Um pra lá, dois pra cá

Dano moral em acidente de trabalho gera conflito

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18 de junho de 2005, 14h00

Os juízes trabalhistas ainda não se conformaram com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que determinou a competência da Justiça comum para julgar ações de indenização de dano moral por acidente de trabalho. Nos últimos dois meses, ao menos três tribunais trabalhistas se julgaram competentes para tratar da matéria: os de São Paulo, Campinas e Rio Grande do Sul.

A controvérsia começou em março, depois que o Plenário do Supremo, por oito votos a dois, definiu a questão. No julgamento do Recurso Extraordinário 438.639, os ministros entenderam que é competência da Justiça comum julgar danos morais e materiais por acidente de trabalho. Foram vencidos os ministros Marco Aurélio e Carlos Britto.

Em seu voto, o ministro Celso de Mello (leia abaixo a íntegra do voto) afirmou que “assiste, ao Poder Judiciário do Estado-membro, e não à Justiça do Trabalho, a competência para processar e julgar as causas acidentárias, ainda que tenham sido instauradas, contra o empregador, com fundamento no direito comum, tal como sucede na espécie ora em exame”.

Apesar da decisão, muitos representantes da Justiça do Trabalho defendem que a Emenda Constitucional 45 — reforma do Judiciário — definiu de forma clara que a competência para julgar dano moral por acidente de trabalho é da Justiça trabalhista. Mas nem todos interpretam assim.

No Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, a questão está dividida. Das cinco turmas do TST, duas — a 4ª e a 5ª — entendem que a competência para julgar danos morais por acidente de trabalho é da Justiça comum. Já a 1ª Turma entende que cabe à Justiça do Trabalho julgar este tipo de ação. As outras duas ainda não se manifestaram. Caberá a Seção dos Dissídios Individuais do TST uniformizar o entendimento.

Na última decisão, a 5ª Turma optou pela competência da Justiça comum. Entendeu que a EC 45 não ampliou a competência da Justiça do Trabalho para este tipo de ação, já que permanece na Constituição a distinção das obrigações originárias da relação de emprego daquelas que resultam do acidente de trabalho.

Na linha do STF, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça definiu, em abril deste ano, que as ações de indenização por danos morais decorrentes de acidente de trabalho ou doença profissional devem ser processadas e julgadas pela Justiça comum. No julgamento, o STJ ressaltou que a questão não se confunde com as ações de indenização decorrentes da relação de emprego, que são de competência da Justiça trabalhista.

O ministro Fernando Gonçalves, relator na ocasião, esclareceu que a 2ª Seção já tinha pacificado o entendimento e que, nessa situação, não se aplica a Súmula 736 do Supremo — que define a competência da Justiça trabalhista para julgar ações relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores, mas não se refere a acidentes.

Reação trabalhista

O presidente da Anamatra — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, José Nilton Pandelot, lembra que a associação tem defendido, desde a reforma do Judiciário, a ampliação da competência material da Justiça do Trabalho para julgar também as ações relativas a dano moral e patrimonial decorrentes da relação de trabalho. “E isso foi possível com a EC 45 que, em seu inciso VI, do artigo 114, definiu literalmente a competência da Justiça do Trabalho para essas causas”, afirmou.

Para o presidente da Anamatra, a própria finalidade da emenda justifica a posição adotada pela associação. “As mudanças foram inseridas na Constituição da República para mudar o que ali existia e a idéia de ampliação da competência material revela que o constituinte derivado resolveu trazer para a Justiça do Trabalho a competência para o acidente do trabalho. Não pode existir interpretação diferente”, conclui Pandelot.

Para a maioria dos juízes trabalhistas, a recente decisão do Supremo derruba o que foi definido pela EC 45. Segundo Grijalbo Coutinho, juiz titular da 19ª Vara do Trabalho do Distrito Federal, o artigo 114, inciso V, da EC 45, inclui o gênero “indenização por dano moral ou patrimonial” decorrente da relação de trabalho na órbita da Justiça do Trabalho, porém sem delimitar o alcance da norma à natureza do evento.

Entendimentos diferentes

Alguns tribunais do país sinalizam entendimento contrário ao adotado pelo Supremo. A 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em decisão deste mês, reconheceu que a competência para julgar ação de danos morais envolvendo relações trabalhistas é da Justiça do Trabalho. Segundo os desembargadores, antes mesmo da EC 45, o entendimento já estava consolidado.

Já a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás entendeu diferente. Em julgamento de Agravo de Instrumento em maio deste ano, a Câmara reformou sentença de primeira instância definindo que a competência é da Justiça comum.


O Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas, SP), também em maio, atribuiu a competência à Justiça do Trabalho. O relator, na ocasião, juiz Edison dos Santos Pelegrini, esclareceu que a competência está prevista no artigo 114 da Constituição, com a redação dada pela EC 45. O juiz também argumentou já há jurisprudência (327) consolidada sobre o tema no Tribunal Superior do Trabalho.

Nesta semana, a 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) decidiu que as ações por danos morais e materias decorrentes de doença profissional devem correr na esfera trabalhista. O juiz Rafael Pugliese Ribeiro, relator do recurso, argumentou que “foi justamente para julgar o dano trabalhista, nesse complexo relacionamento entre empregado e empregador, que foi criada a Justiça do Trabalho” (Leia abaixo a íntegra do voto).

O entendimento é controverso no Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul. Ainda sem posicionamento unânime, cinco das oito turmas do Tribunal já se pronunciaram sobre o tema e o placar está em três a dois pela competência da Justiça do Trabalho.

Definição de competência

A advogada trabalhista Silvia Maria Munari Pontes, do escritório Trevisioli Advogados Associados, entende que a competência para julgamento de dano moral decorrente de acidente de trabalho é da Justiça comum. Segundo a advogada, para avaliar a existência ou não da caracterização do dano moral decorrente de acidente é necessária a análise de normas e fundamentos de responsabilidade civil, matéria esta essencialmente de natureza civil.

