A força do Estado

A Polícia Federal é uma das duas muletas do governo Lula

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18 de julho de 2005, 10h22

A Polícia Federal está no olho do furacão. Nos últimos três anos realizou centenas de operações e efetuou mais de mil prisões. Para uma parte da sociedade, esta hiperatividade significa a mais ostensiva e eficiente frente de combate à corrupção e ao crime organizado. Para outra parcela, no entanto, esta afoiteza representa uma séria ameaça aos direitos fundamentais da pessoa e ao Estado Democrático ou, quando muito, uma cortina de fumaça para encobrir as trapalhadas do governo.

O delegado especial de Polícia Federal Armando Rodrigues Coelho Neto, por razões óbvias faz parte do primeiro grupo. Mas nesta entrevista concedida à equipe editorial da Consultor Jurídico, em sua sede em São Paulo, Coelho Neto não se furtou a debater o papel da Polícia Federal nos fatos recentes da vida política brasileira. Participaram também da entrevista o diretor de redação Márcio Chaer e o editor Rodrigo Haidar.

Para Coelho Neto, a PF cumpre seu papel com patriotismo e devotamento. Se há excessos eles devem ser coibidos, mas têm um argumento: a corrupção generalizada que permeia a sociedade brasileira. Coelho Neto fala de uma posição privilegiada: ele é o presidente da Federação Nacional de Delegados de Polícia Federal. Fala também do alto de uma experiência de 27 anos vividos a serviço da instituição.

Sua visão não é estritamente a de um policial. O delegado é também jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É autor de um livro com tema jornalístico: “Radio Comunitária Não é Crime”. E é também o editor-chefe da revista Impacto, do Sindicato de Delegados de Polícia Federal no Estado de São Paulo.

Leia a entrevista

ConJur — A Polícia Federal protege a sociedade brasileira?

Coelho Neto — A Polícia Federal tenta proteger a sociedade brasileira dentro dos limites constitucionais de suas atribuições. Essa é a resposta mais objetiva que se tenta dar. Se você fosse me perguntar se ela está atendendo à realidade brasileira, eu diria que ela cumpre neste momento um papel extremamente importante, mas está muito aquém da realidade, seja do ponto de vista geográfico, seja do ponto de vista da diminuição da criminalidade que o Brasil alcançou.

ConJur — Ou seja, crime demais, polícia de menos.

Coelho Neto — Essa é a afirmação mais correta. A realidade da Polícia Federal é de muita luta. A gente não costuma divulgar nosso efetivo para não expor a fragilidade da instituição. Nos sentimos orgulhosos pelo fato de sermos tão poucos e estarmos dando uma resposta tão expressiva e eficiente para a sociedade.

ConJur — Mas o senhor não pode dizer de quanto é esse contingente?

Coelho Neto — Na prática, somos menos de dez mil homens.

ConJur — Precisaria de quanto?

Coelho Neto — No mínimo triplicar esse efetivo. Temos vivido um momento de muitas operações. Cada vez que Brasília tenta montar uma operação de grande porte, desfalca as superintendências do país inteiro. De repente os colegas saem em aviões da FAB [Força Aérea Brasileira], dormem em alojamentos precários, vão para o meio do mato, em condições assim. Temos uma realidade cruel. São diárias baixíssimas, condições muito precárias do ponto de vista da logística. Mas a Polícia Federal enquanto instituição e com a dedicação dos seus servidores vem dando uma resposta excelente.

ConJur — O governo não está usando politicamente toda essa visibilidade da Polícia Federal para fazer marketing?

Coelho Neto — Antes de responder, eu gostaria de fazer duas considerações. Até um tempo atrás a Polícia Federal trabalhava e quem aparecia era o Ministério Público. A Polícia Federal trabalhava, a CPI aparecia. Isso gerou um sentimento de insatisfação muito grande dentro da PF. Havia um sentimento dentro da própria categoria de que a Polícia Federal deveria ter um pouco mais de visibilidade. A segunda questão parte de uma afirmação do Paulo Lacerda [diretor-geral da Polícia Federal]. Quando ele examinou o plano de segurança do Presidente Lula para traçar o seu plano de trabalho, a Polícia Federal aparecia como uma caixa preta. Surgiu então a idéia de que as operações da Polícia Federal deveriam ter visibilidade. Houve um casamento preliminar entre essas duas questões. Efetivamente, era necessário dar visibilidade.

