O preço do túnel

Serra poderá responsabilizar Marta por obras mal feitas

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20 de junho de 2005, 14h51

Empresas que colocam sua sede de fachada em outro município, mas mantêm atividade econômica principal em São Paulo, devem recolher o ISS — Imposto Sobre Serviços na capital paulista. A prefeitura de São Paulo promete agir para fazer a cobrança. Isso é o que garante o secretário municipal de Negócios Jurídicos, Luiz Antônio Marrey. “Isso é uma fraude, é inaceitável, e a prefeitura vai agir para cobrar o ISS dessas empresas, pois entende que ele é devido aqui”, afirmou.

Em entrevista à equipe da Consultor Jurídico(*), na sede da revista, Marrey revelou que a administração atual da prefeitura estuda responsabilizar a ex-prefeita Marta Suplicy por obras como o túnel da avenida Rebouças, que custou R$ 97 milhões e alagou depois de cerca de três meses de sua inauguração. “Nós temos a posição de não fazer nada açodadamente e nem fazer afirmativas sem o devido estudo. Então esta questão do túnel está sendo estudada do ponto de vista do gasto público e da sua adequação”.

No comando de 400 procuradores municipais, Marrey tem a tarefa de tentar receber, judicialmente, créditos que remontam a casa de R$ 16 bilhões. São cerca de dois milhões de ações, principalmente referentes a ISS e IPTU — Imposto Municipal sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. “Em relação ao ISS, muitas empresas desaparecem e esse crédito fica difícil de ser recebido. Então, quando se diz que há R$ 16 bilhões de dívida ativa, na verdade esse número na prática é uma ficção”, afirma Marrey.

O secretário atacou o governo federal, inclusive invocando a figura do enriquecimento ilícito para enfatizar que, enquanto empresas privadas são financiadas pela União com juros privilegiados (Taxa de Juros de Longo Prazo), os municípios são castigados com o IGP-DI mais 9%, em flagrante desequilíbrio de tratamento. “A União tem enriquecimento ilícito as custas das pessoas e dos municípios estão nessa situação. Essa relação é injusta, ilegal e precisa ser revista”, conclui Marrey.

Leia a entrevista

Conjur — É possível governar sem desobedecer a lei?

Marrey — Claro que é. E há exemplos de administrações que têm evitado problemas legais importantes. É claro que o direito permite mais de uma interpretação para muitos temas. Você pode ter controvérsia em relação a este ou aquele assunto, porque há diversas interpretações legítimas para o mesmo assunto. Mas não só é possível como é necessário que se governe dentro da legalidade.

Conjur — Quanto à lei da responsabilidade fiscal, só agora se saberá se o que ela prevê é possível. Nesse primeiro ano de avaliação o senhor acha que os resultados serão bons?

Marrey — O Brasil é um país muito díspar, depende muito da aplicação da lei nos diversos judiciários e nos tribunais de contas. Eu creio que nós vamos ter essa primeira fase de aplicação, que deverá ser feita com bom senso. Como em toda lei, o que é impossível não pode ser exigido, mas o que é possível e não foi cumprido tem de ser exigido e tem de haver punição. Não há condições, por exemplo, de fazer a aplicação rígida da lei em municípios com fatores estruturais de endividamento que condicionem o gasto público ou naqueles que possam parar de funcionar com a aplicação literal da lei. Nesses casos, teríamos formalmente a infração à lei de Responsabilidade Fiscal mas materialmente não — uma aplicação rígida comprometeria as atividades essenciais. Essa distinção é que deve ser feita. Mas, em outros lugares, quando era possível cortar gastos de maneira razoável [os governos] não só não cortaram, como aceleraram gastos, às vezes supérfluos, em período pré-eleitoral. É claro que, nessa hipótese, se não deixaram [a administração] cobertura para os débitos contraídos estará configurada a infração dentro da lei de Responsabilidade Fiscal. Há um grande esforço nesse momento na atividade dos tribunais de contas, do Judiciário e do Ministério Público na apreciação desses casos, separando o joio do trigo.

Conjur — A cidade de São Paulo se enquadra nesse caso em que o comprometimento com a dívida inviabiliza a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal?

