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CNMP pode se transformar numa super corregedoria ineficaz

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7 de julho de 2005, 12h07

Os promotores públicos do estado de São Paulo não se sentem representados no recém-criado Conselho Nacional do Ministério Público, o órgão de controle externo da instituição. Nem mesmo acreditam que o Conselho cumprirá com a função constitucional de fazer o controle administrativo e financeiro do MP. Pelo contrário, temem que o órgão transforme numa super corregedoria, que também não vai funcionar porque se encontra distante, em Brasília.

Estas previsões foram feitas pelo procurador João Antônio Bastos Garreta Prats, presidente da Associação Paulista do Ministério Público, em entrevista que concedeu à equipe da Consultor Jurídico, na sede da revista. Garreta Prats condena o fato de o Ministério Público Federal, corporação com cerca de 600 integrantes, ter cinco conselheiros no organismo, enquanto os 15 mil promotores estaduais, aproximadamente, têm apenas três representantes.

O promotor criticou também o modelo de escolha dos procuradores-gerais pelos chefes dos Executivos, em listas tríplices, e lembrou que está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei destinado a eliminar essa ingerência. Segundo a proposta, os Legislativos analisariam os nomes dos promotores eleitos pelo voto direto dos seus pares para serem nomeados pelos governadores e pelo presidente da República.

Na entrevista — da qual participaram o diretor de redação da ConJur Márcio Chaer, o editor Rodrigo Haidar e as repórteres Adriana Aguiar e Priscyla Costa — a invasão dos escritórios de advocacia pela Polícia Federal foi outro ponto que Garreta Prats condenou. Para ele, assim como um padre peca se revelar a confissão de assassinato recebida, os documentos do cliente, em poder do advogado, estão cobertos pelo segredo profissional. O procurador também defendeu o poder de investigação do Ministério Público. A exemplo do advogado, que investiga para instruir o processo, o promotor, mesmo como parte, deve ter a mesma prerrogativa.

Leia a entrevista

ConJur — Como o senhor avalia o atual quadro do sistema judicial brasileiro?

João Antonio Bastos Garreta Prats — O Poder Judiciário passa por uma grande crise e não é só a crise de celeridade. Falta aproximação com o cidadão comum, que não sabe como funciona a Justiça. E o Judiciário tem uma parcela de responsabilidade nisso. Os Tribunais têm estruturas bonitas, tapetes vermelhos, mas em alguns fóruns as condições são deprimentes. É nos fóruns que vão as testemunhas e, muitas vezes, ficam junto com os acusados. Este cidadão vai propagar uma imagem ruim e com razão.

ConJur — O problema é a falta de recursos financeiros?

Garreta Prats — Faltam recursos para todas as instituições no Brasil. Os problemas não serão resolvidos apenas com recursos. Precisamos aproximar os cidadãos, mas o que está se fazendo é exatamente o contrário. Entrega-se a direção do Judiciário para o CNJ — Conselho Nacional de Justiça, um órgão escolhido pela cúpula de Brasília, quando deveria ser oposto: prestigiar o juiz de primeira instância que tem contato direto com os cidadãos. O CNJ estabelecerá políticas baseado na experiência de nomeados que não tiveram contato com os cidadãos.

ConJur — O Ministério Público se encaixa nesse exemplo?

Garreta Prats — Está no mesmo contexto, até porque buscou no Judiciário seu modelo. Ele não pode estar atrelado ao Judiciário, porque tem outra finalidade, outro papel. Mas temos uma grande dificuldade de sair deste formato.

ConJur — Essa identidade não ocorre porque o MP e o Judiciário representam o estado?

Garreta Prats — A questão é muito mais material. O MP se formou à sombra do Judiciário. Há 20 anos, sequer tinha um prédio. Trabalhávamos num andar cedido no Fórum João Mendes. Avançamos pouco. Hoje são raras as promotorias com sede própria. E a primeira coisa para você ter uma identidade própria é adquirir independência.

ConJur — O promotor, na Itália, também atua como juiz. Isso se aplicaria no Brasil?