ConJur — E quanto ao uso político da Polícia Federal?

Coelho Neto — Eu não diria que o governo Lula está usando a Polícia Federal. Eu diria, sim, que hoje em dia o governo Lula tem duas muletas: uma é a Polícia Federal e a outra é o Palocci. A diferença é que a Polícia Federal pode até cair, menos o Palocci. Porque se o Palocci cair, o Lula cai junto. Mas não tenho duvida que a Polícia Federal faz a agenda positiva do governo.


ConJur — Aparecer agora foi algo intencional?

Coelho Neto — Havia uma proposta de dar visibilidade à Polícia Federal e, ao dar visibilidade positiva à polícia, isso acabou refletindo no governo.

ConJur — O Ministério Público tem poder para fazer investigação criminal?

Coelho Neto — Na nossa visão, o Ministério Público está confundindo a população quando confunde suas atribuições com atribuições de polícia. O povo não tem condições de entender essa postura do Ministério Público. O Ministério Público tem cumprido uma missão muito importante a partir da nova Constituição. Mas uma polícia bem fiscalizada, uma polícia bem administrada pode dar o seu recado independentemente de intervenção do Ministério Público. A meu ver, o Ministério Público tem exagerado em suas atribuições.

ConJur — Mas o trabalho do MP, hoje, se completa com o da Polícia Federal.

Coelho Neto — Não necessariamente. Nós temos visto alguns fiascos de investigações realizadas pelo Ministério Público. Em nossos grupos de discussão se evidencia o trabalho inexperiente, do ponto de vista da investigação específica, realizado pelo Ministério Público. A nossa interpretação é que a polícia judiciária da União, com exclusividade, é atribuição da Polícia Federal. Ponto pacífico: investigação é coisa de polícia. O Ministério Público é outra coisa. Como os poderes deles não estão muito bem delimitados, eles acham que podem tudo. E enquanto não ficar muito bem definido vai gerar esse conflito. A Polícia Federal e Ministério Público são muito harmônicas, muito integradas. Mas quando você pega as questões pontuais elas acabam sendo corporativizadas, digamos assim. Então a coisa começa a pegar.

ConJur — Essas operações todas que a gente tem visto são da Polícia Federal ou do Ministério Público?

Coelho Neto — É o trabalho realizado pela Polícia Federal. O Ministério Público é ouvido, tem a sua contribuição, tem sua participação, mas é um trabalho realizado pela Polícia Federal.

ConJur — Na Operação Anaconda foram presos juízes, delegados da Polícia Federal, advogados. Divisou-se, então, um trecho do Brasil onde integrantes da Justiça estavam a serviço do crime. O senhor diria que o sistema Judiciário está comprometido?

Coelho Neto — A minha visão geral é que o crime, nas suas diversas modalidades, está muito enraizado na sociedade brasileira, e ele não se consolidaria, não se tornaria essa árvore monstruosa, tão frondosa, se não tivesse raízes tão profundas e elásticas. O país não chegaria ao estado de degradação absoluta que chegou sem que os braços do crime estivessem em todos os segmentos. Assim, não vejo o Judiciário como exceção, bem como as polícias, o Ministério Público. A sociedade está perplexa com incidentes envolvendo membros do Judiciário, da polícia. Qual era nossa esperança remota de justiça? Era o Judiciário. Eu me recuso a setorizar essa questão no Judiciário. Acho que a sociedade está doente.

ConJur — Esta situação mostra que o brasileiro tem vocação para o crime?

Coelho Neto — Acho pesado dizer que o brasileiro tem vocação para o crime. Há mais de quinze anos eu circulei um texto falando que o Brasil só tem um problema: a corrupção. Se o dinheiro da educação vai para a educação, se o dinheiro da segurança vai para a segurança, se o dinheiro da habitação vai para a habitação, o país não tem problema. O problema é que o dinheiro não chega onde ele tem que chegar.

ConJur — Qual a relação entre a corrupção e o sistema Jurídico?