Marrey — São Paulo tem problemas estruturais de dívida, mas não me parece que seja o fator determinante de gastança de passado recente. Há uma questão que tem de ser discutida, que é aquela relativa à dívida das cidades, especialmente de São Paulo com a União. A cidade paga à União juros altíssimos para sua dívida, e a União quando empresta a particulares ou mesmo quando financia os débitos de tributos cobra taxa maior. Então quando o município paga essa quantidade de juros, na verdade quem está pagando é a população na forma de impostos. A União está tendo um enriquecimento sem causa, às custas das pessoas e dos municípios que têm essa situação. Essa relação é injusta, ilegal e precisa ser revista. Creio que na cidade de São Paulo tivemos o legado de uma dívida bastante grande que não se resume à questão estrutural.


Conjur — O senhor já foi procurador-geral de Justiça e acompanhou bem a situação de outros municípios. O dinheiro arrecadado com os impostos são gastos mais com a população ou com a própria máquina da administração pública?

Marrey — Eu acho que os impostos têm de ser gastos melhor. Eu não tenho condições de estimar um percentual de quanto vai para um ou para outro. Há municípios com um percentual por servidores que ultrapassam o limite, o que não é o caso de São Paulo. Eu acho que a população tem o direito de reclamar e nós temos a obrigação de fazer acontecer, com uma administração moderna com custos mais baixos e gastando bem o que é arrecadado. A carga tributária não é pequena. Se ela fosse bem gasta, se fossem aprimorados os mecanismos de gasto, nós teríamos um aumento de serviços prestados e bem prestados. Acho que a administração pública brasileira não gasta bem em muitos setores e nós precisamos aperfeiçoar mecanismos que garantam esse gasto de maneira adequada.

Conjur — As obras que foram feitas recentemente em São Paulo levantam uma série de preocupações. Uma delas é que o trânsito, em muitos desses locais, acabou não fluindo melhor. A administração atual pretende questionar a administração anterior nessas questões?

Marrey — Este assunto está sendo objeto de análise. É fato notório que um dos túneis feito às pressas na cidade de São Paulo apresentou problemas graves nas suas galerias pluviais e há quem questione a efetiva necessidade deste túnel do ponto de vista da melhoria do trânsito. Nós temos a posição de não fazer nada açodadamente e nem fazer afirmativas sem o devido estudo. Então esta questão do túnel está sendo estudada do ponto de vista do gasto público e da sua adequação.

Conjur — E quanto à dívida com a Eletropaulo, quanto a prefeitura está devendo?

Marrey — Não sei esse número de cabeça, mas a Eletropaulo também deve para a prefeitura. De tal forma que a cobrança da dívida mediante ao corte de luz é uma prática absolutamente abusiva e inaceitável. A Eletropaulo não pode tratar a prefeitura do município de São Paulo como quem faz uma ligação clandestina. No ano de 2005 as contas têm sido pagas e há dívidas de parte a parte. Houve um acordo com a antiga administração no qual se formaria uma comissão para discutir e fazer um encontro de contas. O corte que ocorreu é inaceitável. E nós agora estamos tentando chegar a um acordo final neste tema.

Conjur — O Poder Público em todo o Brasil é o maior réu e também o maior autor por conta das execuções fiscais. Em quantas ações o município de São Paulo é autor e em quantas ele é requerido?

Marrey — Nós somos autores em mais de dois milhões de ações. Não é o mesmo patamar como réu, que também é um número elevado.

Conjur — E os valores envolvidos nos casos?

Marrey — Nós temos uma dívida ativa estimada em R$ 16 bilhões, ou seja, o município é credor de R$ 16 bilhões, o que representa um pouco mais que o orçamento anual. Uma parte substancial dessa dívida é de recebimento impossível. Nessa composição da dívida ativa temos 80% de crédito de ISS, e basicamente o restante de IPTU, em termos de valores. Em relação ao ISS, muitas empresas desaparecem e esse crédito fica difícil de se receber. Então, quando se diz que há R$ 16 bilhões de dívida ativa, na verdade esse número é uma ficção. Se nós recebermos 25% desse valor já será uma grande vitória.

Conjur — O refinanciamento para viabilizar recebimento de tributos atrasados é viável?

