Comédia jurídica

Não há provas para que Lula seja investigado pelo mensalão

Autor

  • Dalmo de Abreu Dallari

    é advogado professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor entre outras obras de O Futuro do Estado.

19 de junho de 2005, 14h28

É lição da história que quando as ambições políticas são exacerbadas, ou pela ambição de ocupar os cargos de mando, pelo prestigio social ou pela sensação de poder que isso proporciona, ou ainda pelo proveito pessoal que poderá ser tirado da situação de poder, o bom senso, a racionalidade e o respeito pelos interesses gerais são substituídos pela leviandade ou pela cegueira moral e intelectual. O Brasil está vivendo agora uma dessas situações.

A ditadura militar implantada no país em 1964 com a participação ativa das elites econômicas e sociais favoreceu a prática de violências e de corrupção, a tal ponto que algum tempo depois muitos de seus apoiadores passaram a sofrer os efeitos negativos do sistema arbitrário. Houve, então, uma associação das vitimas da primeira hora, pessoas e organizações das camadas mais humildes da população, cujas reivindicações tinham sido taxadas de “perigo comunista” para justificar o golpe militar, com pessoas e organizações das elites tradicionais, que já não queriam a ditadura militar e decidiram dar apoio as camadas populares, onde estava a vanguarda resistência, para juntos lutarem pela reimplantação de uma ordem inspirada nos princípios democráticos. A rememoração dessa historia recente é necessária para que se entenda a lógica da tentativa de enquadrar o presidente da República em crime de responsabilidade.

Restabelecida a normalidade constitucional no Brasil e reiniciadas as disputas eleitorais, surgiram vários partidos de esquerda, ganhando muito expressão o Partido dos Trabalhadores, expressão político-eleitoral dos movimentos de resistência e de reivindicação de operários. Foi por essa legenda que se candidatou à Presidência da República e foi eleito por ampla maioria popular, em eleição regulares que não sofreram qualquer contestação, o principal líder operário Luiz Inácio Lula da Silva, sucedendo Fernando Henrique Cardoso, professor universitário aposentado e adepto do neoliberalismo, linha que implantou em seu governo, inclusive patrocinando trinta e cinco emendas à Constituição, promovendo privatizações de setores básicos da economia brasileira, entre eles as telecomunicações, setor da energia elétrica e mineração do ferro.

Essas privatizações foram efetivadas num ambiente de muita corrupção, noticiada com minúcias pela grande imprensa, revelando fatos e nomes de altas personalidades envolvidas como a participação do presidente do BNDES na criação de um consórcio para ganhar uma das licitações e o financiamento, com dinheiro público, de compras de empresas privatizadas.

A par disso, outra farsa foi minuciosamente noticiada; uma empresa que valia 500 foi avaliada em 50 para efeito de licitação e acabou sendo vendida por 100, o que foi anunciado com grande estardalhaço como se tivesse havido uma grande vantagem, obtendo-se na venda um ágio de cem por cento. Coroando esse processo, foi efetuada uma emenda constitucional que permitiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, sendo ampla e minuciosamente divulgada pela grande imprensa a ocorrência de corrupção na compra de apoio de parlamentares para essa emenda.

Como foi notificado com pormenores, o grande comprador de votos de parlamentares foi o então Ministro, agora já falecido, Sérgio Motta. Um grupo de juristas sem vinculação partidária, pretendendo que se aplicassem os dispositivos constitucionais que previam a punição dos corruptos, fez uma representação ao presidente da Câmara de Deputados, Aécio Neves, que usou as prerrogativas de seu cargo para jogar no lixo a representação, embora os fatos e nomes fossem conhecidos, tendo-se tornado públicos e notórios pelo minucioso noticiário de imprensa.

Embora uma falta não possa nem deva ser tomada como pretexto para a justificativa de outra, a lembrança desses antecedentes é importante para a avaliação da pretendida intenção de promover a cassação do mandato do atual presidente da República “por não ter promovido a responsabilidade de altos servidores federais envolvidos em corrupção”.

A base legal para essa proposta seria o fato de que um político, o governador de Goiás, Marconi Perillo, havia levado o fato ao conhecimento do presidente e este nada teria determinado para a punição dos responsáveis. Pelo que tem sido noticiado ultimamente com ares de escândalo, o governador de Goiás, que é membro de partido que faz oposição ao governo, fez um comentário “por ouvir dizer” sem oferecer qualquer elemento de prova e sem assumir a responsabilidade por sua denuncia. Essa atitude é agora confirmada por declarações do governador Marconi Perillo publicadas no jornal “O Estado de S. Paulo” de 9 de junho, página A6, onde aparecem entre aspas, sendo, portanto, textuais, as seguintes palavras do governador, referindo-se aos fatos por ele denunciados: “Não tenho provas”.

Evidentemente, seria irresponsável iniciar qualquer procedimento visando promover responsabilidades com base num comentário verbal, sem nenhum elemento concreto que pudesse servir, ao menos, de início de prova. Nenhum juiz honesto e imparcial admitiria a existência de base legal para uma investigação fundada apenas num comentário verbal, sem nenhum responsável pelas denuncias e com toda a possibilidade de se tratar de mera intriga entre adversários, muito comum no ambiente político brasileiro.

Lamentavelmente, o Brasil está presenciando mais um espetáculo de comédia política, em que políticos de reputação duvidosa aparecem, com apoio da imprensa, como pilares da moralidade política e da legalidade. O mais grave disso tudo é a desmoralização da instituições, pois muita gente reage com indignação ao baixo nível dos confrontos políticos e poderá ser levada a concluir que o fechamento do palco dos comediantes poupará despesas inúteis e não fará falta para defesa dos verdadeiros interesses do povo.

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor, entre outras obras, de O Futuro do Estado.

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