Coelho Neto — Todo o mecanismo de corrupção passa pelo processo de formação e de interpretação das leis. Pra prender comadres e compadres, para prender os três “Ps” [Pobre, Preto e Puta] a gente não tem muita dificuldade, mas no que diz respeito a dinheiro as coisas sequer são reguladas por lei. É portaria disso, é portaria daquilo. A Receita Federal é na base da portaria, a segurança privada é na base da portaria. Você vê as normas do Banco Central, é na base da instrução normativa, do memorial disso, memorial daquilo. Não tem lei.

ConJur — Mas o brasileiro tem ou não tem vocação para o crime?

Coelho Neto — Eu não digo que o brasileiro tem vocação para o crime, mas o povo brasileiro está com os referenciais extremamente negativos. O momento que o Brasil vive, em que o governo apregoado como o governo da esperança é objeto de tantas denuncias, desestimula qualquer servidor público, qualquer cidadão brasileiro. É o desespero total.

ConJur — O mensalão é coisa nova?

Coelho Neto — Eu não conheço uma casa legislativa neste país que funcione de outra forma que não seja na base do mensalão. Só que o PT deu azar de a bomba ter estourado no colo dele.


ConJur — Hoje tem mais denúncia ou mais corrupção?

Coelho Neto — Tem mais denúncias e as coisas estão um pouco mais transparentes. Não tem mais corrupção, não. Vejo até uma diferença. Se antes as pessoas se beneficiavam pessoalmente, me parece que agora o beneficiário direto, numa análise primária, não jurídica das evidências, está sendo o partido.

ConJur — Dentro do raciocínio de que os fins justificam os meios nós poderíamos ter eventualmente pessoas que aderem à corrupção para beneficiar o partido e não a si próprio. Mas é corrupção do mesmo jeito.

Coelho Neto — Não gostaria nunca que esse tipo de colocação fosse interpretado de outra forma. Não é atenuante. A imprensa tem um papel extremamente importante para a sociedade: discutir esse processo de degradação a que chegamos, em que um governo pretensamente bem intencionado tem que pagar mensalão para fazer as coisas acontecerem. Nós temos todo um processo anterior que resvalou nisso e que precisa ser questionado. Não queremos corrupção nesse governo e em nenhum governo porque senão a sociedade não vai sair desse marasmo em que se encontra.

ConJur — Já se cogita que esse governo possa não chegar até o fim. O senhor tem alguma opinião a esse respeito?

Coelho Neto — Eu só teria a lamentar se assim fosse. Represento um segmento da sociedade que votou nesse governo. Depositei tanta esperança nesse governo quanto o povo brasileiro. E ver o que eu estou vendo é muito difícil. Está muito difícil para o governo dissociar a imagem dele de um partido corrupto, de ser uma ilha de honestidade cercada de ladrões por todos os lados. Ele vai ter que ser muito talentoso para sair dessa. As nossas avós costumavam dizer o seguinte: “não dá para o porco sair da lama sem respingar em ninguém”.

ConJur — A Polícia Federal teria condições de investigar o mensalão melhor do que a CPI?

Coelho Neto — Por experiência, sim. Instrumentalmente, não. Eu diria que sim, primeiro pela falta de bandeira política e também pela experiência, pela tradição de investigar. Mas quando a gente pensa no instrumental restritivo de uma legislação patrimonialesca ridícula, eu diria que não. Como é que a polícia pode investigar se depara com o sigilo de fonte da imprensa, sigilo bancário, telefônico, fiscal, com esse amplo espectro de legislações impeditivas, restritivas para proteger o patrimônio? Estes instrumentos protetivos visariam, em tese, à preservação da democracia, mas na prática estão servindo para blindar o crime. Por exemplo, a questão da imunidade parlamentar. A imunidade parlamentar foi criada para que deputado não pudesse ser processado por conta das suas idéias em defesa da sociedade, mas se transformou em um instrumento de blindagem em que o deputado te agride moralmente e não acontece nada. Duvido que o Roberto Jefferson estaria fazendo as coisas que está fazendo, com acusações tão desprovidas de fundamentos, se não estivesse blindado pela imunidade.

ConJur — A inviolabilidade da advocacia poderia ser colocada no mesmo caso?