Garreta Prats — Não temos essa tradição. Na Itália, juiz e promotor integram a mesma carreira. Isso faz com que o MP perca uma grande oportunidade de mostrar seu papel. Quando todo mundo fala da “Operação Mãos Limpas”, lembra dos juízes da Itália. Mas eles não atuavam como juízes e sim como promotores naquele momento.

ConJur — O juiz Giovane Falconi, quando foi assassinado, estava no papel de promotor.

Garreta Prats — Todos eles estavam investigando como promotores. Mas, no Brasil, não há como unificar, até porque existem diferenças de concepção. Assim como os juízes teriam dificuldades de fazer contato com a sociedade, que é nossa função, os promotores também não estariam preparados para julgar.

ConJur — A partir de 1988, o MP se tornou um órgão mais independente?

Garreta Prats — Falamos sempre em 1988, mas a secessão do MP se deu em 1938, justamente para montar uma instituição voltada para atender à sociedade. O atual modelo é que chegou em 1988. Aqueles que criaram o MP, 50 anos antes, não vislumbraram tudo, mas já vislumbravam este caminho. Em São Paulo, avançamos neste caminho muito antes que outros estados. Nós queremos continuar sendo órgão do estado, mas voltados para os interesses sociais. Antes de 1988, os procuradores da República exerciam a advocacia do estado e podiam advogar também.


ConJur — São dois papéis antagônicos, não?

Garreta Prats — Incompatíveis. Como ele vai defender o estado como procurador do estado, propriamente dito, e depois exercer função do Ministério Público? Essa cisão nasceu em São Paulo.

ConJur — O senhor acha que os promotores de primeira instância estão representados no Conselho Nacional do Ministério Público?

Garreta Prats — Os promotores estaduais não têm representação nem em primeira nem em segunda instancia. São três conselheiros para representar todos os estados. O Ministério Público Federal que, no máximo, exerce 20 % das atribuições do MP no Brasil, e tem 600 procuradores, ficou com cinco conselheiros. O MP sempre foi favorável ao controle, mas isso não é controle, talvez seja disciplinar, mas não exercerá controle algum porque não tem sequer representatividade para isso.

ConJur — Controle disciplinar? Não é o controle administrativo e financeiro?

Garreta Prats — É disciplinar, sim. O que eu temo é que ele se transforme numa super corregedoria que não vai funcionar porque está distante, em Brasília. Como eles vão analisar um caso em Roraima ou no Rio Grande do Sul? Com que instrumento de avaliação eles vão trabalhar?

ConJur — Então poderá interferir na liberdade de opinião, no convencimento do promotor?

Garreta Prats — Espero que não. Diretamente, é evidente que não. Mas, de repente, com a composição e os poderes que tem, esse órgão, sem dúvidas, pode vir a ser um censor do MP. Qual o mecanismo de escolha desses integrantes? Nós queríamos a eleição direta. Mas quem decidiu quem eram os três representantes dos estados foi o Senado. Quais os critérios levados em conta? Qual o compromisso do senador com o Ministério Público? Não sei, pode ter sido dos melhores ou dos piores. Então já há uma certa descrença. Eu respeito os nomes do atual Conselho, são pessoas sérias, mas a composição pode ser outra no futuro.

ConJur — O Ministério Público, estadual e federal, convivem com traumas nessa questão da eleição de seus chefes?

Garreta Prats — O MP federal está buscando o caminho das eleições diretas também. Geralmente, se respeita a ordem da lista tríplice enviada ao presidente da República: o primeiro é escolhido. O MP estadual há muito tempo briga pela eleição direta sem interferência do Executivo. Houve uma tentativa, em 1988, de instituir isso e existe projeto no Congresso com esse objetivo.

ConJur — Com a eleição direta, não há o risco de se eleger o mais simpático, o que oferece mais benefícios ou regalias?

Garreta Prats — No regime democrático existe esse risco. Nós corremos o risco também quando elegemos senadores, deputados ou prefeitos que não correspondem ao que esperávamos. É até uma coisa cansativa de falar, mas a verdade é que não tem regime melhor que o democrático.

ConJur — Se o MP é fiscal da lei, representante da sociedade, não seria viável a aplicação do sistema norte-americano, onde o procurador é escolhido pela população?