Marrey — O prefeito já remeteu à Câmara Municipal um projeto de lei que prevê um programa de parcelamento incentivado que procura dar condições a pessoas e empresas que estão à margem da regularidade, e inclusive dá possibilidade de credores da prefeitura utilizarem esse crédito devidamente reconhecido para o pagamento de dívida tributária. Isso é um dado importante, até porque a prefeitura deve bastante e teve que reordenar os seus pagamentos e créditos.

Conjur — Tem um pedido antigo das empresas para que o ISS seja baixado, até como forma de impedir a evasão. A prefeitura teria condições de mexer no ISS?

Marrey — Isso é uma decisão que precisa ser meditada. De qualquer maneira, o município de São Paulo vai agir para efetuar a cobrança de empresas que colocam como sua sede de fachada um outro município com o ISS menor, mas mantêm a atividade econômica principal aqui. Isso é uma fraude, é inaceitável, e a prefeitura vai agir para cobrar o ISS dessas empresas pois entende que ele é devido aqui.

Conjur — A prefeitura tem agentes suficientes pra fiscalizar isso?

Marrey — São Paulo é um mundo, mas, de qualquer maneira, tem uma quantidade de fiscais que podem fazer esse trabalho.


Conjur — O senhor, como advogado-geral do município, tem quantos procuradores?

Marrey — Temos 400 procuradores e [o número] é insuficiente. Acabamos de dar posse a 30 novos procuradores, mas ainda existem pessoas para serem convocadas. No ano passado tivemos um concurso em que foram aprovados 115 entre 18 mil candidatos. A administração anterior chamou cinco procuradores e agora chamamos mais 30. Nós só não chamamos os demais por contenção de gastos. Estamos tentando dar um passo de cada vez.

Conjur — A União, no governo passado, apostou e acertou no sentido de que esse gasto se reverteria em benefício.

Marrey — Eu também sustento essa posição, tanto é que parte substancial desses 30 novos procuradores vai para o setor fiscal. De qualquer maneira, como a situação financeira do município de São Paulo é difícil, nós estamos fazendo isso por partes.

Conjur — O município e o estado estão sendo governados por dirigentes políticos da mesma sigla e há ali dívidas de parte a parte. Como está sendo o relacionamento?

Marrey — O relacionamento entre o município e o estado de São Paulo é um relacionamento institucional bom. Há muitos equipamentos estaduais em terrenos municipais e nós estamos fazendo um levantamento para fazer um encontro de contas com o estado. Dezenas de delegacias de polícia, escolas públicas e outros equipamentos estão instalados em terrenos municipais. Já existe um levantamento, mas [ele] precisa ser atualizado. Aliás, o setor de patrimônio da prefeitura precisa ser urgentemente modernizado, ele não está totalmente informatizado. Nós temos que lidar inclusive com a questão dos imóveis em poder de particulares, imóveis que não rendem nada, invadidos, cedidos regularmente, mas sem contrapartida. Isso é uma prioridade.

Conjur — Tem um outro projeto de lei que foi enviado para a Câmara, que é o Cadim municipal, cadastro de devedores municipais. Muitos dizem que o Cadim pode ser usado como meio de cobrança, de obrigar a empresa a pagar uma dívida que ela ainda não tem condições.

Marrey — Eu acho curioso o seguinte: quando se deve para a iniciativa privada essa dívida vai a protesto, há restrições do crédito. As instituições financeiras são implacáveis nesta cobrança. Quando a dívida é favorável a todo o povo e se quer cobrar, a ação gera protestos. Então eu acho que há uma inversão de valores absurda. O povo de São Paulo tem crédito e tem direito de receber. Ninguém vai reproduzir cobranças abusivas, mas o crédito público é socialmente importantíssimo. Eu acho curioso, porque normalmente quem protesta em relação a isso são os paladinos do anti poder público, que não tolerariam a dívida para instituições privadas, mas quando se trata do poder público receber o que é seu protestam. Inclusive há uma questão que foi objeto de uma decisão recente da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo interpretando que é possível o protesto de dívida pública. Não se pensa nisso a curtíssimo prazo, mas faremos o possível para receber de devedores insuperavelmente remitentes, por meio desta possibilidade legal. Esse crédito pertence a toda população.