Coelho Neto — As prerrogativas dos advogados não foram feitas para blindar advogado, para advogado cometer crime. O objetivo foi outro.

ConJur — Os direitos e garantias fundamentais que estão na Constituição são resultado de séculos de evolução no campo do direito e do humanismo. Quando se fala dos advogados, uma coisa é você investigar o advogado criminoso, outra é investigar um advogado que tem o criminoso como cliente.

Coelho Neto — Temos notícias de investigações que encontraram manuais de como sonegar em escritórios de advocacia. Temos notícias de escritórios de advocacia que estavam investigando o perfil dos delegados, seus hábitos, que lugares freqüentam. O senhor acha que a proteção jurídica [da advocacia] é para isso? Não, não é. Eu defendo tanto quanto qualquer advogado a advocacia, as liberdades democráticas, o instituto da ampla defesa. Mas nós não estamos lidando com a regra. Estamos lidando com a exceção. Seria muita irresponsabilidade de um juiz não apreciar um pedido bem fundamentado da Polícia Federal e autorizar uma ordem dessa. Eu insisto: é muito difícil tratar essa questão sem conhecer o caso concreto, mas não se pode criar blindagens nem para juiz, nem para delegado, nem para procurador, nem para imprensa, nem para escritórios de advocacia.

ConJur — Como o senhor vê a atuação da OAB na questão das chamadas invasões de escritórios?

Coelho Neto — Quando a OAB pia em relação às buscas realizadas nos escritórios está cumprindo o papel dela. Até teatrinho ela está fazendo, mas está no papel dela. Alias, nós delegados devíamos tomar a OAB como exemplo e sair em defesa de nossa categoria. O que eu piei não foi contra a reação da OAB, eu piei foi contra a reação da imprensa. A Ordem do Advogados usou o termo invasão e a imprensa embarcou nessa linguagem, criando até uma instabilidade que não existe entre as instituições. Tanto que nós fomos conversar com o doutor Flávio D’Urso [presidente da OAB-SP], e ele vai participar do nosso congresso de delegados em Fortaleza. As instituições estão muito bem, as categorias estão em paz e esses desencontros precisam ser resolvidos com educação, com bom senso.


ConJur — Se não é invasão, o que é?

Coelho Neto — Foram buscas solicitadas por autoridades policiais devidamente fundamentadas e legitimadas pela Justiça. Eu me recuso e contesto até o último argumento a expressão invasão. Já ouvi até ministro de tribunal de instância superior levado pelo jogo da imprensa a endossar o termo invasão, uma invasão que não houve. Os ministros sabem que não foi invasão, mas sucumbiram diante da linguagem jornalística.

ConJur — O fato de um juiz querer que a polícia entre na minha casa contra a minha vontade, ainda que de forma legal, não invalida o fato de que minha casa está sendo invadida.

Coelho Neto — Eu não concordo com isso. Dentro do contexto das instituições democráticas, dos institutos jurídicos, o que houve foi uma diligência, uma busca, a execução de um mandado de busca solicitado pela autoridade policial devidamente legitimado pela Justiça. Se houve excesso, a polícia pode responder, mas há notícias desses excessos. Esse assunto é cauteloso. Vamos ser mais cautelosos ainda. Mas eu me recuso a trabalhar com esse termo invasão. E não me conformo que advogado, jornalista, juiz, seja lá o que for, chame aquela diligência de invasão.

ConJur — Ainda bem que os segmentos da sociedade que têm algum peso estão reagindo a eventuais desmandos. Ainda bem que hoje temos a imprensa porque, em geral, a imprensa trabalha a favor da coletividade.

Coelho Neto — Eu concordo plenamente. Ainda bem que é assim. Ainda bem que nós temos alguma coisa que nos sirva de freio. O que eu me insurjo é com relação a pegar uma questão pontual, pequena, e elevar ao status de “democracia abalada”, de “liberdade democrática ameaçada”. As pessoas nem sabem o que está por trás dessas investigações que foram feitas nesses escritórios de advocacia. De repente se leva a questão para um status constitucional e aproveita que o governo está em um momento péssimo e aí tudo vale, tudo pega. De repente se abre uma brecha para malhar um dos poucos segmentos que está dando uma resposta satisfatória à sociedade.

