RTJ 144/435-436, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 428.354/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), que os desvios inconstitucionais do Estado, no exercício do seu poder de tributar, geram, na ilegitimidade desse comportamento do aparelho governamental, efeitos perversos, que, projetando-se nas relações jurídico-fiscais mantidas com os contribuintes, deformam os princípios que estruturam a ordem jurídica, subvertem as finalidades do sistema normativo e comprometem a integridade e a supremacia da própria Constituição da República.

Cumpre assinalar, por isso mesmo, que o caso ora em exame justifica, plenamente, que se reiterem tais asserções, pois é necessário advertir que a prática das competências impositivas por parte das entidades políticas investidas da prerrogativa de tributar não pode caracterizar-se como instrumento, que, arbitrariamente manipulado pelas pessoas estatais, venha a conduzir à destruição ou ao comprometimento da própria ordem constitucional.

A necessidade de preservação da incolumidade do sistema consagrado pela Constituição Federal não se revela compatível com pretensões fiscais contestáveis do Poder Público, que, divorciando-se dos parâmetros estabelecidos pela Lei Magna, busca impor ao contribuinte um estado de submissão tributária absolutamente inconvivente com os princípios que informam e condicionam, no âmbito do Estado Democrático de Direito, a ação das instâncias governamentais.

Bem por isso, tenho enfatizado a importância de que o exercício do poder tributário, pelo Estado, deve submeter-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados no texto constitucional, que institui, em favor dos contribuintes, decisivas limitações à competência estatal para impor e exigir, coativamente, as diversas espécies tributárias existentes.

O fundamento do poder de tributar – tal como tem sido reiteradamente enfatizado pela jurisprudência desta Suprema Corte (RTJ 167/661, 675-676) – reside, em essência, no dever jurídico de estrita fidelidade dos entes tributantes ao que imperativamente dispõe a Constituição da República.

O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores – que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos – introduz, de um lado, um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, de outro, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre os indivíduos e o Poder.

Cabe relembrar, neste ponto, consideradas as observações que venho de fazer, a clássica advertência de OROSIMBO NONATO, consubstanciada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (RE 18.331/SP), em acórdão no qual aquele eminente e saudoso Magistrado acentuou, de forma particularmente expressiva, à maneira do que já o fizera o Chief Justice JOHN MARSHALL, quando do julgamento, em 1819, do célebre caso “McCulloch v. Maryland”, que “o poder de tributar não pode chegar à desmedida do poder de destruir” (RF 145/164 – RDA 34/132), eis que – como relembra BILAC PINTO, em conhecida conferência sobre “Os Limites do Poder Fiscal do Estado” (RF 82/547-562, 552) – essa extraordinária prerrogativa estatal traduz, em essência, “um poder que somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade” (grifei).


Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico, de um verdadeiro “estatuto constitucional do contribuinte”, consubstanciador de direitos e garantias oponíveis ao poder impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” Informativo/STF nº 125), culminam por asfixiar, arbitrariamente, o sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe, injustamente, o exercício de atividades legítimas, o que só faz conferir permanente atualidade às palavras do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (“The power to tax is not the power to destroy while this Court sits”), em “dictum” segundo o qual, em livre tradução, “o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto existir esta Corte Suprema”, proferidas, ainda que como “dissenting opinion”, no julgamento, em 1928, do caso “Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218).

É por isso que não constitui demasia reiterar a advertência de que a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos (ou ilicitudes) cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelas instâncias governamentais.

Assentadas tais premissas, que reputo necessárias ao julgamento deste recurso extraordinário, passo a apreciar o litígio constitucional ora em exame.

Como resulta claro dos votos já proferidos, a controvérsia instaurada na presente causa concerne à discussão em torno da alegada inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º, da Lei nº 9.718/98, que ampliou o conceito de faturamento, para, com base nesse mesmo conceito, veiculado em sede de legislação meramente ordinária (não obstante a regra inscrita no art. 110 do Código Tributário Nacional), abranger e compreender a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente do tipo de atividade por ela exercida e, também, da classificação contábil adotada para as receitas em geral.

