Pela metade

Livre designação de juízes auxiliares afronta a Constituição

Autor

  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

10 de julho de 2005, 14h57

Em palestra no 1º Fórum Mundial de Juízes, em Porto Alegre, o juiz espanhol Perfecto Andrés Ibañez cunhou uma feliz expressão acerca do desenho perfeito para a magistratura: um arquipélago e não uma pirâmide. O ideal de uma magistratura horizontal confronta-se com a noção generalizada de que a carreira deve se estruturar de forma hierarquizada.

Todo juiz é membro de poder e a competência jurisdicional não se exerce por hierarquia. Não há motivos relevantes para considerar uma função jurisdicional superior a outra, seja ela a composição em um tribunal ou o juízo singular. Nem mesmo é verdadeiro que o grau de dificuldade da decisão acompanhe a evolução da carreira — é tão ou mais complexo ao magistrado de uma pequena cidade do interior absorver todos os seus conflitos, quanto um colega em fim de carreira apreciar questões para as quais se especializou durante décadas.

A proposta do Tribunal de Justiça de São Paulo encaminhada à Assembléia Legislativa para a reestruturação das entrâncias, diminuindo-as para três (inicial, intermediária e final), tem o mérito de eliminar um degrau da carreira e ainda permitir que colegas do interior, em mais de vinte cidades elevadas à condição de entrância final, possam ser promovidos a desembargador.

A alteração, no entanto, é tímida.

Por disposições constitucionais, o Tribunal não poderia chegar mesmo à magistratura horizontal. Mas poderia reduzir ainda mais os níveis, ou eliminar a divisão em entrâncias, como já ocorre na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho — que caminham para a interiorização, mas mantêm a carreira dividida apenas em juízes substitutos, titulares e membros de Tribunais.

O Tribunal de Justiça está desperdiçando, ademais, a oportunidade de resolver outro grave problema que acomete há anos a estrutura da magistratura no Estado: a condição dos juízes auxiliares da capital, de livre designação.

Por aqui, juízes podem ser livremente designados de uma vara a outra da capital, mesmo durante a tramitação de um processo. Isto viola frontalmente o conceito de juiz natural — juiz determinado por lei que preceda a existência do conflito. Já houve casos, em passado recente, que magistrados tiveram sua designação alterada, justamente pelo conteúdo da decisão que proferiam, ou pela postura mais rígida ou liberal que assumiam em determinadas varas. A idéia do juiz auxiliar, cuja designação somente dependa da presidência do TJ ou da indicação do juiz titular, não infringe apenas a garantia constitucional da inamovibilidade. Estimula a submissão e esvazia o sentido de independência do juiz, pressuposto para uma jurisdição isenta e imparcial.

Em relação a esta importante questão, o projeto avança pela metade.

É certo que institui a figura do juiz auxiliar de entrância especial com cargo fixo. Mas tal cargo será acessível somente a cerca de metade dos auxiliares na capital. Os demais juízes continuarão com cargos de livre designação pela presidência — e embora prestando o mesmo serviço e na mesma localidade que os demais, serão classificados como juízes de entrância inferior.

A par de não eliminar a figura do juiz auxiliar da capital livremente designado, o projeto ainda cria, com os mesmos vícios, o cargo de juiz auxiliar no interior.

Reduzir degraus na carreira e permitir a ascensão dos juízes do interior é salutar. Mas a mudança deveria vir acompanhada da extinção dos juízes auxiliares sem inamovibilidade.

Tal como não existe a quase gravidez, também não se preserva um princípio pela metade.

É de se esperar que a tramitação do projeto na Assembléia Legislativa possa resolver esses problemas.

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