Punir ou pagar

Lei oferece benefícios para sonegador que colabora

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26 de julho de 2005, 11h21

Desde a entrada em vigor da Lei 10.864, de 30 de maio de 2003 ( Refis II ), vem se consolidando no País a tese do incentivo ao pagamento do tributo devido, em vez da mera punição, nos crimes contra a ordem tributária. Regra geral, a oferta de “benefícios” aos acusados de sonegação fiscal não é novidade. A lei do Refis II, entretanto, inovou ao inserir na ordem jurídica a possibilidade de suspensão do processo, mesmo depois de recebida a denúncia.

O que antes havia, em termos de “benefícios”, era a possibilidade de extinção do processo, desde que o acusado recolhesse ao fisco todo o tributo devido antes do recebimento da denúncia do Ministério Público. A causa extintiva de punibilidade viveu idas e vindas ao sabor das mudanças legislativas no Brasil. Surgiu no artigo 2º da Lei 4.729/65. Depois foi substituída no artigo 14 da Lei 8.137/90. Por fim, o disposto no artigo 14 ( Extinção da Punibilidade ) da Lei dos “Crimes Contra a Ordem Tributária” foi revogado com a promulgação da Lei 8.383, de 31 de dezembro de 1991.

Quatro anos depois, tornou a Lei a mudar. O Artigo 34 da Lei 9.249/95, restabeleceu o disposto no Artigo 14 da lei anterior, nos seguintes termos:

Art. 14 – Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

Era este o cenário até a publicação da Lei do Refis II e as substanciais mudanças introduzidas por seu Artigo 9º e parágrafos, que, para correto entendimento, transcrevemos na íntegra:

Art. 9º – É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

§1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos créditos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.

Nos parecem patentes as várias inovações trazidas pela Lei nº 10.864/2003, principalmente, se comparada com a legislação anterior:

1) Introduz a possibilidade de suspensão da pretensão punitiva;

2) Oferece o parcelamento do débito como meio de alcançar a suspensão;

3) Mantém a causa de extinção, quando do pagamento integral dos tributos devidos;

4) Por fim, não exige – como na norma anterior – que o pagamento ou parcelamento do débito seja feito antes do recebimento da denúncia.

Com a Lei em vigor há mais de dois anos, persistem ainda algumas controvérsias que aos poucos vão se dissipando diante da objetividade e clareza do texto legal. A principal delas diz respeito ao momento aquisitivo do benefício, se apenas antes ou também depois do recebimento da denúncia. Fernando da Costa Tourinho Filho elucida o assunto: “…se a pessoa jurídica requerer o parcelamento do débito tributário ou de contribuições sociais, fica suspenso o prazo prescricional e, uma vez liquidado integralmente o débito, extinta ficará a punibilidade, pouco importando tenha sido, ou não, recebida a denúncia. ( TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. V 1. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 634.)

Como é natural no direito, ainda há resistências em relação aos benefícios legais introduzidos a partir da Lei nº 10.864/03. Questiona-se a aplicação dos dispositivos no âmbito penal, sob o argumento de tratar-se de uma norma de natureza exclusivamente tributária. Contrário senso, faz-se evidente estarmos diante, isto sim, “de uma regra processual penal incorporada a um texto legal que trata de matéria administrativo financeira”, segundo parecer do procurador de justiça do Ministério Público de Pernambuco, Renato da Silva Filho. (SILVA FILHO, Renato da. Parecer na Apelação Criminal 0112657-2 – TJPE)

Outro ponto que ainda alimenta severas divergências traz à tona o alcance dos dispositivos contidos no artigo 9º e parágrafos da Lei do Refis II. A pergunta é: estariam os benefícios ( suspensão e posterior extinção da pretensão punitiva ) limitados apenas aos tributos federais ou também alcançariam parcelamentos de débitos fiscais nas esferas Estadual e Municipal?

Heloísa Estelita defende que “o caput do artigo 9º cria uma disciplina geral para os efeitos penais do parcelamento, ou seja, esta disciplina aplica-se a qualquer parcelamento, previsto por qualquer lei, em qualquer esfera ( federal, estadual ou municipal ). ( ESTELITA, Heloísa. Pagamento e parcelamento nos crimes tributários: a nova disciplina da Lei n. 10.684/03, Bol. IBCCrim, setembro de 2003.)