Não se desconhece, Senhora Presidente, considerados os termos da discussão em torno da noção conceitual de faturamento, que a legislação tributária, emanada de qualquer das pessoas políticas, não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, para definir ou limitar competências tributárias.

Veja-se, pois, que, para efeito de definição e identificação do conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, o Código Tributário Nacional, em seu art. 110, “faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial…” (ALIOMAR BALEEIRO, “Direito Tributário Brasileiro”, p. 687, item n. 2, atualizada pela Professora MISABEL ABREU MACHADO DERZI, 11ª ed., 1999, Forense – grifei), razão pela qual esta Suprema Corte, para fins jurídico-tributários, não pode recusar a definição que, aos institutos, é dada pelo direito privado, sob pena de prestigiar, no tema, a interpretação econômica do direito tributário, em detrimento do postulado da tipicidade, que representa, no contexto de nosso sistema normativo, projeção natural e necessária do princípio constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal, consoante adverte o magistério da doutrina (GILBERTO DE ULHÔA CANTO, “in” Caderno de Pesquisas Tributárias nº 13/493, 1989, Resenha Tributária; GABRIEL LACERDA TROIANELLI, “O ISS sobre a Locação de Bens Móveis”, “in” Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 28/7-11, 8-9).

Cumpre destacar, neste ponto, a precisa e correta advertência que, sobre o tema, faz, com absoluta exatidão, o eminente Professor IVES GANDRA MARTINS, em memorial apresentado a esta Suprema Corte:

“O Supremo Tribunal Federal reconhece a distinção entre faturamento e receitas. Tanto assim o é que, quando da análise do art. 28 da Lei 7.738/89, que previa a incidência do FINSOCIAL sobre a receita bruta das empresas, a constitucionalidade desse dispositivo foi declarada, desde que o termo ‘receita bruta’ fosse equiparado a ‘faturamento’.

Alterando conceitos e institutos de direito privado utilizados pela Constituição Federal para definir competências tributárias, o Legislativo pretendeu, por meio da Lei 9718/98, consagrar a interpretação da Constituição a partir da lei, e não da lei a partir da Constituição, violando o princípio da hierarquia das normas e a supremacia do estatuto supremo.

Muito embora a Constituição brasileira seja, como todas as demais constituições, um sistema aberto, nem todas as normas constitucionais podem ser tidas como normas abertas; há, também, as chamadas normas constitucionais densas.

O constituinte previu, no art. 195, I, CF – na redação original – a possibilidade de o legislador federal instituir contribuição social sobre o faturamento. Essa previsão não outorga ao legislador ordinário qualquer margem de liberdade para alcançar outras receitas por meio dessa exação, que não aquelas que se revestem da natureza de faturamento. Trata-se de uma norma densa e não, de uma norma aberta, cuja concretização caberia ao legislador infraconstitucional.

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Ainda que se pudesse classificar o art. 195, I, CF como norma constitucional aberta, não seria deferido ao legislador ordinário, a pretexto de densificar esse dispositivo constitucional, pretender alcançar, a título de tributar o faturamento, receitas que não se inserem nessa realidade contábil/financeira, sob pena de restarem feridos os princípios da segurança jurídica, supremacia e rigidez constitucional.

De fato, o cidadão brasileiro tem, na Constituição Federal, a previsão exaustiva de quais as imposições tributárias que podem lhe ser exigidas. Ao ler a Constituição Federal, o contribuinte sabe que o seu faturamento pode ser alcançado pela COFINS (art. 195, I) e pelo PIS (art. 239), do que deflui a certeza de que as receitas financeiras e outras receitas, que são totalmente estranhas ao conceito de fatura, estarão a salvo dessa exigência e poderão ser realocadas com liberdade.

A conclusão de que o termo ‘faturamento’ adotado pelo constituinte pode ser interpretado de maneira extensiva para nele inserir a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua classificação contábil – como o fez a Lei 9718/98 – acarreta inversão da hierarquia normativa, em detrimento da rigidez constitucional e lesão irreparável ao princípio da segurança jurídica, corolário do Estado de Direito.