Silvia entende também que a EC 45 não altera expressamente o inciso I do artigo 109 da Constituição, que retira da Justiça Federal a competência para julgamento de acidente de trabalho. “Ora, se a competência para julgamento de acidente não é da esfera trabalhista, não há porque se alterar a competência do dano moral decorrente do mesmo acidente”, afirmou a advogada.

Para o advogado trabalhista Luiz Salvador, a ampliação da Justiça do Trabalho autorizada pela reforma do Judiciário — não dá margem a interpretações dúbias, como as que estão ocorrendo. “É um jogo político para jogar na lata do lixo a vontade do legislador constituinte, uma queda de abraço”, afirmou o advogado.

“Antes justificava atribuir-se à Justiça comum a competência para julgar quaisquer ações acidentárias. Mas com o novo texto permanece a competência da Justiça comum apenas para as ações voltadas contra o INSS, por sua responsabilidade objetiva, quando de qualquer infortúnio”, explicou Salvador.

Segundo ele, se a ação for voltada contra o empregador por descumprimento das medidas de segurança e saúde do trabalhador a competência é da Justiça do Trabalho. “E conclusões em contrário não encontram embasamento no novo texto constitucional”, concluiu o advogado.

De acordo com o advogado trabalhista Cláudio Maurício Boschi Pigatti, do escritório Villemor Amaral Advogados Associados, o dispositivo constitucional — artigo 109, I, da Constituição Federal — que serviu de base para formação da convicção, tanto do Supremo, quanto das turmas 4ª e 5ª do TST, não foi alterado pela EC 45.

Para o advogado, “entendimento diverso nos obrigaria a admitir que no texto constitucional existem expressões inúteis”. Pigatti defende que se as causas relativas a acidentes do trabalho fossem de competência da Justiça do Trabalho, a expressão “as de acidentes de trabalho” deveria ter sido suprimida do inciso I do artigo 109 da CF, sob pena de redundância.

O especilalista afirma, ainda, que para o fim das divergências “a EC 45 deveria ter ido mais longe e alterado o artigo 109, I, da Constituição Federal, de modo a autorizar a Justiça do Trabalho a apreciar demandas relativas aos benefícios previdenciários próprios do acidente do trabalho”.

Isabella Witt Jaloreto, também advogada trabalhista, acredita que dúvidas ainda persistirão. Isso porque, na esfera da Justiça do Trabalho, o TST ainda não firmou entendimento pacífico sobre o tema. “Enquanto algumas Turmas afastam essa competência, outras acolhem, motivo pelo qual o entendimento sobre o tema deverá ser unificado por intermédio do Pleno do STF”.

Leia a íntegra do voto do ministro Celso de Mello no RE 438.639

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO

Peço vênia para dissentir dos eminentes Ministros Relator, CARLOS BRITTO, e MARCO AURÉLIO, pois, em recentíssima decisão que proferi sobre a matéria ora em exame, manifestei entendimento no sentido de que compete à Justiça dos Estados-membros e do Distrito Federal, e não à Justiça do Trabalho, o julgamento das ações de indenização por danos materiais e/ou morais resultantes de acidente do trabalho, ainda que fundadas no direito comum e ajuizadas em face do empregador.


Cumpre assinalar que tem sido tradicional, no sistema jurídico brasileiro, o reconhecimento, em sede constitucional (CF/46, art. 123, § 1º — CF/67, art. 134, § 2º — CF/69, art. 142, § 2º, e CF/88, art. 109, I, “in fine”), da competência da Justiça comum dos Estados-membros e do Distrito Federal para o processo e julgamento das causas de índole acidentária. Daí a orientação sumular firmada pelo Supremo Tribunal Federal, que, na matéria em questão, deixou registrada a seguinte diretriz: “Compete à Justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista” (Súmula 501 — grifei).

Os litígios relativos a acidentes do trabalho — expressão esta que designa, consoante acentua PONTES DE MIRANDA ( “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969” , tomo IV/275, 2ª ed., 1974, RT), “quaisquer questões ou composições (…), ainda quando se incluam em regramento de contratos coletivos de trabalho” — não se expõem, por isso mesmo, à competência da Justiça do Trabalho.

Esse entendimento — que se aplica às ações de indenização por acidente do trabalho, quer as ajuizadas contra o INSS, quer as promovidas contra o empregador (ainda que fundadas no direito comum) — vem sendo observado pela jurisprudência desta Corte, tanto em acórdãos emanados de seu Plenário e de suas Turmas quanto em decisões monocráticas proferidas por seus eminentes Juízes (AI 218.380-AgR/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – AI 344.192/MG, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – AI 524.411/MG, Rel. Min. EROS GRAU – AI 526.410/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES – AI 527.105/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 176.532/SC, Rel. p/ o acórdão Min. NELSON JOBIM – RE 351.528/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 388.304/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 444.302/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

Competência: Justiça comum: ação de indenização fundada em acidente de trabalho, ainda quando movida contra o empregador.

1. É da jurisprudência do STF que, em geral, compete à Justiça do Trabalho conhecer de ação indenizatória por danos decorrentes da relação de emprego, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do direito comum e não do Direito do Trabalho.

2. Da regra geral são de excluir-se, porém, por força do art. 109, I, da Constituição, as ações fundadas em acidente de trabalho, sejam as movidas contra a autarquia seguradora, sejam as propostas contra o empregador.”

(RTJ 188/740, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE — grifei)

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO CIVIL. DEMANDA SOBRE ACIDENTE DE TRABALHO. COMPETÊNCIA. ART. 109, I DA CONSTITUIÇÃO”.

1. Esta Suprema Corte tem assentado não importar, para a fixação da competência da Justiça do Trabalho, que o deslinde da controvérsia dependa de questões de direito civil, bastando que o pedido esteja lastreado na relação de emprego (CJ 6.959, rel. Min. Sepúlveda Pertence, RTJ 134/96).

