Ordem da Constituição

Obrigar repórter a revelar fonte frustra o direito à informação

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17 de julho de 2005, 14h21

Deixando os prólogos de lado e indo direto ao que restou, a questão aqui é saber se o jornalista vai ter que ser preso por desacato à Justiça sempre que o doutor juiz, instado pelo Ministério Público, quiser saber quem foi que lhe disse aquilo, tão desagradável, que ele publicou.

Uma jornalista, Judith Miller, do New York Times, está presa, atrás das grades, por crime de desacato, porque, acreditando na liberdade de imprensa, um dos pilares da democracia do seu país, achou que não estava na obrigação de revelar a fonte de sua informação.

A Constituição dos Estados Unidos mal completara dois anos e, logo em 1789, recebeu dez emendas, as “bill of rights”, conhecidas no popular como declaração de direitos.

É bom lembrar: “O Congresso não fará lei relativa ao estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício desta; ou restringindo a liberdade de palavra ou de imprensa; o direito de o povo reunir-se pacificamente e de dirigir petições ao governo para a reparação de seus agravos”.

Esse preceito — liberdade de palavra ou de imprensa — atravessou o tempo, mas sempre arrastando controvérsias. Ainda no calor das primeiras discussões, apareceu um hermeneuta chamado Blackstone, que entendia que liberdade de imprensa é não impor censura prévia às publicações.

“Cada homem livre”, doutrinava Blakstone, “tem o direito de expor como entender seus sentimentos perante o público. Proibir isso é destruir a liberdade de imprensa. Mas, se ele publicar notícias impróprias, nocivas e ilegais, deve assumir as conseqüências de sua própria temeridade”. Estavam ali lançadas também as premissas da ação de indenização por dano moral.

Um dos federalistas, Alexander Hamilton, escreveu, a respeito do tema, que “a liberdade de imprensa é o direito de publicar impunemente a verdade, por bons motivos, para fins justificados, sem olhar o governo, os magistrados ou os indivíduos”.

Thomas Jefferson, que foi o terceiro presidente norte-americano, ficou famoso também por esta aqui: “Se me fosse dado decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última”.

Richard Nixon teria preferido um governo com jornais mas, certamente, sem jornalistas do “Washington Post”.

Num momento em que valores democráticos eram postos à prova nos Estados Unidos, que contribuição teriam dado Carl Bernstein e Bob Woodward, os repórteres do escândalo Watergate, se a qualquer momento pudessem ser presos, a não ser que revelassem a algum juiz a verdadeira identidade de sua fonte, o “Garganta Profunda”?

Watergate é um prédio enorme, um pouco afastado do centro de Washington, DC, no qual os democratas instalaram um escritório do seu candidato, George McGovern. Agentes da Casa Branca, engajados na campanha da reeleição de Nixon, invadiram o local, surrupiaram documentos e instalaram escutas. Tudo ilegal. O presidente foi reeleito por esmagadora margem, mas a força popular vinda das urnas não lhe garantiu o mandato até o fim.

Muitas questões básicas para a democracia foram emergindo, desafiadoras, na medida em que o jornal publicava o resultado das investigações da dupla Bernstein-Woodward. Grampos telefônicos, fitas de conversas, tudo ilegal, mentiras oficiais, obstrução da Justiça e, acuado pela supremacia das instituições sobre o seu poder transitório, Richard Nixon renunciou.

A imprensa, nos Estados Unidos, sempre funcionou como espelho de liberdade, como paradigma para o resto do mundo, como modelo disponível a bem-intencionadas imitações.

Foram os jornalistas que disseram ao mundo a verdade no Vietnã, guerra que o governo empreendia quase às escondidas do seu próprio povo, omitindo da população os números de soldados que iam lutar, bem como dos rapazes que morriam. A audácia de repórteres e fotógrafos produziu as provas iniludíveis das atrocidades contra os vietnamitas e dos gastos inimagináveis com a insanidade bélica.

Na imprensa livre do mundo é que ainda é possível haver a informação sem censura, que tece, em meio às crises, a coesão nacional. Que, sem distorções, na verdade instiga e afirma a cidadania. Obrigar o repórter a revelar sua fonte é frustrar o direito da cidadania à verdadeira informação.

Com todas as inquietações da hora presente, arreganhos e travos a que temos assistido, por aqui ainda não se chegou a tanto. Nem vamos chegar. Pelo menos, enquanto não for letra morta o que determina a Constituição da República, artigo 5º, inciso 14: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

Por isso mesmo, viva o Brasil!

Artigo publicado neste domingo (17/7) no jornal Folha de S. Paulo.

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