A interpretação de termos constitucionais, quando se refiram a noções técnicas, não pode se distanciar do sentido próprio que essas expressões detêm intrinsecamente, pois, do contrário, restaria violentada a consciência jurídica nacional.

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Note-se, ademais, que, se fosse possível, por processos hermenêuticos, inserir no termo faturamento as demais receitas da pessoa jurídica, não haveria razão de ser para a edição da EC 20/98 que, alterando o art. 195, CF, conferiu nova competência tributária à União para, a partir de então, autorizá-la a instituir contribuição social sobre o faturamento ou as receitas.

Fere a razoabilidade entender que o legislador constituinte derivado se deu ao trabalho de fazer aprovar e editar referida emenda para prever algo que já fosse decorrente da redação do art. 195, I, CF.

A edição da EC 20/98 tem o significado inequívoco de que faturamento e receitas não se confundem, e de que, até então, não era permitida a instituição de contribuição social tendo como fato gerador as receitas.” (grifei)


Vislumbro, portanto, Senhora Presidente, uma clara eiva de inconstitucionalidade, a afetar, no plano material, o preceito normativo em questão, pois, tal como irrepreensivelmente exposto pelo eminente Professor IVES GANDRA MARTINS no fragmento que venho de referir, não se revelava lícito, à União Federal, antes do advento da EC 20/98, modificar, mediante atividade de caráter meramente legislativo (Lei nº 9.718/98), a base de cálculo que, té então, achava-se constitucionalmente restrita ao faturamento (CF, art. 195, I, em sua redação original), vale dizer, à receita derivada da venda de bens e/ou da prestação de serviços, afastada, em conseqüência, a possibilidade jurídica de ampliação, em sede legal, da base imponível, para, nesta, incluir-se, como indevidamente o fez o legislador ordinário, a totalidade das receitas da pessoa jurídica.

Cabe mencionar, ainda, ante a extrema pertinência de sua invocação, a correta advertência formulada pelo eminente Professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, em douto memorial que apresentou à consideração desta Suprema Corte:

“(…) Ou seja, quando o próprio constituinte, no art. 195, optou por ‘faturamento’ e, por força de emenda constitucional, fez incluir, além do faturamento, também a receita bruta, certamente não produziu nenhuma sinonímia estipulativa. Afinal, é regra interpretativa tradicional que a lei não é redundante, isto é, não contém termos supérfluos.

Assim, ainda que a intenção do constituinte derivado tivesse sido expletiva, objetivamente, a nova redação constitucional não equiparou os conceitos. Apenas estendeu a possibilidade da base de cálculo, antes restrita ao faturamento, também para a receita. Ou seja, na nova redação, o ‘ou’ tem função disjuntiva e não conjuntiva, como se observa pelo uso dos demonstrativos (‘a receita ou o faturamento’). Destarte, o novo dispositivo, trazido pela Emenda Constitucional, ao contrário do que se possa pensar, reforça a tese de que, na Constituição Federal, mormente para efeitos fiscais, faturamento e receita são conceitos distintos, ainda que ou um ou outro possam configurar base de cálculo de contribuição social.” (grifei)

Mesmo que se reputasse lícita a possibilidade de a União Federal, mediante atividade legislativa, proceder à referida ampliação da base de cálculo – o que se alega apenas em caráter argumentativo -, ainda assim o diploma legislativo em questão incidiria no vício de inconstitucionalidade.

É que a União Federal não poderia dispor, em sede de legislação meramente ordinária, considerado o que prescreve o art. 110 do Código Tributário Nacional, sobre conceito já definido no plano do direito privado.

Não custa assinalar, neste ponto, que traduz situação de inconstitucionalidade a edição, pelo Estado, de lei ordinária, quando esta é editada para regular matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar, como sucede com o Código Tributário Nacional, cujo art. 110 – ao veicular norma de caráter geral – conforma-se ao que dispõe o art. 146, III, da Constituição da República.