2. Constatada, não obstante, a hipótese de acidente de trabalho, atrai-se a regra do art. 109, I da Carta Federal, que retira da Justiça Federal e passa para a Justiça dos Estado s e do Distrito Federal a competência para o julgamento das ações sobre esse tema, independentemente de terem no pólo passivo o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS ou o empregador. (…).” (RE 345.486/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE — grifei)

Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal advertiu, no tema ora em análise, que não se revela suficiente, para reconhecer-se a competência da Justiça do Trabalho, que a controvérsia entre o trabalhador e o empregador se origine da relação de trabalho, impondo-se identificar, para efeito de incidência do art. 114 da Constituição, se se trata, ou não, de litígio decorrente de acidente de trabalho, pois, nesta específica hipótese, instaurar-se-á a competência da Justiça estadual:

“Na espécie, não obstante cuidar-se de dissídio entre trabalhador e empregador, decorrente da relação de trabalho — o que bastaria, conforme o art. 114 da Constituição, a firmar a competência da Justiça do Trabalho —, há um outro elemento a considerar: pleiteia-se não qualquer indenização por ato ilícito, mas indenização por acidente do trabalho, caracterizado por doença permanente adquirida em decorrência dessa relação de trabalho (…),o que, por si só, afasta a incidência do art. 114, atraindo a competência da Justiça comum, por força do disposto no art. 109, I, da Constituição.” (RE 403.832/MG, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE — grifei)


Impende insistir, portanto, que, em se tratando de matéria acidentária, qualquer que seja a condição ostentada pela parte que figura no pólo passivo da relação processual (INSS ou empregador), , no que se refere a tais causas, expressa reserva de competência instituída, “ope constitutionis”, em favor da Justiça comum dos Estados-membros.

Essa reserva de competência, que tem sido tradicional em nosso sistema de direito constitucional positivo, permanece íntegra, não obstante a superveniência da EC 45/2004. Isso significa, portanto, que ainda remanesce, na esfera de competência da Justiça estadual, o poder de processsar e julgar as ações de indenização por danos morais ou materiais resultantes de acidentes do trabalho, mesmo que a pretensão jurídica nelas deduzida encontre fundamento no direito comum.

É por essa razão que entendo revelar-se inaplicável, ao caso, tanto o inciso VI do art. 114 da Constituição, na redação dada pela EC 45/2004, quanto a Súmula 736 desta Corte.

Cumpre pôr em destaque, finalmente, ante o seu inquestionável relevo, a observação do eminente Ministro CEZAR PELUSO, consignada em decisão que proferiu no AI 527.105/SP — e ora reiterada no presente julgamento —, de que a definição da competência da Justiça estadual, para processar e julgar as causas acidentárias, repousa em um princípio — o da “unidade de convicção” — que constitui, segundo enfatizou, a “razão última de todas as causas de fixação e prorrogação de competência, de reunião de processos para desenvolvimento e julgamento conjuntos ou pelo mesmo juízo”, verbis:

É que, na segunda hipótese, em que se excepciona a competência da Justiça do Trabalho, as causas se fundam num mesmo fato ou fatos considerados do ponto de vista histórico, como suporte de qualificações normativas diversas e pretensões distintas. Mas o reconhecimento dessas qualificações jurídicas, ainda que classificadas em ramos normativos diferentes, deve ser dado por um mesmo órgão jurisdicional. Isto é, aquele que julga o fato ou fatos qualificados como acidente ou doença do trabalho deve ter competência para, apreciando-os, qualificá-los, ou não, ainda como ilícito aquiliano típico, para que não haja risco de estimas contraditórias do mesmo fato. E é exatamente esse o motivo pelo qual não interessa, na interpretação do caput do art. 114, qual a taxinomia da norma jurídica aplicável ao fato ou fatos. Importa, sim, tratar-se de fato ou fatos que caracterizem acidente do trabalho. Ora, a cognição desse mesmo fato ou fatos, quer exija, num caso, aplicação de norma trabalhista, quer exija, noutro, aplicação de norma de Direito Civil, deve ser exclusiva da Justiça Comum, competente para ambos. O caso em nada se entende com a súmula 736.” (AI 527.105/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – grifei)

Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para acompanhar a divergência iniciada pelo eminente Ministro CEZAR PELUSO, reafirmando o meu entendimento — recentemente externado em decisão que proferi (RE 371.866/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO) —, no sentido de que assiste, ao Poder Judiciário do Estado-membro, e não à Justiça do Trabalho, a competência para processar e julgar as causas acidentárias, ainda que tenham sido instauradas, contra o empregador, com fundamento no direito comum, tal como sucede na espécie ora em exame.

É o meu voto.

Leia a íntegra de outra decisão do Supremo sobre o tema

01/02/2005 PRIMEIRA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 394.943-8 SÃO PAULO

RELATOR ORIGINÁRIO: MIN. CARLOS BRITTO

RELATOR PARA O ACÓRDÃO: MIN. EROS GRAU

RECORRENTE(S): WEG INDÚSTRIA LTDA (ATUAL DENOMINAÇÃO DE MOTORES ELÉTRICOS BRASIL S/A)

ADVOGADO(A/S): ANTONIO CARLOS ARIBONI E OUTRO(A/S)

RECORRIDO(A/S): ELÓI LINO DOS SANTOS

ADVOGADO(A/S): VILMA DE MORAES TARDIOLI E OUTRO(A/S)

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL. DANO MORAL E MATERIAL DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO. COMPETÊNCIA.

1. É competente a Justiça Comum estadual para o julgamento das causas relativas à indenização por acidente de trabalho, bem assim para as hipóteses de dano material e moral que tenham como origem esse fato jurídico, tendo em vista o disposto no artigo 109, I, da Constituição do Brasil.

2. A nova redação dada ao artigo 114 pela EC 45/2004 não teve a virtude de deslocar para a Justiça do Trabalho a competência para o exame da matéria, pois expressamente refere-se o dispositivo constitucional a dano moral ou patrimonial decorrentes de relação de trabalho.


Recurso extraordinário conhecido, mas não provido, mantida a competência da Justiça Comum para o exame da lide.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, negar provimento ao recurso extraordinário. Brasília, 1º de fevereiro de 2005.

