Exemplo do Rio

O maior erro do TJ de São Paulo foi represar processos

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10 de julho de 2005, 14h40

Nos cinco últimos anos, a vida do desembargador Marcus Faver tem se pautado na superação de desafios. Em 2001, assumiu a presidência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Na época, uma instituição moribunda atolada em toneladas de papel e desacreditada por uma estatística desoladora: os 500 dias que um processo levava para ser julgado.

Dois anos depois, Faver entregou a seu sucessor, Miguel Pachá, um outro tribunal. Mais moderno, ágil e com uma imagem revigorada. Hoje, já na segunda gestão pós Faver, o TJ fluminense esbanja vigor. Como uma empresa privada, marca que o desembargador imprimiu no tribunal, pleiteia a concessão do ISO 9000 por sua eficiência no serviço de atendimento ao público. O tempo médio de julgamento de um processo é hoje de apenas 129 dias. Em algumas Câmaras, chega a menos de 80. Há até uma disputa entre os desembargadores para saber quem julga em menos tempo.

Mas se ganhou em celeridade, o Tribunal do Rio ainda se ressente das denúncias de irregularidades que vez por outra deixam marcas profundas na instituição. “Aqui a corrupção existe num percentual bastante reduzido e tem que ser combatida com o maior rigor. A meu ver, não há crime maior do que o cometido por um juiz”, defende Faver.

Em 2003, o desembargador assumiu a presidência do Tribunal Regional Eleitoral, no Rio. Teve pela frente a tumultuada eleição de 2004. Saiu incólume e pronto para o desafio mais importante de sua vida profissional: integrar o primeiro time do Conselho Nacional de Justiça e tentar estender para os outros tribunais do país a bem-sucedida gestão que empreendeu no Rio de Janeiro.

Os desafios não são poucos. Flamenguista até a última gota de sangue, pai de dois filhos (nenhum advogado, juiz ou promotor), avô de três netos, nesta entrevista à revista Consultor Jurídico, Marcus Faver, de 65 anos, fala das dificuldades que o CNJ terá para se estabelecer, critica o sistema eleitoral brasileiro e afirma que nessa briga entre advogados e juízes por causa da invasão de escritórios os advogados têm razão em muita coisa. “Um juiz não tem competência para invadir circunscrição de outro juiz”, diz categórico.

Leia a entrevista, concedida no gabinete de Faver.

Conjur — O senhor é um dos integrantes do Conselho Nacional de Justiça. Na sua opinião, espera-se muito do CNJ?

Faver — Ele nasceu da reforma com colocações preocupantes. Eu vejo o Conselho com muita preocupação. Com essa história de que o Conselho vende muitas esperanças, a gente tem que ter o pé no chão para perceber que ele é um órgão que nasceu muito discutido. Discutido na sua própria existência, discutido na sua constituição, discutido na sua competência. Os integrantes do Conselho, nessa primeira gestão, têm que ter uma habilidade muito grande porque as decisões vão ser questionadas. Porque as suas imposições administrativas vão encontrar muita resistência.

Conjur — Já econtram. Essa questão do recesso que alguns tribunais vão ter, por exemplo, contraria uma decisão do CNJ, não?

Faver — Neste caso precisamos ter a noção exata do problema. Como a reforma só foi sancionada em dezembro, houve um entendimento extra-oficial, do próprio Supremo Tribunal Federal, de que as disposições do artigo 93 não entrariam em vigor imediatamente. Que dependeriam de uma lei complementar para entrar em vigor. E os tribunais, grande parte deles, já estavam com suas férias planejadas para o outro ano. A lei foi editada no último dia de dezembro, então, encontraram-se férias programadas para janeiro e para julho e mais do que isso: o pagamento da gratificação dos juízes que tem direito, como todo funcionário, a receber um terço pelo gozo das férias. Isso criou um embaraço. E em alguns estados o problema era maior porque as férias não eram só dos tribunais. Eram também da Justiça de primeiro grau. Tanto os juízes como os tribunais tinham férias coletivas e havia o pagamento de férias e a programação do ano. O que o Conselho procurou fazer como sua primeira medida? Entender que o inciso do artigo 93 que falava das férias coletivas tinha vigência imediata, para estabelecer uma regra. Mas não pode ser esquecido que existem problemas administrativos. Mas já demos um grande passo. Se você imaginar o volume de tribunais que nós temos no país, tenho a impressão que no máximo quatro ou cinco é que não tiveram condições de cumprir de imediato a determinação do Conselho. E é uma coisa momentânea. Porque ano que vem está tudo liquidado. Vote o Congresso ou não a Lei Orgânica, o assunto está liquidado.

