O grande irmão

Veja como o governo vigia as suas operações financeiras

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23 de julho de 2005, 8h52

No meio do turbilhão de denúncias que desabaram sobre o governo federal está um órgão sem grande visibilidade, mas que parece justificar hoje os motivos para os quais foi criado. Inteligência do sistema brasileiro de combate ao crime organizado, o Coaf — Conselho de Controle de Atividades Financeiras, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, como o seu próprio nome diz, acompanha todas as operações financeiras dia-a-dia realizadas no país e, pelo valor ou repetição, procura identificar as transações suspeitas.

Embora a legislação que criou o Coaf determine o registro de todas as operações acima de R$ 10 mil, no caso das instituições financeiras o órgão tem interesse apenas nas transações acima de R$ 100 mil. Elas são informadas e acompanhadas diariamente pelo órgão. Ou seja, o Coaf sabia há muito tempo sobre as transações das empresas do publicitário Marcos Valério e a identidade dos que retiraram quantias superiores a R$ 100 mil nas agências do banco Rural em Brasília ou em Belo Horizonte.

Não é para menos que feitas as denúncias, logo apareceram as listagens do Coaf, seja no Ministério Público, seja na CPMI dos Correios. Todas as transações acima de R$ 100 mil. Para conhecer agora as transações com valores inferiores, a CPMI teve que contar com a quebra do sigilo bancário do publicitário e de suas empresas. Mesmo assim, os membros da Comissão, investigarão as operações iguais ou acima de R$ 30 mil — valor que se imagina, era o patamar mensal do “mensalão”.

O sistema financeiro é a menina dos olhos do Coaf. Mas não é o único informante do órgão. Legalmente, empresas de factoring, corretoras de seguros e seguradoras, imobiliárias, ourivesarias e loterias estão obrigadas a informar o Coaf sobre operações suspeitas. A suspeição pode ser dada por um ganhador contumaz de prêmios da loteria ou pelo comprador de um imóvel de R$ 60 mil, por exemplo, que pague em espécie com cheques de diferentes procedências.

Criado pela Lei 9.613, de lavagem de dinheiro, o órgão funciona como um tipo de filtro de movimentações bancárias de valores que fogem do normal e de transações financeiras operadas por agentes econômicos como bolsas de mercadorias, administradoras de cartões de créditos, imobiliárias e factorings.

De acordo com a regulamentação do Coaf, toda transação superior a R$ 10 mil reais feita em espécie ou que tiver caráter suspeito deverá ser informada ao órgão. De posse dos dados, ele repassa a informação ao Ministério Público e à Polícia Federal que, por sua vez, podem pedir a quebra do sigilo bancário ao Judiciário. Só então é que, teoricamente, o sigilo pode ser quebrado. O caminho inverso também pode ser feito — os órgãos solicitam informações ao Coaf.

Segundo dados disponibilizados no site do Coaf, em 2004, os pedidos de informações feitos pelo Ministério Público Federal e pelo Estadual, pelo Departamento da Polícia Federal, pela Controladoria-Geral da União e por outros órgãos governamentais chegaram a 798. O número é 97% superior a 2003, quando as entidades, juntas, encaminharam ao Coaf 406 pedidos de informação. Quantos desses pedidos foram encaminhados às autoridades competentes, no entanto, não se sabe.

Uma tese de mestrado defendida por Gerson Luís Romantini, na Unicamp, em 2003, traça um quadro não muito positivo das ações do órgão. De acordo com ele, das mais de 18 mil notificações de operações suspeitas recebidas pelo Coaf entre 1998 (quando a lei da lavagem foi promulgada) e 2002, apenas duas haviam sido encaminhadas à Polícia Federal até 31 de novembro de 2002 e nenhuma ao Ministério Público até 29 de agosto de 2002. Os números são relativos às instituições de São Paulo, estado que, segundo Romantini, mais gera comunicações ao Coaf.

Também segundo dados da tese de Romantini, dessas 18 mil notificações, apenas 666 resultaram em inquéritos policiais e 149 pessoas foram indiciadas.

Falta de informação

Um dos maiores empecilhos à atuação do Coaf seria a dificuldade em obter informações junto a instituições como as imobiliárias e factorings, dois dos caminhos mais usados para a lavagem de dinheiro. Em seu favor, o Conselho Federal de Corretores de Imóveis alega que é impossível comunicar ao órgão toda operação superior a R$ 10 mil — quase nenhum imóvel é inferior ao valor — e as imobiliárias não dispõem de tempo nem pessoal para organizar as transações e encaminhá-las.

Para um grande especialista no assunto, a desculpa é pífia. “Se há a norma, as empresas têm de se adequar. Por que elas não informam? Porque não têm conhecimento da obrigação? A pena para a omissão é muito maior”. De acordo com a legislação do Coaf, os agentes econômicos que não fornecerem dados podem ser condenados até de co-autoria com o suposto crime.

Recentemente, o órgão expediu nova Instrução Normativa sobre o cadastramento das factorings. Nela, está determinado que tais instituições deverão manter seu cadastro atualizado no Coaf, comunicar as operações financeiras que tenham sinais de irregularidade e enviar uma declaração ao órgão caso não tenham registrado nenhuma movimentação suspeita. O objetivo, segundo especialistas, é tirar a atividade da informalidade e fechar o cerco contra operações que possam resultar em crime contra a ordem econômica brasileira.

Também para intensificar o controle de atos ilícitos, foi elaborado o Projeto de Lei 188/03, do Senado, que tipifica todos os crimes contra o sistema financeiro nacional que acarretem em pena superior a dois anos como antecedentes ao da lavagem de dinheiro — aqueles considerados como crimes que levam à lavagem. O crime de sonegação fiscal, por exemplo, seria tipificado como antecedente.

Outro projeto, de número 209/03, também do Senado, considera como precedentes à lavagem os delitos relacionados ao jogo do bicho, aos caça-níqueis, às loterias não autorizadas, ao comércio clandestino de obras de arte, entre outros. Hoje, os crimes antecedentes são o terrorismo, o contrabando, tráfico de entorpecentes, seqüestro e contra a administração pública.

De acordo com um advogado especialista em crimes financeiros, o problema é que, a atuação do Coaf não é baseada em legislação a não ser na que o criou. Todas as demais práticas do órgão são reguladas por resoluções, decretos e portarias. “Se há vontade de proceder de forma diversa ao que prevê a Constituição [que regula os direitos fundamentais, como o que garante a privacidade] deveria-se atuar para que ela fosse alterada”, afirma. “O que não dá é para aplicar normas sabendo que são inconstitucionais”. Apesar de só poder quebrar sigilos com ordem judicial, por exemplo, sabe-se, segundo ele, que o órgão muitas vezes age informalmente.

“O Coaf não pode quebrar o sigilo bancário de ninguém, o que só pode ser feito mediante autorização judicial”, concorda o advogado Jair Jaloreto Júnior. “E, ao meu ver, é assim que ele age, sem violar os direitos fundamentais do cidadão. É um órgão que tem funcionado muito bem e representa um grande apoio às CPIs que investigam prática de corrupção”.

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