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO (Relator)

Cuida-se de recurso extraordinário, tempestivo e regularmente interposto com fundamento na alínea “a” do inciso III do art. 102 da Constituição Republicana, contra acórdão proferido pelo Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.

2. O aresto recorrido concluiu que é da competência da Justiça comum estadual — e não da Justiça do Trabalho — o processamento e julgamento das ações de indenização por danos morais decorrentes de acidente do trabalho, propostas pelo empregado contra o empregador.

3. A recorrente sustenta violação ao artigo 114 da Carta de Outubro (antes da atual redação, veiculada na EC 45/04). Argumenta, em resumo, que o pedido de indenização decorre da relação de emprego havida entre as partes, sendo este, portanto, o suporte fático inarredável que atrai a competência da Justiça trabalhista.

Nessa perspectiva, aduz que o fato de a ação se pautar em normas de Direito Civil não tem a força de afastar a incidência da regra constitucional.

4. O recorrido não apresentou contra-razões (fls. 99).

5. A douta Procuradoria-Geral da República opina pelo desprovimento do apelo extremo, invocando jurisprudência desta colenda Corte.

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO (Relator)

A matéria já passou pelo crivo desta Primeira Turma. Participei de alguns julgamentos — três, se bem me lembro — e, muito embora não estivesse totalmente convencido quando da primeira oportunidade (julgamento do RE 403.832), acabei por acompanhar o entendimento majoritário. Debruçando-me detidamente sobre o assunto, porém, firmei convicção em sentido diverso. Daí, e tendo em vista, sobretudo, a magnitude do tema — distribuição de competência judicante material —, decidi submeter à apreciação de meus pares as reflexões que empreendi.

8. É pacífico nesta colenda Corte o entendimento de que compete à Justiça laboral conhecer de ação indenizatória por danos morais decorrentes da relação de trabalho, não importando se a controvérsia deva ser dirimida à luz do Direito Comum. Isso com base no art. 114 da Constituição Republicana (redação anterior à EC nº 45/04). Precedentes exemplificativos: RE 238.737, Relator Ministro Sepúlveda Pertence; e RE 218.129-AgR, Relator Ministro Carlos Velloso.

9. Por outro lado, também aqui é pacífico, e de há muito, o entendimento de que compete à Justiça comum estadual o julgamento das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista. É o teor da Súmula 501, fundada no art. 109, inciso I, da Carta de Outubro.

10. O caso sob exame tem a peculiaridade de se comunicar — pelo menos é esta a impressão — com as duas situações descritas, pois se cuida de ação indenizatória por danos morais decorrentes de acidente do trabalho, proposta por empregado em face de seu ex-empregador.

Necessário, então, o confronto dos dois dispositivos constitucionais então vigentes.

11. Veja-se o teor de ambos:

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”

“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.” (Grifos acrescidos)

12. Pois bem, esta Casa tem decidido que o processamento e o julgamento das causas movidas pelo empregado contra o empregador, em que se pleiteia reparação por danos morais decorrentes de acidente do trabalho, são da competência da Justiça comum estadual. A norma constitucional invocada é o art. 109, inciso I, segunda parte. Consultem-se os REs 403.832 e 345.486, Relatores os Ministros Sepúlveda Pertence e Ellen Gracie, respectivamente.


13. Ouso divergir dessa orientação, nos termos que vão abaixo explicitados.

14. Veja-se que a segunda parte do inciso I do art. 109 da Carta de 1988 enuncia: “…exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”.

Argumenta-se, então, que, ao excetuar da competência dos juízes federais, concomitantemente, as causas de acidente do trabalho e as causas sujeitas à Justiça do Trabalho, a Constituição teria deixado claro que as primeiras não estão inseridas na competência desta última. Contudo, essa não me parece ser a melhor exegese do texto normativo, dado que a primeira parte do citado inciso I determina, claramente, que compete aos juízes federais processar e julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes…”.

Esta é a regra geral. A exceção vem em seguida e só pode ser compreendida em face daquela. É dizer: as causas de acidente do trabalho em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas, na condição de autora, ré, assistente ou oponente, não estão inseridas na competência dos juízes federais.

Assim colocada a regra, conclui-se que as causas de acidente do trabalho referidas no inciso I do art. 109 da Constituição Federal só podem ser as chamadas acidentárias, quais sejam, as que o segurado move contra o INSS, autarquia federal, a fim de discutir questões atinentes ao benefício previdenciário. Estas, sim, cabem à Justiça comum estadual, segundo o critério residual de distribuição de competência, como sempre decidiu o STF.

15. Distinta é a hipótese das ações reparadoras de danos morais decorrentes de acidente do trabalho, movidas pelo empregado contra o empregador, porque aí, geralmente, não há interesse da União, de entidade autárquica ou de empresa pública federal. A menos que uma delas esteja na condição de empregadora, é claro.

16. Não se subsumindo na regra do inciso I do art. 109, tais hipóteses encontrariam forte guarida já na antiga redação do art. 114 da Constituição, norma principal e afirmativa da competência da Justiça do Trabalho. Isso porque compete a esta Justiça conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (abrangidos, note-se, os entes de direito público externo e interno, o que demonstra a amplitude do preceito), além de outras controvérsias decorrentes da relação laboral.

17. Ora bem, não há dúvida de que o acidente do trabalho decorre da relação empregatícia, como se fossem o efeito e sua causa: sem o vínculo trabalhista não existiria o acidente; este somente ocorre no âmbito daquele. Assim, desde que o pedido não se refira ao benefício previdenciário em si e seja deduzido em face do empregador, não há como afastar a competência da Justiça especial.

Isso porque o tema central desses casos não é o acidente mesmo, ensejador do benefício previdenciário devido pelo INSS, mas, sim, os seus efeitos morais sobre a pessoa do trabalhador. Efeitos que, não raro, dependem diretamente da conduta do empregador, comissiva ou omissiva.