Conjur — O Conselho corre o risco de ser como inúmeras leis que, apesar de existirem, não pegam?

Faver — Esse é um dos problemas que o Conselho vai ter que enfrentar. Ele tem que fazer com muita cautela mas com muita firmeza gestões administrativas para impor uma política e uma estratégia administrativa para o funcionamento mínimo dos tribunais. Então, o que o Conselho procurou fazer desde logo? Criar subcomissões para fazer um levantamento no país inteiro, desses dados, de como está funcionando em cada um dos setores, para fazer uma definição de uma política de gestão administrativa, mas levando em conta as peculiaridades de cada estado. O nosso país é muito diferente. Eu não posso tentar aplicar uma gestão administrativa do Rio de Janeiro no Piauí, no Pará, no Ceará, porque não vai dar certo. Agora, temos que conter também as distorções administrativas. E temos que fazer com que os tribunais acreditem, e o Conselho vai trabalhar nesse sentido, que o Conselho não é um órgão exclusivamente punitivo, um tribunal de Torquemada para fazer degola de todo mundo. Claro, o Conselho vai ter que enfrentar quando existir o problema e agir com firmeza e com determinação. Mas a grande meta do Conselho, a meu ver, é fazer um parâmetro mínimo de gestão administrativa e financeira para que os tribunais possam funcionar, independentemente de existir reforma de leis e de Constituição. Eu acho que poderia haver uma benfeitoria muito grande na performance dos tribunais através de gestões administrativas exclusivamente. Sem reforma de Judiciário, sem reforma constitucional, sem nada. Desde que haja um enxugamento da máquina, uma definição de políticas para a administração, isso funcionaria.


Conjur — O senhor deve acompanhar a polêmica sobre a invasão dos escritórios de advogados. O Ministério da Justiça editou uma portaria tentando regulamentar melhor a ação da Polícia Federal nesse tipo de operação. Qual a sua opinião sobre esse assunto?

Faver — Esse um ponto delicado. Parece muito com a competência do Conselho. Até que ponto vai a competência do Conselho em relação à competência dos estados? Até que ponto nós não feriríamos o princípio federativo invadindo as correições nos tribunais e nos estados com a função do Conselho? Aí é a mesma coisa: até que ponto pode o Estado brasileiro invadir a privacidade de um escritório para obter informações que às vezes são sigilosas? O médico, o advogado, o terapeuta, o psicólogo, o padre têm que ter privacidade das informações para a confiança de seus próprios clientes. Um escritório de um advogado pode ser invadido por um aparato policial para arrancar lá de dentro alguma prova? Eu penso que não. Estabelecer o limite é que é a dificuldade. Até que ponto o advogado pode agir dentro de um conceito ético de privacidade de seu cliente ou no momento que ele ultrapassa para incidir numa infração penal e ele está incentivando, motivando ou orientando o cliente para praticar uma ação ilícita? Esse limite é extremamente difícil de se estabelecer. Você não pode permitir que um advogado, um médico, psicólogo possa orientar uma pessoa para praticar um ilícito. Então, a dificuldade é muito grande. Eu penso que a portaria do Ministério da Justiça está procurando acertar isso aí. Preservando dados, certos informes, é o caso do computador, está se vedando a apreensão, a não ser que haja uma prova consistente para aquilo.

Conjur — Alguns advogados alegam que os mandados são expedidos em um estado para serem cumpridos em outros.

Faver — O mandado do juiz teria que ficar circunscrito à sua jurisdição.

Conjur — Então, o senhor concorda com a reclamação dos advogados?

Faver — Sim. Um juiz não tem competência para invadir circunscrição de outro juiz.