Cabe referir, neste ponto, por oportuno, que a lei ordinária – que incursiona em domínio normativo constitucionalmente reservado à lei complementar – incide, por efeito de direta transgressão ao que prescreve a própria Constituição da República, em situação de evidente inconstitucionalidade, como o reconhece o magistério da doutrina (GERALDO ATALIBA, “Lei Complementar na Constituição”, p. 30, 1971, RT; JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, “Lei Complementar Tributária”, p. 34/35, 1975, RT/EDUC; CELSO BASTOS, “Lei Complementar”, p. 16/17, 1985, Saraiva, v.g. ).

Esse entendimento reflete-se, por igual, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cuja orientação, no tema, adverte que infringe a Constituição, ofendendo-a de modo frontal, a lei ordinária – ou qualquer outro ato de menor hierarquia normativa – que disponha sobre matéria própria de lei complementar (RTJ 105/909 – RTJ 154/810-811 – RTJ 163/543-544 – RTJ 163/942-943 – RTJ 166/917-918 – RTJ 171/753-754 – RTJ 179/114-115).

Veja-se, portanto, qualquer que seja o ângulo sob o qual se analise a controvérsia, que o diploma legislativo em causa reveste-se de inconstitucionalidade, especialmente se examinado o texto da Lei nº 9.718/98 à luz da redação primitiva do art. 195, I, da Constituição da República (anterior, portanto, ao advento da EC 20/98), tal como por mim precedentemente assinalado neste voto, e igualmente enfatizado, com absoluta correção, nos doutos votos proferidos pelos eminentes Ministros CEZAR PELUSO, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO.


Cabe registrar, de outro lado, Senhora Presidente, considerada a modificação introduzida no conteúdo primitivo do art. 195, I, da Constituição, que não se revela aceitável nem acolhível, para os fins postulados pela União Federal, o reconhecimento de que a EC 20/98 poderia revestir-se de eficácia convalidante, pois – como ninguém ignora – as normas legais que se mostram originariamente inconciliáveis com a Lei Fundamental não se convalidam pelo fato de emenda à Constituição, promulgada em momento posterior, havê-las tornado compatíveis com o texto da Carta Política.

Se o Poder Público quiser proceder de acordo com o teor de superveniente emenda à Constituição, deverá produzir nova legislação compatível com o conteúdo resultante do processo de reforma constitucional, não se viabilizando, em conseqüência, a convalidação de diploma legislativo originariamente inconstitucional.

Cumpre advertir, por isso mesmo, que a superveniência de emenda à Constituição, derivada do exercício, pelo Congresso Nacional, do poder de reforma, não tem o condão de validar legislação comum anterior, até então incompatível com o modelo positivado no texto da Carta Política.

Definitivo, sob tal aspecto, o magistério do eminente Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, cuja análise do tema jurídico em questão – veiculada em trabalho doutrinário (“Leis Ordinariamente Inconstitucionais Compatíveis com Emenda Constitucional Superveniente”, “in” RDA 215/85-98) – assim por ele foi exposta, em seus aspectos essenciais:

“23. É induvidoso que Emendas Constitucionais, editadas nos limites que lhes são cabíveis, aportam modificações ao quadro constitucional anterior. E óbvio, de conseguinte, que servirão, dali por diante, como bom fundamento de validade para as normas produzidas em sua consonância. Nada mais natural, então, que, por isto mesmo, sejam, em sucessão a ela, editadas leis conformes a estes novos termos, por muito gravosas que possam ser aos administrados, se comparadas com os termos Dante possíveis. Isto, todavia, não postula, nem lógica, nem jurídica, nem eticamente – e muito menos concorre para sustentação e prestígio do ordenamento – que deva recolher o que dantes era inconstitucional para abrigá-lo com um manto de resguardo, ainda que para infundir-lhe tal atributo tão-só para o futuro.