18. Nessa linha de raciocínio, observo que, para verificar se o empregador concorreu mediante culpa (elemento essencial da configuração do ilícito), é relevante que se esteja mais próximo do dia-a-dia dos trabalhadores e da realidade das condições de trabalho no Brasil. E se assim é, penso que o Juiz especializado está em situação mais favorável para aquilatar as circunstâncias que envolveram a alegada causa do pedido de indenização — o acidente do trabalho.

Aquele que julga os fatos atinentes à relação obreira (muitas vezes a própria existência dela) possui naturalmente maior aptidão para apreciar os aspectos objetivos e subjetivos que digam respeito assim ao fato como ao comportamento do empregado e do seu empregador.

Tal magistrado, naturalmente mais ligado à coletividade de trabalhadores e empregadores, encontra-se em melhores condições de entregar uma prestação jurisdicional mais condizente com as expectativas e as necessidades dos protagonistas da relação de emprego.

19. Por motivos assemelhados a estes, no sentido de que litígios exsurgidos do ambiente do trabalho devem ser dirimidos pela Justiça especializada, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 736:

“Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”. Sem que se olvide, aliás, que o acidente do trabalho comumente sucede por conta de tal descumprimento.

20. É a relação de trabalho, portanto, a verdadeira matriz de todas as controvérsias a envolver empregado e empregador. Já a matéria genuinamente acidentária, ligada ao benefício previdenciário correspondente, só pode ser discutida com o INSS, razão por que somente nesta hipótese é que se aplica a regra residual firmada no inciso I do art. 109 da Constituição. O fato — acidente do trabalho — é único, mas proporciona qualificações jurídicas diversas, entre as quais o direito ao benefício previdenciário e o direito a eventual indenização pelos danos morais sofridos. Este último, quando existente, decorre diretamente da relação de emprego, tanto que obriga o empregador e apenas ele.


21. No mais, não me soa aconselhável preterir a competência da Justiça trabalhista com base numa regra que trata das exceções à competência de outro órgão do Poder Judiciário (art, 109, inciso I), quando do mesmo texto constitucional se desata uma norma clara e afirmativa da competência dessa Justiça especial (art. 114).

Texto que, segundo os próprios fundamentos do Direito Constitucional do Trabalho, deve ser interpretado ampliativamente. E entender de modo diverso significaria privilegiar a exceção em prejuízo da regra; dar cumprimento a uma norma residual de competência, atribuída à Justiça comum estadual, em desfavor de norma de competência fundadora de uma Justiça especial; fragilizar, enfim, o sistema de distribuição de competência ratione materia e posto na Carta de 1988, que albergou a vis atractiva do Judiciário Federal, em função das suas áreas de especialização.

22. Em resumo, se cabe à Justiça Laboral conhecer das controvérsias que se instauram entre trabalhadores e empregadores, em decorrência da relação de trabalho, assiste-lhe igual competência para apreciar matéria como a dos danos morais advindos, justamente, do acidente do trabalho. Mais: a pertinência desse vínculo revela-se até mesmo na legislação previdenciária, que faz a equiparação das doenças profissionais ou do trabalho (que decorrem, ninguém duvida, da relação laboral) ao acidente do trabalho. E se o STF entende que é da competência da Justiça Obreira conhecer e julgar as ações de indenização por danos morais decorrentes da relação de trabalho, não há porque excepcionar aquelas em que o pedido de indenização decorra de acidente do trabalho, por decorrer este também da relação laboral, como exaustivamente dito.

23. De mais a mais, não posso perder de vista a tendência abrangente da competência da Justiça do Trabalho ao longo da história constitucional brasileira, tendência confirmada na promulgação da recente Emenda 45/04, que tratou da Reforma do Judiciário. Houve diversas modificações no art. 114, todas para ampliar essa competência. Entre elas, está a que atribui expressamente à Justiça do Trabalho aptidão para processar e julgar as ações de indenização por danos morais decorrentes da relação de trabalho (inciso V). É alteração que reforça a tese aqui esposada, se se entender, como parece claro, que o acidente do trabalho só ocorre no âmbito da relação laboral.

24. Por último, é de se ver que a norma-base do inciso IV do art. 1o da Constituição Federal ganha especificação trabalhista em vários dispositivos do art. 7o, a saber: incisos XXX, XXXI e XXXII. Isto, depois de a Magna Carta sair em defesa dos trabalhadores com a regra da obrigação do seguro contra acidente do trabalho, sem prejuízo da indenização por motivo de conduta dolosa ou culposa do empregador.

25. Confira-se:

“Art. 7o: (…)

(…)

XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;”

26. Tudo isto comprova que a longa enunciação dos direitos trabalhistas de que trata o art. 7o da Constituição parte de um pressuposto lógico: a hipossuficiência do trabalhador perante seu empregador. A exigir, portanto, interpretação extensiva ou ampliativa, de sorte a abranger, ante duas exegeses possíveis, a que prestigia a competência especializada da Justiça do Trabalho.

27. Pelas razões expendidas, entendo que as ações de indenização por danos morais decorrentes de acidente do trabalho, propostas pelo empregado contra o empregador, devem ser processadas e julgadas pela Justiça do Trabalho e não pela Justiça comum estadual. É que a natureza do pedido, em tais hipóteses, é nitidamente trabalhista, e não previdenciária, o que também afasta a aplicação do art. 109, inciso I, da Lei das Leis.

28. No caso, dou provimento ao recurso para declarar a competência da Justiça do Trabalho, para a qual os autos devem ser remetidos, com a máxima urgência.

29. É o meu voto.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU:

Sr. Presidente, nego provimento ao recurso extraordinário. Entendo que persiste a competência da Justiça Comum estadual para o julgamento das causas relativas à indenização por acidente de trabalho, bem assim para as hipóteses de dano material e moral que tenham como origem esse fato jurídico, tendo em vista o disposto no artigo 109, I, da Constituição do Brasil.