Conjur — Nas últimas eleições, o senhor presidiu o TRE do Rio. O escândalo do “mensalão” colocou em foco a questão da prestação de contas das campanhas. O deputado Roberto Jefferson chegou a dizer que elas são verdadeiras obras de ficção. O senhor concorda com ele?

Faver — Concordo. Elas são mesmo obras de ficção. Na verdade, se constata isso. As prestações de contas são muito mais formais do que substanciais. E há um detalhe lamentável na organização do sistema eleitoral, porque não tem conseqüência. O eventual julgamento que rejeita a prestação de contas do candidato não dá em nada. A lei não pune isso. Não tem cadeia e não tem nem impedimento, porque ele se candidata na próxima eleição. Isso é uma coisa de brincadeira. Os políticos fingem que prestam conta e nós fingimos que julgamos as contas. Isso é uma realidade do sistema eleitoral brasileiro. O sistema eleitoral brasileiro está muito deficiente. Nós tentamos aqui impor algumas regras, mudar alguns conceitos, mas nem sempre conseguimos porque a lei é deficiente. Você permitir, como acontece hoje no estado do Rio, que pessoas condenadas em primeiro grau, condenadas por homicídio possam se candidatar, pessoas que têm quatro, cinco, dez processos-crime correndo pode ser candidato. Isso não tem cabimento. É uma aberração. Não tem lógica. E aconteceu porque o Congresso está omisso. Falta vontade política de fazer a reforma política.

Conjur — O senhor foi o principal responsável pela modernização do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Talvez por isso seja hoje um dos integrantes do Conselho Nacional de Justiça. A gestão dos tribunais é mesmo assim tão importante para a reforma do Judiciário?

Faver — É fundamental. A grande mudança que se há de fazer no Judiciário brasileiro é a mudança administrativa. O que é deficiente em um grande percentual é a gestão administrativa da Justiça, dos tribunais. Esse é o ponto que me parece fundamental para a reforma.

Conjur — Por quê?

Faver — O Judiciário trabalhava com um vínculo muito grande com o Poder Executivo. Não havia por parte do Executivo interesse em dar a verdadeira autonomia ao Judiciário. Por quê? O Judiciário poderia incomodar as decisões administrativas. Um dos pontos nevrálgicos da chamada prestação jurisdicional é o controle jurisdicional dos atos administrativos. Ou seja: o poder Executivo e o poder Legislativo relutavam muito na autonomia do Judiciário porque isso poderia não vir a favor dos atos administrativos ou mesmo terem os atos administrativos questionados. Por outro lado, o Executivo, e isso vem desde o nascimento do nosso Judiciário, era o controlador do Judiciário. As nomeações, as remoções, a colocação dos juízes nas varas e nas comarcas dependiam de atos do Executivo, que não tinha interesse em abrir mão daquilo porque funcionava como uma espécie de pressão política nas regiões, mais acentuadamente no interior.


Conjur — Era moeda de troca?

Faver — De uma certa forma sim. Era uma forma de fazer política. Os coronéis políticos trabalham com a proteção de seus afilhados e a proteção de seus afilhados tinha no juiz um dado importante para que ela se concretizasse. Então, começou a haver uma mudança de percepção do próprio Judiciário de que ele era um dos poderes da República e que só funcionaria se houvesse realmente uma independência financeira e administrativa. Isso foi sendo conseguido gradativamente, muito lentamente. O Judiciário não tinha estrutura administrativa para dar conta das suas atividades. Por outra vertente, o Judiciário estava atrelado ao poder Executivo. Todas os investimentos, custeios, a mão-de-obra do Judiciário dependiam de um orçamento estadual do Executivo com percentuais, que se chamavam duodécimos, e que se colocavam como projeção para o futuro. Só que esses percentuais eram muito inferiores às necessidades do Judiciário. Naquela época trabalhava-se assim: o Judiciário só criava uma vara, um órgão judicial quando já estava sufocado. Ele vinha só para tapar o buraco. Quando você criava uma vara ou instalava uma comarca, ela já nascia sufocada. Não havia nunca uma perspectiva para o futuro. Não se tinham recursos para isso. E o poder Executivo achava que o poder Judiciário não era um serviço de primeira necessidade. Não priorizava.

