Por duas cabeças

Cacique acusado de furtar duas cabeças de gado obtém HC

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21 de julho de 2005, 17h38

O cacique Autivan dos Santos Barros, líder indígena da etnia Truká, originária de Cabrobó, em Pernambuco, poderá cumprir prisão provisória num local de assistência aos índios mais próxima de sua aldeia. O cacique é acusado de furtar duas cabeças de gado e é mantido preso por representar “elevado grau de periculosidade”. A decisão é do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça.

O cacique e mais dois índios, Francisco Alfredo Carinhanha e Eloísio Severino de Souza, tiveram a prisão preventiva decretada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco. O furto ocorreu à época da retomada da posse da terra pelos indígenas, mas os donos já foram ressarcidos do prejuízo. Segundo o decreto, a prisão garante da ordem pública porque os índios “promoveram atos de vandalismo que causaram sérios prejuízos ao patrimônio das pessoas”.

No Habeas Corpus dirigido ao STJ, a defesa alegou atipicidade de conduta, por causa do princípio da insignificância; incompetência absoluta da Justiça Estadual, uma vez que o suposto furto ocorreu em meio ao confronto entre índios e posseiros na disputa pelas terras desapropriadas e inexistência dos requisitos da prisão preventiva.

Primeiramente, a ministra Laurita Vaz, da 5ª Turma, indeferiu o pedido, considerando ausentes os requisitos para a concessão. “O pedido confunde-se com o próprio mérito da impetração, que deverá ser oportunamente examinado pelo colegiado, depois de devidamente instruídos os autos”, afirmou.

No pedido dirigido à presidência, a defesa alega que o cacique tem exercido relevante função de apoio na comunidade, e sua prisão causou grande apreensão em seu povo e nas lideranças indígenas que acompanham seu trabalho. Reafirmou, ainda, a competência da Justiça Federal para examinar o caso.

Para o advogado, estão ausentes os pressupostos para a segregação do paciente, que é importante líder na comunidade, tem residência fixa, atividade produtiva e é conhecido e respeitado por todos, inclusive pela administração pública federal, estadual e municipal.

O pedido foi parcialmente deferido. Para o ministro Sálvio de Figueiredo, vice-presidente, no exercício da presidência do STJ, apesar de a Lei 6001/73 fazer referência aos índios em fase de aculturação, o pedido procede em razão da tumultuada situação por que passa a comunidade.

“O cumprimento da prisão cautelar junto ao órgão indigenista mais próximo da aldeia é medida que se impõe, para a garantia da incolumidade física do acusado, bem como para evitar novos conflitos”, concluiu o ministro.

HC 34.838

Leia a íntegra da decisão

HABEAS CORPUS Nº 34.838 – PE (2004/0051773-5)

IMPETRANTE : FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI

PROCURADOR : CLÁUDIO HENRIQUE C M DIAS E OUTROS

IMPETRADO : PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAMBUCO

PACIENTE : AURIVAN DOS SANTOS BARROS

PACIENTE : FRANCISCO ALFREDO CARINHANHA

PACIENTE : ELOÍSIO SEVERINO DE SOUZA

Vistos, etc.

1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de índios da etnia Truká, originária de Cabrobó/PE, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco, que proveu o recurso em sentido estrito do Ministério Público estadual, reformando a decisão de primeiro grau para determinar a prisão preventiva dos pacientes, acusados de furto de duas cabeças de gado, para a garantia da ordem pública, porquanto os denunciados seriam detentores de “elevado grau de periculosidade” e estariam “promovendo atos de vandalismo…causando sérios prejuízos aos patrimônios das pessoas, além de fomentar insegurança junto aos posseiros da região” (fls. 82/83).

Na inicial, sustentou a impetrante, em resumo: a) atipicidade da conduta, em face do princípio da insignificância; b) incompetência absoluta da Justiça Estadual, porquanto o suposto furto ocorreu em meio ao confronto entre índios e posseiros na disputa pelas terras desapropriadas em favor dos primeiros; c) inexistência dos requisitos da prisão preventiva.

A eminente relatora, Ministra Laurita Vaz, negou o pedido liminar, ao fundamento de não estarem presentes “diante de um juízo superficial e provisório, os pressupostos autorizativos da medida urgente requerida, mesmo porque o pedido confunde-se com o próprio mérito da impetração, que deverá ser oportunamente examinado pelo Colegiado, depois de devidamente instruídos os autos.” (fls. 96/97).

Prestadas as informações, o representante do Ministério Público Federal opinou pela concessão da ordem (fls. 108/119).