Conjur —Vamos tentar, em tese, dizer o seguinte: um advogado tem ciência de que o cliente dele sonegou R$ 1 milhão em impostos. Para fazer a defesa desse cliente perante a Receita Federal no setor administrativo ou perante a Justiça, o cliente dele passa documentos. Esses documentos de posse do advogado mostram que o cara realmente é desonesto, que ele sonegou impostos. Pode haver uma busca no escritório desse advogado para pegar o documento desse cliente?

Coelho Neto — O que eu queria que ficasse bem claro é que a diferença entre a defesa e a cumplicidade é tênue, mas existe. Muitas vezes ela é facilmente visível. Por exemplo, no caso do Fernandinho Beira-Mar fica muito evidente. Em outros casos não fica tão claro. O cara sonegou, pode se defender. Uma coisa é você montar escritórios fantasmas como existem vários no Brasil na região de Barueri. Outra, são os escritórios que fazem manuais para ensinar a pessoa a sonegar, a driblar o fisco. E eu não sei se a grande busca em escritórios de advocacia que ia ser feita, já foi feita.

ConJur — Existe a possibilidade de novas incursões invasivas?

Coelho Neto — Eu apenas disse que eu não sei se a grande operação em escritórios de advocacia já aconteceu.

Conjur —O senhor acha que o advogado que tem conhecimento do crime de seu cliente e não notifica as autoridades deve responder como cúmplice?

Coelho Neto — Violar isso é violar um princípio fundamental que é o direito da defesa. Se o Estado conceitualmente dá garantia de defesa e a pessoa procura um advogado e diz: “pratiquei um crime e estou lhe procurando enquanto advogado para fazer a minha defesa”, o advogado não pode violar esse princípio. É um princípio fundamental da Constituição. O que é diferente de quando o advogado, como qualquer outro profissional, se presta ao crime.

ConJur — Isso significa que todas essa operações de busca e apreensão foram todas dirigidas contra os advogados, nunca contra seus clientes.

Coelho Neto — Temos notícia de que essa investigação [operação Monte Éden] teve por princípio escritórios de advocacia montados basicamente com a função de ser um instrumento para o crime, não para servir ao instituto da defesa. Eventualmente um ou outro pode até se prestar à defesa, mas a notícia que se tinha era a de que se usava esse instrumental protetivo que a democracia propicia a serviço do crime. Foi uma operação pesquisada, organizada, programada. Tanto que foram lá e acharam coisa.

ConJur — Na Operação Cevada houve busca no escritório do Luis Olavo Batista, que não é investigado de nada.

Coelho Neto — Só posso dizer que a Polícia Federal, ao realizar essas buscas, fundamenta muito bem seus pedidos. Temos uma responsabilidade muito grande de dar os elementos factuais e fazer a fundamentação da forma mais correta possível. Se a Justiça deu esse mandado de busca, a polícia foi lá, pode até não ter encontrado nada, mas estava dentro dos limites legais.


ConJur —Quando há vazamento em processo sob segredo de justiça, entende-se que quem responde pela violação do sigilo é o agente público. O jornalista que tem acesso à informação que consta em autos sobre segredo de justiça e as divulga também pode ser responsabilizado?

Coelho Neto — Esse é um assunto muito discutido dentro da polícia porque é difícil. Porque a gente vê informações que estão amparadas sob segredo de justiça sendo veiculadas. Você vê, por exemplo, que o relatório da Anaconda correu de mão a três por quatro. Eu já coloquei o quanto o sigilo é restritivo. De modo geral não existe uma discussão um pouco mais profunda sobre o sentido desse sigilo. Quando há vazamento, a rigor, está contrariando a lei. É uma discussão muito difícil de se tratar porque dentro da máquina da nossa democracia a imprensa é uma válvula de escape. Apesar de todas as suas imperfeições, a imprensa tem cumprido um papel fundamental. Pior seria sem essa grita. Muitas vezes, a única punição que sobra é o escracho da imprensa. O povo tem o direito de saber. Por quê parlamentar e servidor público tem que ter sigilo? Devia estar na internet, para todo brasileiro ver, a conta dele, a declaração de renda dele. Porque ele está a nosso serviço. A coisa mais comum nesse país é político ficar rico da noite para o dia. Você vê o Valério, verdureiro com dinheiro na cueca, pastor com mala de dinheiro. De onde aparece tanto dinheiro? Não tem governo da esperança ou da desesperança que de jeito nisso aí.