Conjur — Qual o marco da mudança?

Faver — Veio a Constituição de 88, com uma nova colocação dos direitos do cidadão e o volume de demandas do Judiciário disparou. As pessoas começaram a ter consciência dos seus direitos, vieram as legislações mais avançadas como o Código de Defesa do Consumidor, as modificações estruturais e a mudança na mentalidade do próprio Judiciário que começou a ver que tinha que participar da administração fazendo controle dos atos administrativos, não permitindo que esses atos fossem deturpados. E começou a surgir uma ebulição.

Conjur — Especificamente no TJ do Rio, o que aconteceu? Como a autonomia foi conquistada?

Faver — No Rio nós tínhamos imaginado um sistema novo de administração, mas que embutia um grande risco. O que eu propunha era o Judiciário sair do orçamento do estado para custeio e investimento. Para isso, nós precisaríamos ter arrecadação própria. Fizemos um levantamento dos recursos que poderiam ser alocados e verificamos que o estado recolhia a taxa judiciária e que se destina ao custeio. No sentido jurídico, a taxa é sempre aquele pagamento que se faz para o custeio de determinada atividade. Então, o Judiciário recebe duas taxas bifurcadas: a taxa judiciária, que paga o serviço dos juízes, o funcionamento do Judiciário; e as custas, que remuneram cada ato do processo. Então, são duas fontes de receita: a taxa judiciária e as custas. Essa taxa judiciária ia sempre para o estado. Entrava no caixa-único do estado e você não sabia o quanto tinha dessa taxa, o quanto ela representava. O governo dizia que ela era insuficiente para custear o serviço do estado e não a repassava. O então presidente do tribunal criou um fundo, mas que não tinha recurso. Nessa época fui nomeado o primeiro gestor do fundo e bolamos a idéia de pleitear junto ao Executivo o repasse dessa taxa para o Judiciário.

Conjur — Então, foi uma negociação política?

Faver — Tivemos negociações com o governador Garotinho (em 2001, governador do Rio de Janeiro) no sentido de repassar essa taxa para nós e criarmos também um percentual de 20% sobre os atos notariais e registrais pelo exercício do poder de polícia. O poder de polícia é a atividade que o Judiciário faz fiscalizando os cartórios, registros de imóveis, registro civil, cartório de notas. Então, aqui no estado, em todo ato notarial ou registral há o percentual de 20% que se reverte para o Judiciário. E criou-se um fundo com três receitas: a taxa judiciária, as custas e o percentual em cima dos atos notariais e registrais.

Conjur — Mas toda essa engenharia significava uma mudança na legislação.

Faver — Foi apresentado um projeto de lei transferindo para o Judiciário essas receitas. Um projeto de iniciativa do Judiciário com a concordância do Executivo. Mas nós assinamos formalmente um ato dizendo que nós saíamos do orçamento do estado. Era uma situação de muito risco. Nós iríamos ficar sem receita se essa fórmula não desse certo.

Conjur — Não se sabia ao certo os valores que seriam arrecadados?

Faver — Não. Tínhamos uma idéia mais ou menos. E eu acredito, pelo levantamento que fizemos, que naquela época nós tínhamos uma arrecadação da taxa judiciária em torno de R$ 1,5 milhão por mês. E eu entendi que aquele era um valor muito aquém do que se podia arrecadar.

Conjur — Por que isso?

Faver — Porque existia a seguinte mentalidade dos juízes: essa taxa não vem para a gente. Então, eles não tinham cuidado em fiscalizar isso. Se isso vai lá para o Executivo, que interesse eu tenho em fiscalizar? E a grande mudança foi a de mentalidade. Passamos a colocar na cabeça do juiz e dos funcionários que eles tinham que trabalhar como se estivessem numa empresa privada. Arrecadando com eficiência e gastando com parcimônia porque isso ia se reverter em benefício de todos. A receita, de um mês para outro, subiu de R$ 1 milhão para R$ 2 milhões, depois R$ 4 milhões, R$ 5 milhões. Ela só foi subindo.


Conjur — Existia muita fraude?