2. Por meio da petição n.º 97688, Aurivan dos Santos Barros, por seus procuradores, e a Fundação Nacional do Índio, impetrante, alegam que, após o assassinato do irmão do primeiro requerente – Adenilson dos Santos Vieira – e de seu filho, em 30.6.2005, por dois policiais militares que se encontravam no interior da aldeia, o paciente e primeiro requerente, em 11.7.2005, ao comparecer na Delegacia da Polícia Federal que apura o crime de homicídio, foi preso em cumprimento ao decreto de prisão preventiva questionado neste habeas corpus.

Alegam que o paciente, na condição de Cacique dos Trukás, tem exercido relevante função de apoio e unidade na Comunidade e sua prisão causou grande apreensão em seu povo e nas lideranças indígenas que acompanham seu trabalho.

Sustentam a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento do crime objeto deste habeas corpus, nos termos do art. 109, XI, CF, em razão “de ser inegável a relação dos fatos objeto do processo criminal com a disputa sobre a posse das terras que os índios tradicionalmente ocupam e os não índios que a haviam invadido”. Salientam inexistirem os pressupostos para a segregação do paciente, importante líder em sua comunidade, que possui residência fixa, atividade produtiva e é reconhecido e respeito por órgãos da administração pública federal, estadual e municipal. Esclarecem ter o furto ocorrido quando da retomada da posse da terra pelo povo indígena Truká, mas os donos dos animais já foram ressarcidos do prejuízo.

Pugnam, alternativamente, pela aplicação do parágrafo único do art. 56 da Lei n.º 6.001/73, que disciplina a forma de cumprimento das pelas pelos índios e estabelece:

“As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime de semiliberalidade, no local de funcionamento de órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado.”

O regime de semiliberalidade deve ser entendido como semi-aberto. Consequentemente, ocorrendo a prisão em flagrante ou a decretação da prisão provisória de um índio, como ocorreu com o primeiro requerente, deve ser providenciado o cumprimento da prisão em regime semi-aberto, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do acusado, que, no caso, é o Posto Indígena que atende a comunidade do preso.

Por fim, requerem, liminarmente, “que seja garantido o direito de o paciente aguardar em liberdade o julgamento final e definitivo da presente impetração, ou que, aplicando-se o instituto da detração penal, lhe seja assegurado cumprir prisão provisória no órgão indigenista federal mais próximo de sua Aldeia, por força do que estabelece o parágrafo único do art. 56 da Lei n.º 6.001/73.”

3. Quanto ao pedido liminar para que o paciente responda em liberdade ao processo por furto, por ausência de perigo à ordem pública e incompetência da Justiça comum, a questão já foi examinada pela eminente relatora, que entendeu pela necessidade de submeter a matéria ao Colegiado, por se tratar do próprio mérito da impetração.

Com efeito, a liminar em habeas corpus tem caráter excepcional. Além da urgência e da necessidade da medida, deve estar indiscutivelmente comprovada a ilegalidade do ato coator. Se for necessária a incursão sobre questões de fato ou de direito que exijam aprofundado exame, como ocorre quando se trata de apreciar a existência dos pressupostos para a prisão preventiva, é inviável a concessão da ordem initio litis.

4. Merece prosperar, todavia, o pedido para que o paciente cumpra a prisão cautelar nos termos do art. 56, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/73. Não obstante o referido dispositivo destinar-se primordialmente aos índios em fase de aculturação (STF, RECR n.º 97.064-9/AM, rel. o Min. Néri da Silveira, REsp. n.º 11.862/PA, rel. o Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 9.10.2000), em razão da tumultuada situação por que passa a comunidade e dos recentes confrontos que culminaram com a morte do irmão e sobrinho do paciente (também líderes comunitários), o cumprimento da prisão cautelar junto ao órgão indigenista mais próximo da Aldeia é medida que se impõe, para a garantia da incolumidade física do acusado, bem como para evitar novos conflitos.

Ademais, a infração praticada admite o cumprimento da pena em regime semi-aberto (art. 33, § 2º, b, CP) e o pedido é endossado pelo procurador da FUNAI, que atesta a possibilidade de cumprimento da segregação cautelar nos moldes pedidos.

5. Ante o exposto, acolho parcialmente o pedido, determinando que a prisão preventiva do paciente seja cumprida no órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do acusado, nos termos do parágrafo único do art. 56 da Lei n.º 6.001/73.

Comunique-se com urgência.

P. I.

Brasília (DF), 20 de julho de 2005

MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA

VICE-PRESIDENTE, NO EXERCíCIO DA PRESIDêNCIA

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