É certo que a Emenda Constitucional n. 45/2004 deu nova redação ao artigo 114 da Constituição do Brasil. Essa modificação legislativa, no entanto, não teve a virtude de deslocar para a Justiça do Trabalho a competência para o exame da matéria, pois expressamente refere-se o dispositivo constitucional a dano moral ou patrimonial decorrente de relação de trabalho, e não a de acidente de trabalho — fatos jurídicos distintos.


Peço vênia ao eminente Relator para conhecer do recurso extraordinário, mas negar-lhe provimento. Mantenho, em conseqüência, a competência da Justiça do Comum estadual para o exame da controvérsia.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE

Com a vênia de V.Exa., Ministro Relator, e do Ministro Marco Aurélio, adiro à solução proposta pelo Ministro Eros Grau e me reservo, então, para reexaminar a questão em um caso posterior à Emenda 45: então se vai discutir se cabe distinguir no art. 114 da Constituição, se o litígio decorre ou não de um acidente de trabalho. Até então mantenho a jurisprudência.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO

Senhor Presidente, apenas para expressar mais uma vez o meu convencimento sobre a matéria. Entendo que o preceito que prevê a competência da Justiça comum para julgar causas relativas a acidente de trabalho encerra verdadeira exceção, porque se tem, aí, o envolvimento de uma autarquia do próprio Instituto de Previdência.

No caso, a ação foi ajuizada contra o empregador, levando em conta a culpa deste, relativamente ao acidente.

Ora, é possível interpretar o dispositivo que excepciona a competência da Justiça Federal, apontando a competência da Justiça comum para as ações acidentárias, a ponto de enquadrar uma ação que é movida contra o empregador, esvaziando-se e estabelecendo-se uma distinção, considerada a regra do artigo 114 da Constituição Federal?

A meu ver, não. Por isso, reafirmo o entendimento. Numa primeira fase, concluo e reitero que o aconselhável seria o deslocamento do processo para o Plenário. Vencido quanto a isso, acompanho o relator para anular o processo e assentar a competência da Justiça do Trabalho, como fez Sua Excelência.

Decisão

Por maioria de votos, a Turma negou provimento recurso extraordinário. Vencidos os Ministros Carlos Britto, Relator, e Marco Aurélio. Relator para o acórdão o Ministro Eros Grau. 1ª Turma, 01.02.2005.

Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à Sessão os Ministros Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Edson Oliveira de Almeida.

Ricardo Dias Duarte

Coordenador

Leia íntegra do voto do relator da 6ª Turma do TRT-2

Natureza: Recurso Ordinário

Recorrente: Editora Globo S/A

Recorrido: Cleber Faria Salgado

Origem: 57ª Vara do Trabalho de São Paulo

2005-04-25

Ementa

Acidente do Trabalho. Dano material e moral. Competência da Justiça do Trabalho. Avaliação do dano material e moral resultante de conduta do empregador no âmbito da relação de trabalho. Subsídios da legislação comum (CLT, art. 8º, § único). É lide trabalhista (Constituição Federal, art. 114, VI).

Contra a sentença que julgou procedente em parte a ação, recorre a ré alegando que a Justiça do Trabalho é incompetente para apreciar indenização por dano moral e material; que houve cerceamento de defesa; que o autor não permanecia digitando ininterruptamente; que são indevidas as horas extras; que devem ser excluídas as horas extras do período de afastamento; que não foi demonstrado o dano; que a vistoria do local de trabalho foi realizada nas instalações da Atento Brasil, eis houve desativação das suas dependências; que a tenossinovite é doença é inflamatória, não podendo ter nexo causal com atividade interrompida há mais de 17 meses; que não houve redução da capacidade laborativa; que a indenização deve ser minorada; que o autor não informou o valor do benefício previdenciário, dificultando a contestação do pedido de diferenças salariais; que os honorários periciais foram fixados em valor excessivo e que a correção monetária incide a partir do vencimento da obrigação. Contra-razões às fls. 421/435. O Ministério Público teve vista dos autos.

VOTO

1. Apelo aviado a tempo e modo (fls. 411/413). Conheço-o.

2. Competência da Justiça do Trabalho. Dano moral e material. O autor pede indenização por danos materiais e morais (itens j e l; fl. 19) decorrentes de doença profissional (tenossinovite). Alega que a moléstia da qual padece é irreversível e tem como causa a negligência e imprudência da ré, que não forneceu equipamentos destinados à segurança do trabalho, exigindo, ainda, o cumprimento de jornada de trabalho excessiva, com digitação constante e sem os intervalos correspondentes à atividade (itens 12/13; fls. 14/17). A causa petendi, portanto, é a culpa da empregadora pela aquisição de moléstia incapacitante do trabalho desempenhado pelo autor, durante a vigência do contrato de trabalho. A doença teria surgido exclusivamente em razão da relação de trabalho havida entre as partes.

2.1. É certo que para o dano moral, produzido dentro das relações de trabalho, é competente para julgamento a Justiça do Trabalho (OJ nº 327 da SDI 1 do TST). É claro que será preciso orientar-se com critério e prudência nessa definição de competência, para não incluírem-se as situações que, embora envolvendo empregado e empregador, possam corresponder a fatos dissociados da ordinariedade do relacionamento trabalhista. Será, então, da competência trabalhista, as situações que impliquem a necessidade de se emitir juízo de valor sobre a conduta dos sujeitos envolvidos numa relação de trabalho. Julgar-se-ão, pois, o que podem e o que não podem fazer essas pessoas (empregado ou trabalhador e empregador ou contratante), sempre no âmbito das relações trabalhistas.


2.2. O aspecto mais relevante do julgamento compreenderá a avaliação da conduta do empregador (ação ou omissão), enquanto empregador, e sua responsabilidade por algum dano à saúde do empregado, além da repercussão desse fato em sua esfera particular, como possível conseqüência da lesão. Apenas secundariamente, ou como eventual conseqüência para a hipótese de uma condenação, é que interfere o interesse pela quantificação da medida reparatória.