Conjur — A fila de precatórios do município de São Paulo é muito grande?

Marrey — É. Nós estamos pagando o ano de 1998. Por hora, a previsão dos precatórios alimentares é de pagar R$ 50 milhões este ano. A dívida de precatórios do município é algo em torno de R$ 5 bilhões. Os credores dos precatórios têm direito de receber e é uma situação incômoda ter esta dívida. É claro que este não é um problema só do município de São Paulo. Nós acompanhamos a iniciativa do presidente Nelson Jobim [do Supremo Tribunal Federal] de encontrar uma solução estrutural para essa questão dos precatórios. Qualquer iniciativa nesse sentido será bem-vinda.

Conjur — A proposta do Jobim foi muito criticada por empresários, que disseram que vão demorar cerca de 30 anos para receber.

Marrey — Mas de qualquer maneira traria uma solução estrutural para este problema, porque o que fica claro é que não adianta ficarmos simplesmente jogando pedras em outras administrações. É um dado da realidade que os entes públicos devem bastante e têm obrigação de pagar e isso não pode ser feito à custa de atividades essenciais para o funcionamento da máquina pública. Temos que trabalhar alternativas que possam facilitar esse recebimento sob pena disso [dos precatórios] continuar se arrastando.

Conjur — O senhor tem idéia de quanto se junta a esses R$ 5 bilhões por ano?

Marrey — Na verdade esses R$ 5 bilhões são de precatórios vencidos, porque me parece que o valor total é maior, chega a uns R$ 10 bilhões, mas não tenho condições de dizer com certeza. De qualquer maneira, isso significa que as administrações têm de ser absolutamente responsáveis para procurar não gerar novos precatórios.

Conjur — Temos também essa situação preocupante que são as invasões em escritórios de advocacia. Como é que o senhor vê essa questão?

Marrey — Há de se fazer uma distinção. A busca feita em escritórios de advocacia para a apreensão de documentos de clientes do advogado viola o sigilo profissional. O advogado, como qualquer outro profissional, pode ser investigado por crimes que ele possa cometer. Se for uma investigação que recaia sobre o advogado enquanto pessoa, ele está sujeito a medidas de coerção judicial como qualquer outra pessoa. Porém, a busca e apreensão em escritório de advocacia para a obtenção de documentos de clientes me parece que viola o sigilo profissional. O advogado tem uma relação de confiança protegida por lei com o cliente. É impossível exercer a advocacia sem esta relação de proteção do sigilo entre o cliente e o advogado. Devemos estar atentos que a percepção penal é legítima, tem de ser feita, mas nos limites constitucionais. Fazer busca e apreensão em escritórios nesses termos não tem base legal.

Conjur — O que o senhor acha dos projetos que criminalizam a quebra das prerrogativas dos advogados?

Marrey — Eu creio que talvez pudesse se pensar em alguma figura típica na lei de abuso de autoridade. Não estudei profundamente este assunto, mas se a lei de abuso de autoridade merece ser atualizada, acho que deveria prever a hipótese da violação de prerrogativas como uma causa de aumento de pena, ou se redigir uma figura típica específica dentro da lei de abuso de autoridade.

Conjur — Quais são as grandes questões que estão em pauta neste momento na Secretaria de Negócios Jurídicos do município?

Marrey — Nós temos duas questões. Uma delas é a do parque do povo, aquela área no Itaim em que houve um acordo entre a prefeitura, o INSS e Caixa Econômica Federal para que ela toda passasse para o município. Acontece que esse acordo foi homologado judicialmente numa desapropriação indireta e depois o Ministério Público Federal recorreu e o Tribunal Regional Federal, que anulou a decisão. Precisamos retomar este assunto. Esta é uma área importante para esta cidade, havia planos para que ela se transformasse num parque. Outro tema que nos preocupa neste momento é um litígio entre o município de São Paulo e a União relativo à propriedade do Campo de Marte. No nosso entender o Campo de Marte é do município de São Paulo e foi tomado a força na revolução de 32 por tropas federais. Há uma ação que corre há anos [sobre o assunto]. Nós perdemos em primeira instância e há uma apelação do município no TRF-3.

(*) Participaram da entrevista os jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

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