Faver — Isso foi uma das coisas terríveis com a qual nos deparamos. Aqui no Rio houve a privatização do Banerj. Quando houve essa privatização — o Banerj foi comprado pelo Itaú — o Itaú desprezou o equipamento de informática do Banerj, que era obsoleto. Mas as máquinas de autenticação de documentos vinham sempre com aquela etiqueta Banerj e o nome Banerj perdurou por anos. No próprio contrato de privatização previa que o nome perduraria até o ano passado. Então, nós ficamos surpresos com o volume de falsificações. Estelionatários, contadores e advogados inescrupulosos adquiriram em leilões essas máquinas de autenticação. Em algumas agências, gente corrupta do próprio banco autenticava fraudulentamente essas vias. Com isso, era muito difícil fazer o controle da arrecadação. Chegamos a abrir uma centena de inquéritos administrativos contra essas falsificações. Em alguns lugares, eu cheguei a duvidar se havia alguma via autêntica.

Conjur — A partir daí, então, o tribunal passou a ter uma receita própria?

Faver — Isso mesmo. Foi um bom negócio para o governo do estado e também para o tribunal. Para o governo do estado porque a receita que eles tinham por esse volume de falsificações e pela falta de fiscalização era pequena. E ele se livrou do incômodo que o Judiciário exercia sobre ele, de todo ano fazer aquela pressão para aumentar a verba do orçamento, para aumentar o percentual, às vezes, com atritos políticos. Foi também um ato de visão política do governador Garotinho, que concordou com isso logo na sua primeira gestão à frente do governo estadual. Para o Judiciário foi a grande carta de alforria. É preciso enfatizar também que este sistema dá certo como está dando certo num estado como o Rio de Janeiro, que tem um volume de negócios e um volume de ações pagas suficiente para arcar com as despesas das ações gratuitas e não pagas. Para você ter uma idéia, a Justiça trabalha com dois terços de ações gratuitas.

Conjur — Dois terços?

Faver — Sim. Por exemplo: ações dos juizados especiais, não se paga nada. As ações criminais, não se paga nada. As ações de varas de família, não se paga nada. As ações de infância e juventude, não se paga nada. O que traz recurso são as ações cíveis, as ações comerciais. Então nós temos que ter um terço de ações pagas com receita suficiente para pagar os dois terços que são gratuitos. Agregaram-se a essas três receitas do fundo, outras receitas. Como começamos a trabalhar como empresa privada, veio para o fundo a receita dos concursos públicos, os aluguéis que nós passamos a fazer dos espaços físicos dentro dos prédios dos fóruns, como bancos, livraria, xérox, lanchonetes… Tudo isso passou a contribuir com o fundo porque nós passamos a funcionar como empresa privada. Esse volume de arrecadação deu condições ao tribunal de fazer a grande reforma administrativa.

Conjur — E qual foi o principal ponto dessa reforma?

Faver — A informatização em massa de todo o estado e por uma razão: nós tínhamos que trabalhar mais ou menos como os bancos. A informatização permitiu a redução de um determinado número de pessoas num determinado cartório e a criação de novos cartórios sem o aumento de despesa. As pessoas foram redistribuídas dentro de um sistema mais racional e moderno. Então, nós pudemos criar várias varas, várias comarcas, mantendo o percentual que a lei de responsabilidade fiscal determina — você só pode gastar com pessoal até 6% do orçamento do estado — e o tribunal nunca passou disso. Ficou sempre em 5,4 e 5,3% e cresceu enormemente a criação de fóruns e de varas. Essa foi a alavanca que o estado deu. Ao lado disso, nós enxugamos a máquina administrativa. Nós tínhamos aqui três tribunais — dois tribunais de alçada e um de justiça. Nós extinguimos dois tribunais de alçada e, de uma penada só, conseguiu-se extinguir 450 funções gratificadas. Nós extinguimos as câmaras cíveis reunidas. Para isso nós contratamos um trabalho com a Fundação Getúlio Vargas. Ela, com sua experiência, fez um levantamento e continua trabalhando até hoje. A ponto de hoje nós estarmos submetendo o tribunal à avaliação da ISO 9000 para verificar a excelência da prestação de serviço para a comunidade. O que é uma coisa raríssima de um serviço público, de se dispor a se submeter a uma avaliação da ISO e ser aprovado. Essa, então, foi a grande revolução. Agora, eu posso dizer que esse sistema não dará certo em outros tribunais, em outros estados, porque eles não têm fonte de receita suficiente.