2.3. Foi justamente para julgar o dano trabalhista, nesse complexo relacionamento entre empregado e empregador, que foi criada a Justiça do Trabalho. É pacífico na doutrina e jurisprudência que o dano moral pode ser cumulado com o dano material. Julgando-se o dano material trabalhista, dele pode resultar, ocasionalmente, como fruto desse juízo de valor, também o dano moral, imaterial. Confira-se a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.”

2.4. A indenização não é postulada conforme a legislação de infortunística, mas, sim, pelo inadimplemento, por parte do empregador, de obrigação trabalhista de fornecer os EPI’s adequados para evitar doenças profissionais e conceder os intervalos legais, bem como sua conduta em exigir a atividade de digitação em cargas excessivas. O fundamento para a indenização pretendida é ato decorrente da relação de trabalho, ainda que não voluntário (acidente de trabalho ou doença profissional equiparada), nos moldes do art. 186 do Código Civil (art. 159 do Código Civil de 1916), situação absolutamente diversa das ações referentes à prestação previdenciária decorrente de acidente de trabalho, propostas contra o INSS ou contra o Estado. Estas sim de competência da Justiça Comum. Confiram-se, nesse sentido as Súmulas 501 do STF e 15 do STJ, que tem origem no cumprimento à disposição contida no art. 109, I, da Constituição Federal, a qual retira da esfera da Justiça Federal as causas de acidentes de trabalho, mesmo quando envolverem a União, Autarquia Federal ou Empresa Pública Federal. É neste sentido, inclusive, que a redação da Súmula 501 do STF traz a locução “ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista”.

2.5. Os equivocados pronunciamentos jurisprudenciais em contrário, nessa matéria de competência envolvendo pedidos de reparação de dano, desconsideram que o direito comum é fonte subsidiária do direito do trabalho, (expressamente: CLT, art. 8º, § único). Também desconsideram que a reparação de dano é perfeitamente possível nas relações entre empregado e empregador (CLT, art. 462, § 1º), não sendo estranhas ao direito do trabalho as teorias da culpa (CLT, arts. 52 e 484). São corriqueiras as lesões envolvendo, por exemplo, a frustração de garantias institucionais, compreendendo, como na situação da gestante, a responsabilidade objetiva (independentemente de culpa), como ainda a conduta omissiva sobre as medidas tendentes à liberação do seguro-desemprego (presença de culpa), implicando a necessidade de uma reparação de danos, bem ao feitio das perdas e lucros cessantes extraídos do direito comum. O importante é a necessidade de situar o fato danoso dentro da relação jurídica entre as partes. Será, então, da competência trabalhista, as situações que impliquem a necessidade de se emitir juízo de valor sobre a conduta dos sujeitos da relação de trabalho, julgando-se o que podem e o que não podem fazer.

São dignos de nota esses julgados do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

“Justiça do Trabalho. Competência: ação de reparação de danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do Direito Civil.” (STF, RE 238.737-4, 1ª T., Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DOU 05.02.99, p. 47).

“CONFLITO DE JURISDIÇÃO. JUSTIÇA DO TRABALHO. JUSTIÇA COMUM. Pretende o Reclamante, como ex-empregado, obter da ex-empregadora, o cumprimento de obrigação, que o sindicato patronal teria assumido perante o sindicato dos trabalhadores por acordo homologado pelo TRT da 2ª Região (…). Trata-se de pretensão decorrente da relação contratual de emprego, como tratada no acordo coletivo, em dissídio trabalhista. Embora a causa da pretensão seja um alegado acidente do trabalho, o que se pleiteia não é uma indenização conforme a legislação de infortunística, mas, sim, pelo inadimplemento de obrigação trabalhista de prestar seguro do trabalhador, assumida, segundo se alega, no referido acordo coletivo perante a Justiça do Trabalho. Conflito de Jurisdição conhecido pelo S.T.F. (art. 119, I, e, da C.F.), declarada competente a Justiça do Trabalho.” (C.J. n. 6.714, Rel. Min. Sydney Sanches, Publicação DJ de 23/09/88, pág. 24.168).


“Ação de reparação de danos morais decorrentes da relação de emprego: competência da Justiça do Trabalho: C.F., art. 114. Na fixação da competência da Justiça do Trabalho, em casos assim, não importa se a controvérsia tenha base na legislação civil. O que deve ser considerado é se o litígio decorre da relação de trabalho.” (STF, RE 408381 AgR, 2ª T., Rel. Min. Carlos Velloso, Publicação DJ de 23/04/04, pág. 2.808).

2.6. A ampliação da competência resultante da EC nº 45/04, não fez mais do que confirmar a competência desta Justiça Especializada para essas ações, inserindo no texto constitucional a expressa disposição de que “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” (Constituição Federal, art. 114, VI).

3. Cerceamento de defesa. A ré juntou os controles de horas extras do período de julho a dezembro/99 (fls. 138/144) e o autor admitiu sua veracidade (fls. 50/51). A prova neste caso é documental, porque é obrigatório o registro de horário dos empregados (CLT, art. 74, § 2º), sendo desnecessária a oitiva de testemunhas (CPC, art. 130). Portanto, não houve prejuízo a justificar o pronunciamento de nulidade (CLT, art. 794).

4. Intervalo de digitador. O autor disse (fls. 50/51) que no exercício da função de analista de serviço ao cliente monitorava os demais empregados, fazendo relatórios sobre os atendimentos e digitando o tempo todo. A confirmação do Sr. Perito (item 297; fl. 297) é motivo bastante para o pagamento dos intervalos como horas extras a partir da promoção (fevereiro/2000), tal como disposto na sentença.

5. Horas extras. O autor (fls. 50/51) afirmou que as horas extras eram corretamente anotadas nos controles juntados com a defesa e que elas sempre foram pagas, exceto nos meses de maio a julho/99 e dezembro/99 a fevereiro/00. Portanto, a apuração das diferenças de horas extras observará as anotações constantes desses registros (fls. 138/144) e, na sua ausência, a jornada declinada na inicial, bem como o período de afastamento (07/04/2000 a 01/08/2000).