Propender para exegese deste feitio implicaria incorrer no contra-senso de reputar lógico que o ordenamento milite em desfavor da própria higidez e, demais disso, em considerar que o Direito prestigia ou é indiferente à fraude, à burla e não apenas a si próprio como aos integrantes da Sociedade. Não é de bom feitio hermenêutico enveredar por interpretações que sufraguem, em maior ou menor grau, a indulgência com elas, ou que lhes propicie a prática, o que ocorrerá, entretanto, se a incursão em tais condutas for inconseqüente e se o beneficiário delas puder absorver os frutos de expedientes desta ordem.

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26. Assim, na conformidade das considerações feitas, não há senão concluir que, dentre as alternativas exegéticas em tese suscitáveis perante o tema de leis originariamente desconformes com a Constituição, mas comportadas por Emenda Constitucional superveniente, a única merecedora de endosso é a que apresentamos como a quarta delas, ou seja: aquela segundo a qual a sobrevinda de Emenda não constitucionaliza a norma inicialmente inválida. Dessarte, seus efeitos poderão ser impugnados e desaplicada tal regra. Para que venham a irromper validamente no universo jurídico efeitos correspondentes aos supostos na lei originariamente inválida, será necessário que, após a Emenda, seja editada nova lei, se o legislador entender de fazê-lo e de atribuir-lhe teor igual, pois, só então, será compatível com o enquadramento constitucional vigente.

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27. Em síntese conclusiva, pois, não há senão dizer que Emenda Constitucional – diferentemente de uma nova Constituição – não é ruptura com o ordenamento jurídico anterior, mas, pelo contrário, funda-se nele, nele se integra e representa sua continuidade, donde seria inadmissível entender que tem o efeito de ‘constitucionalizar’, ainda que daí para o futuro, leis originariamente inconstitucionais (…).

Logo, não é de admitir que Emenda Constitucional superveniente a lei inconstitucional, mas com ela compatível, receba validação dali para o futuro. Antes, ter-se-á de entender que se o legislador desejar produzir nova lei e com o mesmo teor, que o faça, então, editando-a novamente, já agora – e só agora – dentro de possibilidades efetivamente comportadas pelo sistema normativo (…).” (grifei)


Igual censura é também feita, Senhora Presidente, com absoluta correção, pelo eminente Professor HUMBERTO BERGMANN ÁVILA (“COFINS e PIS: Inconstitucionalidade da Modificação da Base de Cálculo e Violação ao Princípio da Igualdade” “in” Repertório IOB de Jurisprudência nº 14/99 (2ª Quinzena de julho/99), Caderno 1, p. 442-435), cuja advertência, no ponto, vale transcrever:

“3. A Emenda Constitucional nº 20 não desfaz a inconstitucionalidade da Lei nº 9.718/98.

3.1. A edição da Emenda Constitucional nº 20/98, posteriormente à promulgação da Lei nº 9.718/98, pode levar ao grave equívoco de considerar-se superada a inconstitucionalidade desta Lei, em virtude de a citada Emenda ter modificado exatamente o artigo da Constituição então infringido.

3.2. Salienta-se, desde início, que a própria necessidade de modificação, via Emenda Constitucional, da base de cálculo permitida pela Constituição evidencia, de modo cabal, a frontal incompatibilidade da Lei nº 9.718/98 com o texto constitucional vigente no momento da sua edição. Do contrário, seria admitir que o poder legislativo teria modificado a Constituição para que ela continuasse a mesma. Ora, ela foi modificada justamente – e não há outro modo de interpretar – porque a Lei nº 9.718/98 era – e continuou sendo – absolutamente incompatível com o seu suposto fundamento de validade (art. 195, I), na medida em que instituiu contribuições sociais sobre bases de cálculos não previstas pela Constituição então vigente.

3.3. Exatamente por isso, a Emenda Constitucional nº 20 passou a prever a possibilidade de instituição de contribuições sociais sobre ‘a receita ou o faturamento’ (art. 195, I, b, com redação dada pela EC nº 20/98).

3.4. Essa modificação constitucional não tem, porém, o efeito de convalidar lei originariamente inconstitucional, ainda que ela tenha período de vigência postergado. Senão, vejamos.