Garreta Prats — No sistema norte-americano, o procurador-geral, o promotor eleito é quem escolhe os assistentes. Aqui nós temos um sistema voltado para o concurso público. Também fica muito mais fácil para uma pessoa simpática, bonita e que promete coisas enganar a população do que enganar um colega que convive e trabalha com ela. Então, ainda há dúvidas quanto ao sistema ideal. Mas precisamos buscar a legitimidade. O melhor, talvez, seja que, uma vez escolhido pela classe, o nome seja submetido apenas ao Legislativo e aí nomeado pelo governador.

ConJur — O que o senhor acha de a primeira reunião do Conselho Nacional do MP ter sido a portas fechadas?

Garreta Prats — Hoje há um grande alarme em cima da publicidade, mas é preciso ter cautela. Você está avaliando a conduta da pessoa, a intimidade. Não precisa fazer publicamente. Eu gostei desse aspecto, porque eu tenho medo que vire um conselho de mídia, para fazer propaganda para mídia. Hoje, com esse negócio de “Big Brother”, é preciso colocar certos limites.

ConJur — Mas, quando um procurador da República sofre um processo administrativo porque a denúncia que ele apresentou foi feita no computador do inimigo da pessoa que ele acusa, esse procedimento não tem que ser público?

Garreta Prats — A satisfação pública é fundamental. Agora, tem de ser sigiloso até para que a apuração seja bem feita. Vamos passar para a esfera do crime comum. Se eu divulgar o que vou fazer o que vou procurar, o criminoso vai esconder as provas. As conseqüências do ato é que não devem ser mantidas em sigilo.

ConJur — A Corregedoria do MP paulista é eficiente?

Garreta Prats — Fui assessor na Corregedoria, de onde saí em 1998. Ela era muito eficiente. Não é à toa que o MP tenha pouquíssimos casos de desvio da conduta, são realmente raros. Obviamente que contribui para isso a formação do promotor, mas contribui também uma corregedoria eficaz. Há apurações sérias, mas, infelizmente, não há estatísticas.


ConJur — Já houve algum promotor expulso da carreira?

Garreta Prats — Sim, recentemente houve um caso. Há o caso famoso do promotor que matou a mulher (Igor Ferreira) e que está foragido até hoje. Tive um colega de concurso, em 1988, que foi demitido. E há outros casos.

ConJur — O exame de ingresso na carreira tem um percentual muito pequeno de aprovados. Já, no estágio probatório, onde se verifica a real aptidão, 100% dos candidatos são aprovados.

Garreta Prats — Essa é a regra, mas houve várias exceções, ao longo da história.

ConJur — A vocação não é mais importante que o conhecimento técnico?

Garreta Prats — É, mas a vocação também tem que ser aferida no concurso.

ConJur — Mas quando se analisa a vocação, passam todos. E no concurso, que é técnico, passam muito poucos.

Garreta Prats — Às vezes você não consegue aferir a vocação em dois anos. Primeiro, tem um grande problema no Ministério Público, de longo tempo, que não se corrigiu e que cada vez se agrava mais, que é a falta de preparo que se vê no promotor que ingressa na carreira. Eu entrei há 21 anos e tive um período de adaptação de 10 dias, mas isso não me preparou para ser promotor. A última turma que vai se vitaliciar esse ano teve 15 dias de curso.

ConJur — O vitaliciamento se dá em dois anos?

Garreta Prats — Até agora sim. Mas vai passar para três anos. Quando você prepara mal, fica difícil de cobrar. Mas a regra é que quem vem para o concurso do Ministério Público tem vocação, porque é um concurso extremamente difícil, sempre foi. E é uma carreira que só abraça quem realmente busca, se dedica.

ConJur — Qual o salário de ingresso de um promotor?

Garreta Prats — Bruto, atualmente, em torno de R$ 5,7 mil. Descontando Imposto de Renda dá uns três mil e poucos reais. É muito baixo. Quando você chega aos estágios mais altos da carreira é razoável, cerca de R$ 18 mil.