Conjur — No estado de São Paulo seria viável?

Faver — O erro no caso de São Paulo é administrativo. Em São Paulo, para mim, a deficiência é uma deficiência de gestão. Não é falta de condições. O que eu digo que não dá certo é num estado como Piauí ou Rio Grande do Norte. Um estado menor que não tem volume de negócios e um volume de atos comerciais que custeiem as outras, que são gratuitas. Mas nos estados maiores da federação — São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Minas, possivelmente — isso daria para ser implantado. Então, nós estamos tentando discutir no Conselho Nacional de Justiça como tentar passar essa experiência bem-sucedida aqui do Rio para outros estados. Nós ainda temos uma deficiência muito grande no primeiro grau, mas em segundo grau a nossa qualidade de serviço, nossa celeridade tem sido muito boa. O grande mal da justiça é a demora. Eu faço uma comparação, em tom de brincadeira, que se na vida pessoal a ociosidade é a mãe de todos os vícios, na Justiça a morosidade é a mãe de todas as especulações. Porque quando um processo demora, ele se afasta do resultado necessário para que a sociedade perceba o funcionamento da Justiça e dá margem para qualquer especulação. A pessoa que tem a sua decisão demorada se torna uma eterna insatisfeita. Não há razão para isso.


Conjur — O senhor podia explicar melhor esta questão do erro administrativo cometido pelo tribunal de São Paulo?

Faver — A meu ver, o Tribunal de São Paulo cometeu um erro político. Falo isso com toda a tranqüilidade. Tenho admiração e amizades muito grandes no Tribunal de São Paulo, mas eles cometeram um erro. Começou a chegar um volume de processos no tribunal superior à capacidade dos juízes de julgar. Então, houve uma decisão administrativa, já há alguns anos, dizendo que como a Lei da Magistratura diz que o juiz só teria capacidade de julgar quase 400 processos por ano e a distribuição tinha que ficar dentro daquilo, eles fizeram uma contenção, um bloqueio na distribuição, que só distribuía 15 processos por semana para os julgadores. O represamento fez com que o volume de processos no tribunal de São Paulo chegasse a quase 400 mil processos retidos. Agora o presidente Tâmbara [Luiz Tâmbara, presidente do TJ de São Paulo] está fazendo um esforço, convocando os juízes de primeiro grau para ver se consegue diminuir esse número. Mas aquilo ficou de tal ordem que para você distribuir um processo que chegava ao tribunal você levava de dois anos e meio a três anos para chegar na mão do desembargador. Aqui no Rio nós trabalhamos em sentido contrário. Quando cheguei na presidência do Tribunal, tinha 10 mil processos na distribuição. Eu falei: “vai distribuir tudo”. Em uma semana tudo foi distribuído e não há represamento em hipótese alguma. Pode o desembargador ficar momentaneamente sufocado, mas vamos dar uma estrutura para ele, aumentar provisoriamente o número de secretários, mas um processo tem que ser distribuído de imediato. Não pode passar de dois, três dias. E isso foi feito. Num primeiro momento houve uma grita terrível porque houve aquela avalanche. Mas hoje está tranqüilo.

Conjur — O senhor não acredita que mesmo que eles fizessem esse mutirão, no futuro eles esbarrariam na questão financeira?

Faver — Acho que não. Eu não tenho conhecimento mais aprofundado da estrutura de São Paulo, mas pela pujança econômica do estado, pelo volume de negócios que ele tem, duvido muito que se fizesse esse mesmo sistema, isso não daria certo.

Conjur — Mas o tribunal não depende da boa vontade do Executivo, como aconteceu no Rio?

Faver — Claro. Aí é um erro em conjunto. Um erro político, quer do governo estadual, quer da Assembléia Legislativa e do próprio tribunal, se ele não insistir nesse sistema, porque essa é uma gestão que deu certo: trabalhar como se fosse uma empresa privada, tendo consciência da necessidade de arrecadar e gastar com parcimônia, fazer economia.