3.5. Se a Constituição é modificada, todas as normas anteriormente editadas e que, em virtude da modificação, passam a ser com ela incompatíveis, tornam-se inconstitucionais. Esse fenômeno chama-se de inconstitucionalidade superveniente.

3.6. Resta, porém, saber o que acontece se uma norma infraconstitucional é editada em desacordo com a Constituição, e, após a sua edição, a própria Constituição é alterada, de modo a fazer desaparecer a incompatibilidade.

3.7. No momento em que foi editada, a Lei nº 9.718/98 era incompatível com a Constituição, já que ela só permitia a edição de contribuições sociais com as bases de cálculo nela especificadas (sobre faturamento e, não, sobre a totalidade das receitas). Havendo incompatibilidade entre a norma hierarquicamente inferior (constante da Lei) e a superior (constante da Constituição), a primeira é inválida. A invalidade é justamente a incompatibilidade entre a norma inferior e a superior, que faz com que a norma viciada não possa produzir qualquer efeito.

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3.11. Pois bem. A edição da Lei nº 9.718/98 é inválida por vício de competência. Senão, vejamos.

A norma inferior constante da Lei nº 9.718/98 é inválida porque incompatível com a norma (materialmente supra-ordenada) que limita o seu possível conteúdo (CF, art. 195, I): a Constituição permite a instituição de Contribuição Social por lei ordinária apenas sobre o faturamento. Tendo a referida Lei instituído Contribuição Social sobre a totalidade das receitas – parcela que excede a de faturamento -, ela não obedeceu à norma superior que delimitou o seu possível conteúdo. Trata-se, como se vê, de um vício substancial, na medida em que a parcela sobre a qual a Contribuição foi instituída não se identifica com o faturamento e, por isso, só poderia ser tributada mediante edição de Lei Complementar, meio apto a criar outras contribuições não previstas no artigo 195 (CF, art. 195, § 4º).

3.12. E a sua invalidade não se altera com a modificação da norma constitucional com a qual mantém referência. Isso porque a modificação das normas de referência, que até pode tornar inválidas as normas originariamente válidas (inconstitucionalidade superveniente), não pode tornar válidas as normas que não o são desde a origem.

3.13. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, o fenômeno da constitucionalidade superveniente. Isso importaria atribuir, às normas futuras, o poder de convalidar as normas hoje inválidas. Além do mais, todas as leis uma vez incompatíveis com a Constituição voltariam a ser constitucionais pela modificação futura da Constituição. Mais do que isso, todas as inconstitucionalidades seriam sempre compreendidas com a seguinte cláusula de reserva: ‘salvo modificação posterior da Constituição.’ Isso, entretanto, não é permitido no nosso ordenamento jurídico. Significaria, além de tudo, uma grave afronta à segurança jurídica.” (grifei)


Irrepreensível, sob todos os aspectos, esse douto pronunciamento, pois a pretendida convalidação da Lei nº 9.718/98, se admitida fosse, importaria em inaceitável subversão de um postulado básico que não pode ser ignorado pelo Poder Público, notadamente quando atua em sede tributária.

É preciso enfatizar, Senhora Presidente, tal como assinalei em passagem precedente de meu voto, que a superveniência de emenda à Constituição não tem, nem pode ter, o condão de convalidar legislação comum anterior, até então incompatível com o modelo positivado no texto da Carta Política.

Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental.

Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal – que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica.

Essa posição de eminência da Lei Fundamental – que tem o condão de desqualificar, no plano jurídico, o ato em situação de conflito hierárquico com o texto da Constituição – estimula reflexões teóricas em torno da natureza do ato inconstitucional, daí decorrendo a possibilidade de reconhecimento, ou da inexistência, ou da nulidade, ou da anulabilidade (com eficácia “ex nunc” ou com eficácia “ex tunc”), ou, ainda, da ineficácia do comportamento estatal incompatível com a Constituição.