ConJur — Qual é o limite entre o interesse público e os direitos individuais? Até onde vai o meu direito ao sigilo bancário, sigilo de correspondência, que estão garantidos na Constituição, e onde começa o direito de o Estado de combater o crime organizado e a corrupção?

Coelho Neto — Nós estamos falando de extremos. É impossível você conseguir construir uma democracia sem nenhuma proteção. Mas também é muito difícil construir uma democracia em que o direito se converta num instrumento contra a sociedade. O que vemos, por exemplo, com relação aos deputados, é que eles usam a imunidade contra nós. Então, o limite estaria dentro de um determinado bom senso criteriosamente sob controle da sociedade e do Judiciário. E é difícil você falar de bom senso. Quem é o titular do senso? É muito difícil responder “o limite é esse”. Poderia dizer que o limite é a Constituição. Aí você se depara com uma outra questão. Quem promove a interpretação da Constituição? Eu tenho em casa uma obra da Emilia Viotti que é O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. É um livro que eu recomendo. Trata exclusivamente da ingerência política dentro do Supremo Tribunal Federal. E para nós que não temos uma tradição muito honesta de democracia você imagina o que pode acontecer. Eu gostaria que ficasse bem registrado o nosso respeito pelo Supremo quando a gente faz esse tipo de consideração, mas não está muito na nossa história o desatrelamento do Supremo das decisões políticas. O caso é serio. Eu acho que essa pergunta não tem resposta.

ConJur — A OAB contesta os mandados de busca e apreensão dizendo que são ilegais, primeiro porque são de outros estados cumpridos em São Paulo sem a devida carta precatória; e, segundo, porque os mandados são genéricos.

Coelho Neto — Esse questionamento já foi feito antes. A minha visão é a de que não tem alternativa. Os juízes estão certos ou estão errados. Se estão certos, não cabe questionar. Se estão errados, esses atos da polícia, endossados pela Justiça, vão ser objetos da apreciação em momento oportuno.

ConJur — O senhor diz que a PF faz o pedido bem fundamentado. Então qual a razão das reclamações?

Coelho Neto — O papel do advogado é fazer barulho. Qualquer um que já se deparou com uma petição sabe disso. O hiperbolismo faz parte da linguagem do advogado. Ele sabe que no fundo o que sobra é muito pouco, então, tem que exagerar na linguagem. A polícia, ao fazer uma representação, procura traçar um quadro probatório para dar suporte à decisão do juiz. Então, ele pede para entrar ali [nos escritórios de advocacia] tendo em vista aquelas coisas. O juiz, ao dar a ordem, dificilmente vai saber o que tem lá dentro. Por mais preciso que o juiz seja, vai acabar sendo um pouco genérico. Essas questões pontuais colocadas pelos advogados têm muito a ver com a preocupação sistemática que a advocacia tem com o instituto da defesa, com a preservação dos valores democráticos.

ConJur — Falando sobre operações, já foram feitas mais de cem operações nesse governo, já foram presos mais de mil, qual é o resultado prático desse aparato?

Coelho Neto — Nós temos um Judiciário extremamente lento, nós temos a polícia travada, então, do ponto de vista jurídico não há resultado final. Mas do ponto de vista da democracia, da satisfação da sociedade, a polícia e a imprensa já cumpriram um papel fundamental. A polícia, com a colaboração da imprensa, conseguiu deixar claro para o brasileiro que é impossível você governar e administrar um país com as suas instituições tão prostituídas. Quando o ministro da Justiça fez a portaria [que regulamentou o cumprimento de mandados de busca e apreensão em escritórios de advocacia], por exemplo, e disse “tem que ter um representante da OAB”, a gente deu risada. “Pô, se tem representante da Rede Globo, porque não pode ter representante da OAB?”, disseram. Eles são bem vindos.