6. Doença profissional. Indenização por dano moral e material. O autor é portador de doença profissional (LER – Síndrome do Túnel de Carpo) comprovada por laudo pericial (fls. 294/305). O Sr. Perito constatou que o trabalho do autor demandava “movimentos repetitivos e sobrecarga muscular estática”, decorrendo desses fatores a patologia de caráter ocupacional. Disse que o operador de telemarketing imprime caracteres no teclado para preencher campos na tela do monitor, de maneira repetitiva e sem intervalo, predispondo a moléstia diagnosticada no exame clínico e confirmada no exame subsidiário (Eletroneuromiografia), possibilitando o reconhecimento do nexo causal para a doença (item VIII; fl. 304). Informou ainda que havia apenas apoio para os pés e algumas cadeiras com apoio para os braços, inexistindo suporte de teclado e de mouse (item 2; fl. 297 e item 4; fl. 301).

6.1. Da existência da doença e pela segurança do nexo causal resultam a certeza das lesões alegadas, material e imaterial, que se constituíram por culpa da ré. A identificação do fato lesivo e do responsável culposo pela sua ocorrência obriga a reparação (art. 186 do Código Civil). Mas as conseqüências do fato danoso poderiam perfeitamente ter sido evitadas se a ré tivesse dado cumprimento ao que lhe comete o art. 199 da CLT. Feriu também as normas de proteção ao trabalho (CLT, art. 157, I), particularmente a NR-17, da Portaria nº 3.214, de 08.06.78 (DOU 06.07.78), c/c o art. 200 da CLT, que trata, especificamente, da ergonomia. Eis o que reza o item 17.3.2 da NR-17:

“17.6.3 – Nas atividades que exijam sobrecarga muscular estática ou dinâmica do pescoço, ombros, dorso e membros superiores e inferiores, e a partir da análise ergonômica do trabalho, deve ser observado o seguinte:

a) todo e qualquer sistema de avaliação de desempenho para efeito de remuneração e vantagens de qualquer espécie deve levar em consideração as repercussões sobre a saúde dos trabalhadores;

b) devem ser incluídas pausas para descanso;

c) quando do retorno ao trabalho, após qualquer tipo de afastamento igual ou superior a 15 (quinze) dias, a exigência de produção deverá permitir um retorno gradativo aos níveis de produção vigentes na época anterior ao afastamento.”

6.2. A realização da vistoria do local de trabalho não foi possível em razão de sua desativação. No entanto, o serviço de telemarketing foi terceirizado, sendo efetuado pela empresa Atento Brasil Ltda., cujas instalações são semelhantes e permitiram a verificação das condições de trabalho (item VI; fl. 300 e fl. 351). A alegação da ré de que a doença é inflamatória e que não provocou redução da capacidade laborativa foi afastada pela conclusão do Sr. Perito:


“Tal condição clínica (…) é fator indiscutível de sua diminuição de capacidade laborativa em quantidade e qualidade de trabalho. Encontra-se incapacitado para o trabalho nas funções de Operador de Telemarketing/Analista de Serviços ao Cliente III…” (item XI; fl. 305).

6.3. A indenização pelos danos morais e materiais é devida pelo fato objetivo das seqüelas, bem como pela responsabilidade da ré pelos problemas de saúde do autor, ferindo-lhe um bem jurídico da maior importância para a pessoa humana, qual seja a saúde, o bem estar, a higidez física, de cuja lesão resulta, de forma derivada, uma perturbação emocional que não cessará facilmente. É inegável a lesão moral que afeta a vida profissional do trabalhador. Sua fixação deu-se de forma razoável (12 salários, férias + 1/3, 13º salário e reflexos no FGTS + 40%; fl. 364) com observância da legislação apontada pela ré (Leis nº 4.117/62 e 5.250/67), inexistindo razão para sua redução.

7. Diferenças salariais. Complementação de benefício previdenciário. Não houve qualquer obstáculo para a ré contestar o pedido de complementação do benefício previdenciário percebido pelo autor, tendo em vista que está nos autos a carta de concessão com o valor auferido (doc. 51; fl. 42). Na verdade, sua afirmação se deve ao fato de que, diante dos termos da cláusula 11ª da convenção coletiva (fl. 44), inexiste argumento para afastar o pedido.

8. Honorários periciais. O perito é médico, profissional de nível superior e grau de especialização em Segurança e Medicina do Trabalho. A estipulação dos honorários periciais deve tomar em consideração essa sua formação, o tempo de espera para recebimento, os riscos pelo não recebimento em muitos processos, a distinção pessoal que qualifica a confiança como um auxiliar da Justiça e a própria natureza da vistoria. A importância desse trabalho está afirmada na lei, que obriga a elaboração do parecer técnico. É serviço relevante para a Justiça e imprescindível para o processo. Para uma tal realidade, o profissional deve ser condignamente remunerado, sem que represente um escorchamento para quem paga e sem que corresponda a um aviltamento para quem recebe. O valor arbitrado, de R$ 1.500,00 (fl. 364), não excede a referência que se aprova na conformidade desses mencionados parâmetros.

9. Correção monetária. A correção é devida a partir do vencimento da obrigação, como manda o art. 39 da Lei 8.177/91: “Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias assim definidas em lei, acordo ou convenção coletiva, sentença normativa ou cláusula contratual sofrerão juros de mora equivalentes à TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento.”

Adoto o Precedente nº 124 da SDI/TST: “Correção monetária. Salário. Art. 459, CLT. O pagamento dos salários até o 5º dia útil do mês subsequente ao vencido não está sujeito à correção monetária. Se essa data limite for ultrapassada, incidirá o índice da correção monetária do mês subsequente ao da prestação dos serviços.”

CONCLUSÃO

Dou parcial provimento ao recurso, para determinar a observância dos controles de horas extras para sua apuração no período de julho a dezembro/99, bem como do afastamento do autor de 07/04/2000 até 01/08/2000 e fixar o vencimento da obrigação como termo a quo da correção monetária.

Mantenho a referência de alçada.

Dr. Rafael E. Pugliese Ribeiro

Juiz Relator — 6ª Turma do Tribunal

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