Tal diversidade de opiniões nada mais reflete senão visões doutrinárias que identificam, no desvalor essencial do ato inconstitucional, “vários graus de invalidade” (MARCELO REBELO DE SOUSA, “O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional”, vol. I/77, 1988, Lisboa), como ressaltado, por esta Corte, em decisão proferida na ADI 2.215-MC/PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 224/2001).

As várias concepções teóricas existentes sobre o tema – como destaca autorizado magistério doutrinário (CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, “Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus Efeitos”, “in” Revista Forense, vol. 335/17-44; MARCELO NEVES, “Teoria da Inconstitucionalidade das Leis”, p. 68/85, 1988, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 54/58, item n. 15, 15ª ed., 1998, Malheiros) – permitem a formulação de teses que buscam definir a real natureza dos atos incompatíveis com o texto da Constituição, qualificando-os, em função de abordagens diferenciadas, como manifestações estatais tipificadas pela nota da inexistência (FRANCISCO CAMPOS, “Direito Constitucional”, vol. I/430, 1956, Freitas Bastos), ou pelo vício da nulidade (ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 599/602, 9ª ed., 2001, Atlas; OSWALDO LUIZ PALÚ, “Controle de Constitucionalidade”, p. 75/76, 1999, RT), ou, ainda, pelo defeito da anulabilidade (REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI, “Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade”, p. 181/183, 2ª ed., 1990, RT; JOÃO LEITÃO DE ABREU, “A Validade da Ordem Jurídica”, p. 156/165, item n. 11, 1964, Globo).

Cumpre enfatizar, no entanto, por necessário, que, a despeito dessa pluralidade de visões teóricas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – apoiando-se na doutrina clássica (ALFREDO BUZAID, “Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 132, item n. 60, 1958, Saraiva; RUY BARBOSA, “Comentários à Constituição Federal Brasileira”, vol. IV/135 e 159, coligidos por Homero Pires, 1933, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais”, p. 270, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; ELIVAL DA SILVA RAMOS, “A Inconstitucionalidade das Leis”, p. 119 e 245, itens ns. 28 e 56, 1994, Saraiva; OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, “A Teoria das Constituições Rígidas”, p. 204/205, 2ª ed., 1980, Bushatsky) – ainda considera revestir-se de nulidade a manifestação do Poder Público em situação de conflito com a Carta Política (RTJ 87/758 – RTJ 89/367 – RTJ 164/506, 509):


“O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente inaplicabilidade.

Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito.

A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste em remover, do ordenamento positivo, a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse poder excepcional – que extrai a sua autoridade da própria Carta Política – converte o Supremo Tribunal Federal em verdadeiro legislador negativo.”

(RTJ 146/461-462, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

O exame da controvérsia ora em julgamento, Senhora Presidente, põe em evidência uma realidade que não pode deixar de ser considerada pelo Supremo Tribunal Federal, e que já mereceu, por parte desta Corte Suprema (RTJ 181/73-79, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno), advertência que cumpre ser rememorada.

Refiro-me ao fato, sumamente relevante, de que nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental.

A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus agentes, com a Constituição, há de ser, necessariamente, Senhora Presidente, uma relação de respeito.

Se, em determinado momento histórico, circunstâncias de fato ou de direito reclamarem a alteração da Constituição, em ordem a conferir-lhe um sentido de maior contemporaneidade, para ajustá-la, desse modo, às novas exigências ditadas por necessidades políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a prévia modificação do texto da Lei Fundamental, com estrita observância das limitações e do processo de reforma estabelecidos na própria Carta Política.

Revela-se fundamental, Senhora Presidente, que se proclame, uma vez mais, com especial ênfase, que o Supremo Tribunal Federal – que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte – não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas.

Em suma, Senhora Presidente: o inaceitável desprezo pela Constituição não pode converter-se em prática governamental consentida. Ao menos, enquanto houver um Poder Judiciário independente e consciente de sua alta responsabilidade política, social e jurídico-institucional.

Concluo o meu voto, Senhora Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para acompanhar o douto voto proferido pelo eminente Ministro CEZAR PELUSO.

É o meu voto.

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