ConJur — Quer dizer que a polícia chama mesmo a imprensa para essas operações…

Coelho Neto — Eu não diria que chama, eu sei que ela aparece lá.

ConJur — Tinha representante da Polícia Federal também discutindo a portaria?

Coelho Neto — Tinha gente da Polícia Federal conduzindo o processo. Tudo isso estava previsto. Se você tiver que realizar um mandado de busca na Rede Globo, vai ter um problema serio. A Globo vai derrubar o governo no dia seguinte. Ela vai fechar a Polícia Federal, destruir o governo e mandar buscar um representante do Bush para resolver o problema. Não é delicado? É o que eu estava falando, eu gosto de trabalhar com bom senso, com razoabilidade dentro dessas coisas.

ConJur — O senhor prenderia o Duda Mendonça?

Coelho Neto — Eu não conheço o caso do Duda Mendonça na dimensão que eu deveria, mas eu prenderia não só o Duda Mendonça, eu prenderia o Duda Mendonça e quem mais fosse necessário. Com certeza.

ConJur — A Polícia Federal tem tido a independência funcional necessária para fazer seu trabalho.

Coelho Neto — Olha, se existe alguma ingerência dentro da Polícia Federal do ponto de vista político, ela tem sido muito sutil. A ponto de não se perceber.

ConJur — O policial federal tem independência financeira para se preocupar predominantemente com a profissão, ao contrário dos PMs que têm que se preocupar com bicos?

Coelho Neto — Do ponto de vista salarial, nós perdemos nossos paradigmas com as demais carreiras jurídicas. Isso é um foco de tensão dentro da Polícia Federal. No ranking do servidor público, o aumento do delegado da Polícia Federal foi de 3,9%, ao passo que outras carreiras tiveram aumentos de 300, 400, 500%. A Polícia Federal está jogando dinheiro fora, investindo em profissionais de alto gabarito que não estão conseguindo ficar na instituição por causa dos baixos salários. Por que eu vou ficar aqui exposto, se eu posso ser procurador da República, juiz, advogado-geral da União, se eu posso seguir qualquer outra carreira jurídica que me dá um salário melhor?

ConJur — A questão salarial é a maior preocupação da corporação?

Coelho Neto — Hoje em dia, nós temos duas discussões importantes na instituição: uma é se a gente deve ou não ser vinculado ao Poder Executivo. Já ganhamos até um padrinho, que é o professor Fabio Konder Comparato, para essa discussão. Esse assunto foi objeto de enquete: 90% da corporação é favorável ao desligamento do Poder Executivo. A Polícia Federal precisa ter autonomia, tem que ter os controles sociais normais, mas tem que ter autonomia financeira e de estrutura de trabalho. Hoje, por mais que a Polícia Federal se esforce para mostrar independência, sempre vai pairar o fantasma da manipulação política. Por exemplo, uma operação como essa não se desencadeia em um mês, dois meses. Às vezes são dois, três anos. Muitas operações que vêm acontecendo antecedem o governo Lula. Mas sempre aparece alguém para fazer uma associação desse momento positivo da Polícia Federal com a conveniência política do momento.

ConJur — E qual é a outra preocupação?

Coelho Neto — A outra questão diz respeito a uma Lei Orgânica para a Polícia Federal. Em nossa proposta, a gente quer um instrumental que valorize o trabalho policial, algumas prerrogativas. Por exemplo, é muito frustrante para o delegado de Polícia não ter a oportunidade de oferecer um contraponto a uma decisão judicial. O juiz faz uma leitura superficial do assunto, dá vista ao Ministério Público. O Ministério Público faz uma vista superficial do assunto e decide contrário ao interesse da sociedade. O delegado poderia oferecer um contraponto ao juiz. Não vou citar o caso, mas, recentemente, a gente teve um probleminha. Pedimos uma busca num determinado local. O juiz abriu vista para o Ministério Público. Sabe o que o Ministério Público Federal sugeriu? Que fosse ouvido o suspeito. Isso é anedótico. Dentro desse contexto, você tem que se preocupar com o perfil da categoria. Porque o pessoal que está chegando agora é um pessoal extremamente bem preparado. A Polícia Federal está de cara nova.