Estelita chega a tal conclusão comparando o texto atual ( Lei 10.864/2003 – Refis II ) com o anterior, contido no artigo 15 da Lei n. 9.944/00 (Refis). “O dispositivo antigo limitava a suspensão da pretensão punitiva àqueles casos nos quais a pessoa jurídica estivesse incluída no Refis, e desde que a inclusão no programa ocorresse antes do recebimento da denúncia. A limitação não foi mantida na nova disciplina legal, que ampliou os efeitos jurídico-penais a qualquer regime de parcelamento, não importando se criado pela própria Lei 10.684/03 ou por outras; também não importando se federal, estadual ou municipal.”

A despeito de alguma resistência ao dispositivo legal, há relevantes decisões favoráveis à concessão do benefício da Suspensão da Pretensão Punitiva Estado ( e posterior extinção da punibilidade ) com base no artigo 9º e parágrafos da Lei 10.864/2003. Cite-se, como exemplo maior, a decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 83936. Por unanimidade, entendeu-se que o débito tributário existente junto à Fazenda Estadual de Tocantins teria sido confessado e parcelado, tendo como conseqüência o direito à suspensão do processo.

Vejamos a ementa desse julgado do STF:

EMENTA: SONEGAÇÃO FISCAL E FALSIFICAÇÃO DE SINAIS PÚBLICOS E VALE POSTAL. PRELIMINAR. PARCELAMENTO DO DÉBITO TRIBUTÁRIO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. SUSPENSÃO DAS AÇÃO PENAL. Comprovado nos autos o parcelamento e o regular pagamento do débito tributário junto à Fazenda Estadual, é impositiva a suspensão da ação penal. Ordem concedida de ofício, para suspender a ação penal enquanto houver o parcelamento do débito devido à Fazenda Estadual. Inteligência do artigo 9º, caput, da Lei 10.864/2003 c/c Lei complementar 104/2001, que alterou o artigo 151 do Código Tributário Nacional.

Julgado no STF em 31 de agosto de 2004, o HC 83936, é paradigmático, por duas razões: em primeiro lugar, a Suprema Corte de Justiça do País ratificou o entendimento acerca do direito à suspensão da Ação Penal com base no artigo 9º da Lei 10.864/2003. Depois, a ampliou o alcance da Lei provando que a aplicação do dispositivo não estava restrita ao âmbito Federal, atingindo também as esferas Estadual e Municipal.

A despeito do posicionamento favorável da melhor doutrina e da posição pacífica dos tribunais superiores face a matéria, há também argumentos acerca da inconstitucionalidade do dispositivo. Com a experiência de ter sido promotor de justiça da Primeira Vara Privativa dos Crimes contra a Ordem Tributária do País – instalada em Pernambuco, em 1993 – o Procurador de Justiça Criminal, Renato da Silva Filho, diverge deste entendimento: “ Há quem diga que seria uma ingerência da União que, legislando sobre matéria tributária, invadiria a órbita de competência dos Estados e Municípios. Eu entendo que não há inconstitucionalidade: embora a matéria referente a suspensão da pretensão punitiva esteja inserida numa lei que trata de uma questão tributária, a suspensão é uma matéria processual penal e somente a União pode legislar sobre processo penal, nos termos do artigo 22, I , da Constituição Federal de 1988.”

Para o Procurador de Justiça pernambucano, não há dúvida que se trata de uma opção que o Estado faz no sentido de facilitar o recebimento desses créditos. “Nós temos uma legislação que se por um lado estabelece uma carga tributária estúpida e absolutamente irracional, por outro lado, também permite que o devedor do fisco, não honrando os seus compromissos, procure parcelar, procure de alguma maneira evitar que venha a ser preso. O argumento é que ele preso não iria contribuir para novos negócios, para a abertura de postos de trabalho etc. Isso é uma verdade, mas é preciso haver um tempero nessa legislação, porque o sonegador, na atuação dele, tira do Estado aquilo que o Estado tem o direito de arrecadar para investir em escolas, em saúde, segurança etc.”

Com relação especificamente ao artigo 9º da Lei 10.864/2003, o procurador Renato da Silva é conclusivo: “Eu não tenho nenhuma dúvida que no tocante ao parcelamento cabe a suspensão da ação penal, mesmo depois de recebida a denúncia, em qualquer situação. Pelo que está posto, eu não vejo como concluir o contrário. Se alguém quiser concluir o contrário, vamos mudar a lei.”

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