ConJur — E quanto ao resultado do trabalho? Há estatísticas para avaliar o trabalho do Ministério Público?

Garreta Prats — Você pode avaliar quantas denúncias o promotor fez, quantos inquéritos ele arquivou, quantas condenações ele conseguiu. Agora, isso quer dizer alguma coisa? O Ministério Público só tem estatísticas com esses fundamentos. Qual o instrumento que o Ministério Público tem para aferir o seu trabalho? O que o promotor tem que ser? O que o constituinte quis que ele fosse? Ele quis que o promotor atuasse como um agente que transformasse a realidade social, basicamente isso, um agente transformador. Nós precisamos aferir quantas vezes ele interferiu na realidade criminal da sua comarca. Se ele sabe se a polícia funciona.

ConJur — Qual é a sua opinião sobre a federalização dos crimes contra os direitos humanos?

Garreta Prats — Acho que há uma tendência perigosíssima de centralização de poder, que vai redundar, se é que já não existe, num autoritarismo violento. Isso é um juízo de exceção. Está na Constituição, mas é absolutamente inconstitucional. Depois de um fato praticado é que se vai definir o juízo, isso é um tribunal se exceção. Quando o Supremo Tribunal Federal for julgar um caso de federalização será um tribunal de exceção. Qual é a origem das pessoas que compõem o STF e o STJ? Quem as indica? Hoje, a composição é boa. Mas, num sistema totalitário, o que nós vamos ter?

ConJur — É perigoso.

Garreta Prats — Perigosíssimo. Não consegui encontrar ainda um crime que não atente contra os direitos humanos. Então tudo pode ser federalizado.

ConJur — Qual é a sua opinião sobre a invasão dos escritórios de advocacia, quais são os limites?

Garreta Prats — Um padre tem que contar que recebeu uma confissão de assassinato? É como um advogado que recebe um documento do seu cliente para exercer o seu trabalho. Eu acho que está absolutamente acobertado pela imunidade, é segredo profissional. Tem advogado bandido, assim como promotores, juízes e jornalistas. Me parece que provas obtidas dessa maneira ilegal nos escritórios de advocacia, que a Polícia Federal tem feito alucinadamente, não terão efeito nenhum. De que adianta eu obter uma prova ilegalmente e depois ela não poder ser usada.

ConJur — O senhor acha que tem um sentido político nessas operações?

Garreta Prats — Absolutamente político. Estão fazendo jogo de cena para o público, para mostrar que a Policia Federal está atuando. Mas não está. Nós não aprendemos nada no Brasil, nós temos tantos exemplos e a Escola de Base é o mais famoso.

ConJur — Qual é a sua posição sobre o poder de investigação do MP?

Garreta Prats — É fundamental. Todo o mundo moderno avançou no sentido de que as instituições precisam apurar as coisas. Se o promotor não pode investigar, o advogado também não pode atuar, então só a polícia. Como o advogado vai poder atuar? Ele não é imparcial, ele é parte. Na minha opinião, é uma tentativa, absurda, de tornar o país absolutamente autoritário.

ConJur — Alguns críticos dizem que a Constituição não prevê esse poder, outros que até proíbe. Além disso, defendem que, na condição de acusador, o MP não poderia participar da produção de provas, porque viria com um pré-julgamento. O que o senhor acha?

Garreta Prats — Se o constituinte me deu a titularidade exclusiva da ação, evidentemente que ele incluiu nesse dispositivo todos os mecanismos possíveis para a execução dessa ação. Quanto ao segundo argumento, se eu sou parte e não posso investigar, o advogado, o que é? Então ele também não pode fazer nenhuma apuração de fato, não pode chamar uma testemunha, não pode chamar um perito que faça uma análise para ele, porque ele é parte.

ConJur — A iniciativa do desarmamento vai contribuir para a redução da violência e da criminalidade?

Garreta Prats — É claro que, em sã consciência, ninguém vai propor uma população armada. Mas esse desarmamento pirotécnico que se esta fazendo não vai levar a nada. Não vai mais se atirar em briga de bar. Mas se é assim vamos proibir também a faca. Não são poucos os casos de homicídio com faca.

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