ConJur — O senhor falou de corrupção. Quais os outros crimes mais preocupantes no Brasil?

Coelho Neto — Quando a corrupção alcança níveis tão dramáticos como na sociedade brasileira, estão evidentes os pressupostos internacionais da existência de crime organizado. A ONU estabelece onze pressupostos, e diz que ocorrendo pelo menos quatro, cinco ou seis deles é porque há crime organizado. Hoje o Brasil tem praticamente todos. Os pilares do Estado, a operacionalidade do Estado, estão contaminados. Como você pode trabalhar com polícia corrupta, Judiciário corrupto, Ministério Público corrupto, políticos corruptos? É pontual: o crime está em cadeia. E com indicadores de articulação sistematizada. Se existe o tráfico no aeroporto, há deficiência de fiscalização ou há corrupção. Para que isso não aconteça, é preciso o braço eficiente do Estado nesses extremos, nas nossas fronteiras, nos nossos portos. A questão da droga é grave, mas cabe inclusive uma reflexão. Do ponto de vista da colaboração internacional, eu fico satisfeito de ver meus colegas não deixarem a droga sair. Mas ficaria muito mais feliz de ver uma ação voltada para dentro do país, que está minado. A questão, por exemplo, do desarmamento, é séria.


ConJur — O senhor é a favor do desarmamento?

Coelho Neto — A violência tem que ser combatida por outros lados, não acho que é armando o cidadão que você vai resolver o problema. Arma no carro é para resolver briga de trânsito. Quem se dispõe a sair de casa com arma, está com predisposição de matar alguém. Isso é inevitável. A pessoa desarmada vai resolver a briga de bar na palavra, vai resolver a briga de trânsito na porrada, vai brigar na rua, vai levar um tapa da mulher, mas não vai matar ninguém. É uma medida que sozinha não vai produzir efeito, mas é um remédio. Como no contexto de uma doença grave, é apenas um remédio. A lei foi um divisor de águas. Hoje em dia quem tem armas ou é polícia ou é bandido.

ConJur — Quais são os outros remédios contra a violência?

Coelho Neto — As questões sociais são muito sérias. O atendimento das necessidades primárias do cidadão é fundamental. É muito prático: qual é o respeito que o ladrãozinho criado no morro, que não sentiu um mínimo de respeito por ele durante a vida inteira, qual o direito que temos de exigir que ele respeite os nossos códigos? Que respeito ele vai ter por mim ou pelo meu patrimônio, se a vida dele toda foi de desrespeito? O sentimento que ele tem em relação a nós é de absoluto desrespeito. Então, não dá para falar de redução da violência sem falar de comida, sem falar de escola, de uma praça, uma luz acesa, uma reunião, um lugar com um DJ, outro para se praticar esportes.

ConJur — Então, pode desarmar que não vai ter resultado.

Coelho Neto — Ele vai fazer a arma em casa, vai se armar de garrafa ou de faca e vai continuar a matar do mesmo jeito. Então, o combate a isso passa pela cultura do respeito, que não se faz da noite para o dia. A nossa realidade é trágica. Eu convivo com cadeeiro, que saiu da cadeia, que está querendo uma oportunidade aqui fora e não tem. Enquanto ele está cheio de amor pela liberdade, ele vai ficar. Mas na hora que ele vê que ele não tem futuro aqui fora, o que vai acontecer? Não tem uma política de reinserção social, paralela ao ordenamento jurídico e ao instrumental penal. Você não tem uma política de prevenção razoável que passe antes. Porque quem passar antes, leva. Eles estão no limite.

ConJur — O que faz a Federação Nacional dos Delegados da Polícia Federal?

Coelho Neto — A Federação tem como preocupação uma Polícia unida, forte, independente, cidadã. Queremos o reconhecimento do delegado de Polícia Federal dentro da carreira jurídica. Não aceitamos ser tratados como operadores de direito de quinta categoria. Nosso pessoal é altamente qualificado. Do ponto de vista institucional, a gente defende a autonomia. Tem que melhorar o instrumental da polícia, porque quem está investigando tem a melhor visão do que está acontecendo. Brigamos pela possibilidade de oferecer um contraponto ao ponto de vista da Justiça.

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