Conjur — Hoje, qual o tempo médio de julgamento de um processo no TJ do Rio?

Faver — Em abril foi de 142 dias. No mês de maio já caiu para 129 dias, em média, para se julgar entre as Câmaras Cíveis. Esse é um resultado, em termo de julgamento, extraordinário. Antes dessa reforma, a média oscilava entre 400 e 500 dias. Era terrível. O enxugamento e o controle da máquina administrativa estabeleceu até uma sadia disputa entre as Câmaras. No mês passado eu fiquei bravo porque eu fui a 108 dias de julgamento em abril. Esse mês reduzimos para 98 dias.

Conjur — E qual é a meta? 50 dias?

Faver — Não. É muito pouco. Minha meta é de 90 dias. Se ficarmos entre 80 e 90, é uma boa média.

Conjur — É verdade que houve, inclusive, a necessidade de desativar algumas varas?

Faver — É verdade. Nós tivemos que desativar mais de uma dezena de varas criminais porque não tínhamos ações penais. Porque aqui no estado do Rio, e acho que no Brasil todo, há uma brutal deficiência do aparato policial e, de certa maneira, do Ministério Público. Ocorre uma infração penal, um homicídio, um furto, e a polícia não descobre quem é o autor. Você entra numa delegacia de polícia e encontra pilhas e pilhas de processos com uma sigla A.I., autoria ignorada. Tem a ação penal, tem a infração penal e ou o inquérito não anda ou a ação penal não é deflagrada. Para que ela chegue ao juízo é preciso que haja um inquérito e é preciso que o Ministério Público faça uma denúncia imputando a responsabilidade a alguém. Nós não temos isso. Quando se criou o foro da Barra da Tijuca [bairro de classe média alta], nós imaginamos criar duas varas cíveis, duas varas de família, duas varas criminais, tudo dentro de uma perspectiva de volume de demanda. Não teve ação penal. O volume de brigas, infrações na Barra da Tijuca é enorme, mas não havia ação penal. Nós tivemos que desativar as varas criminais porque não tem ação penal lá. É incrível. É um paradoxo e é uma coisa inexplicável. Não há a deflagração da ação penal. Por outro lado, aumentou o números de vara cível e vara de família. Aqui no centro da cidade extinguimos mais de cinco varas criminais.

Conjur — O problema, então, está na resolução dos crimes?

Faver — Na apuração, na identificação do autor. Isso é lamentável.

Conjur — Apesar de referência na celeridade, o Tribunal do Rio ainda não é referência na questão da ética e da corrupção. O escândalo na distribuição de processos, no ano passado, é um exemplo. Esse tipo de coisa macula a imagem do tribunal?

Faver — Claro. Isso é uma coisa terrível. Agora, veja bem. Eu posso afirmar isso com a maior tranqüilidade: o percentual de corrupção existe em todo mundo, em toda sociedade. É um câncer social. Penso até que é inerente à natureza humana. Ela flui dentro dos organismos. Aqui no estado do Rio nós tivemos vários desses problemas. O da distribuição foi o último a ser detectado. Tivemos vários problemas. Tivemos aí quatro ou cinco juízes que foram apenados, condenados, vivem em reclusão, estão cumprindo pena. Tivemos problemas no INSS, em Macaé, em Angra dos Reis, em Itaguaí, tivemos problemas em diversos setores, em diversos locais em que afluía essa questão da corrupção. Dizer que ela não existe? Mentira. Ela existe num percentual bastante reduzido e que tem que ser combatido com o maior rigor porque não há crime maior do que o cometido por um juiz. Crime de corrupção pode ser praticado por uma outra pessoa tem uma conotação, mas o crime cometido por um juiz, por um agente policial, tinha que ter uma pena agravada. Se eu me deparo com um delito cometido por um juiz, eu agravo a pena dele. Porque ele tem tudo para não cometer aquele crime. Não há razão para um juiz cometer delito de nenhuma espécie. O tribunal tem combatido isso. Mas isso afeta muito a imagem do Judiciário. Um pequeno deslize praticado por um juiz ganha uma conotação muito grande. Juiz tem que ser como a mulher de César: ser honesto e parecer honesto. Não há como fugir disso.

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