Sangria da democracia

Concepções transgênicas do direito avalizam a invasão de escritórios

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17 de junho de 2005, 11h30

Vejo verdadeira engenharia sofismática no recente manifesto da Ajufe a favor da busca e apreensão nos escritórios de advocacia, que atinge assim um grau no qual dificilmente podemos divisar a fronteira entre a aberração jurídica e a ousadia.

É, aliás, peculiar no meio jurídico que a semântica seja levada aos extremos, criando-se categorias e distinções para fundamentar o injustificável. Destarte, encontramos esta hilária pérola na nota emitida pela entidade: “a inviolabilidade prevista na lei é para o advogado, o profissional, e não para o escritório.”

Diante de uma tão descabida afirmação quedamos atônitos, imersos na dúvida sobre se o presidente da Ajufe julga que a inviolabilidade do advogado é até sexual… Porque realmente só resta isso dentre as opções lógicas, se do elenco da inviolabilidade retiramos o escritório.

O escritório é o local onde o advogado labora, toma conhecimento dos fatos, contata o cliente, prepara a defesa, seleciona os documentos, enfim, assim como o próprio domicílio do advogado, integra o conjunto instrumental do modus operandi da advocacia.

É tão despropositada a diferenciação entre “inviolabilidade do escritório” e “inviolabilidade do advogado”, que a Ajufe tem o dever de sair desta arapuca semântica elucidando o fundamento da diferenciação que esculpiu.

Outra dessas delícias do absurdo que podemos ler na referida nota radica na afirmação de que o advogado só é inviolável depois que se instaura o processo. Então, concluo que no entender do ilustre presidente da Ajufe o escritório do advogado pode assim tornar-se uma cilada para o cliente e para o próprio advogado sempre que este buscar um advogado justamente pela iminência de um processo ou buscando uma ação preventiva.

A Ajufe, que parece nem sequer suspeitar que exista a chamada advocacia extrajudicial ou preventiva, nos brinda com mais essa noção estapafúrdia. Cria assim um limite para advocacia que existe somente no ideário da Ajufe, sem que seu presidente enuncie minimamente a base legal de suas convicções, ou melhor, neste caso, de suas crenças.

Decerto, fica desde já evidenciada a pobreza de argumentos, uma vez que se sente obrigado o presidente da Ajufe a apelar para essas “concepções transgênicas” do direito, quando há outras considerações bem mais consistentes poderiam ser tecidas. Ao que parece, no afogadilho de defender sua classe, lhe escapa o centro do problema, com as principais questões que devem ser consideradas na busca e apreensão de documentos em poder do defensor; eis, abaixo, algumas delas:

a) o Estado pode colher, sim, provas da materialidade do crime, mas jamais provas da autoria, vez que estas são conferidas pelo cliente ao advogado em razão direta da sua função defensiva, constitucionalmente garantida, e que não é senão uma extensão do princípio e direito fundamental da ampla defesa;

b) o advogado não pode reter documento que auxilie no proveito do crime sem incorrer no crime de favorecimento real, mas isto não se confunde com a ocultação de uma prova que levará seu cliente à condenação;

c) os princípios éticos da advocacia não inibem a natureza humana e o princípio de auto-conservação a ela correlato de modo a induzir o réu a colaborar na sua própria condenação, d e forma que é direito do réu não só o silêncio, mas também a mentira, e aqueles que se escandalizam com isto desconhecem por completo o fundamento doutrinário, jurisprudencial e humanitário que lastreia dita posição (para isto recomendo a leitura de meu artigo “O sagrado direito de Mentir” em http://www.conjur.com.br/static/text/26206,1 )

Enfim esses são os pontos nodais do problema, e o presidente da Ajufe poderia até discordar das conclusões implicadas apresentando outros argumentos, mas não simplesmente salmodiar sobre a defesa da sociedade na investigação de crimes, em perigosa generalização.

Os estandartes da moral e do combate à criminalidade não podem ser usados para legitimar as ações mais atentatórias contra as garantias e direitos fundamentais. Isto é coisa própria dos Estados totalitários, que, sempre, baixo os pretextos aparentemente mais elevados, ensaiam sufocar as liberdades e se imiscuir até nos últimos recessos da individualidade. Basta recordar que o artigo nº 19 do programa de ação do partido nazista, em 1920, era a “eliminação do direito romano que serve a uma ordenação materialista do mundo”, ou seja, até os nazistas eram capazes de invocar belas razões.

Endossar a invasão de escritórios é avalizar a sangria da democracia e desconhecer por completo a natureza da advocacia no Estado de Direito.

Por fim, tomo de ninguém menos que o Regimento do Santo Ofício na Inquisição (!!!) uma lição de respeito ao direito de sigilo no exercício da defesa, que, pasme-se, pelos últimos fatos, ainda parece ter o que ensinar aos magistrados brasileiros:

“Quando o Procurador eleito pelo réu quiser estar com ele para o instruir e informar sobre a defesa da sua causa, será prontamente conduzido por qualquer Oficial do Santo Ofício ao lugar onde o réu se acha e aí os deixará a ambos em liberdade o mesmo oficial, pondo-se em distância tal que não possa ouvi-los; e, acabada a prática, acompanhará o dito Procurador até a porta por onde entrou; e o mesmo se observará em todas as mais ocasiões que os Procuradores quiserem ter práticas com os réus sobre os pontos e artigos de sua defesa” (título 6º, nº 3, do Regimento de 1774). Uma lição de direito dada pela Inquisição perfeitamente válida em nossos dias! B. – Raul Rêgo, O último regimento da inquisição portuguesa. Ed. Excelsior. Lisboa, 1971.

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