Virou fumaça

Juiz rejeita ação de Soninha contra a revista Época

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6 de julho de 2005, 15h52

A vereadora paulistana Soninha e o cartunista Angeli perderam ação de indenização por danos morais contra a editora Globo, pela publicação da reportagem “Eu fumo maconha”, na revista Época, em novembro de 2001.

Soninha, Angeli e o advogado Rogério Geraldo Rocco, também entrevistado na reportagem, foram condenados a pagar R$ 1,5 mil, cada um, de custas processuais e honorários advocatícios. A decisão é do juiz Swarai Cervone de Oliveira, da 2ª Vara Civil do Fórum de Pinheiros, em São Paulo.

A reportagem discorria sobre o uso da maconha e quis mostrar pessoas bem sucedidas que reconheciam seu uso recreativo. O texto também tratava da descriminalização do uso e dos riscos potenciais da droga. A publicação da reportagem rendeu a Soninha — que teve a foto destacada na capa da revista — a demissão da TV Cultura.

Os autores da ação alegavam “condução nefasta e sensacionalista na exploração da reportagem” e o uso não autorizado de suas imagens na capa da revista e nos outdoors espalhados pela cidade.

Para o juiz Oliveira, “não cabe aos autores pautar a reportagem. A ré é livre para montá-la como lhe parecer melhor e para criar a manchete da forma mais apropriada a incentivar a compra. Afinal, em um regime capitalista, é evidente que uma manchete é feita para chamar a atenção”.

O juiz afirmou, ainda, que “os autores se deixaram fotografar e é bastante verossímil que soubessem que se tratava da reportagem da capa. Cuidando-se das pessoas de maior repercussão na reportagem, parece razoável que a revista utilizasse suas fotos”.

A sentença destaca que o uso das fotos “dentro da revista, evidentemente era permitido. E o uso na capa, por extensão, deve ser considerado lícito, à falta de prova mais robusto acerca da expressa restrição por eles feita — valendo lembrar que, a teor do art. 333, I, do Código de Processo Civil, é ônus do autor provar os fatos constitutivos de seu direito”.

A editora Globo foi representada pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, do escritório Camargo Aranha Advogados Associados. Soninha afirmou que vai recorrer da decisão.

Leia a íntegra da decisão

PODER JUDICIÁRIO SÃO PAULO

PROCESSO Nº 02.006.616-4

Vistos.

Trata-se de ação ordinária ajuizada por SONIA FRANCINE GASPAR MARMO, ARNALDO ANGELI FILHO e ROGÉRIO GERALDO ROCCO em face de EDITORA GLOBO LTDA.

Em síntese, insurgem-se os autores contra abuso cometido pela ré ao veicular reportagem na revista Época, em 19.11.2001. Os autores foram procurados, conforme o item 2 da inicial, para prestarem depoimentos em uma reportagem que abordaria o tema da descriminalização do uso da maconha e dos Juizados Especiais Federais. De acordo com o item 4 da inicial, dois aspectos demonstram o abuso cometido: a condução nefasta e sensacionalista na exploração da reportagem e o uso não autorizado da imagem dos requerentes na capa da revista e nos outdoors espalhados pela cidade.

Os autores entendem que o título — ‘EU FUMO MACONHA’ — e o subtítulo — ‘um número cada vez maior de brasileiros ignora a lei e usa a droga’ — da capa estão em dissonância com a reportagem e seu objetivo. Ao serem procurados pela revista e ao aceitarem dar as entrevistas, acreditavam que a reportagem visava a abordar o tema da descriminalização e do tratamento da questão como um problema social e não criminal.

Porém, sem autorização dos autores, a ré colocou suas imagens na capa da revista e, distorcendo o foco da reportagem, veiculou aquela chamada sensacionalista.

Tal fato teve repercussões negativas na vida de cada um dos autores, causando-lhes danos morais, descritos na inicial.

Por isso, postulam a devida indenização pelos danos morais e a condenação da ré a se retratar publicamente.

Superada a questão sobre a tempestividade da contestação apresentada, ela se pauta, em resumo, no seguinte. Não é verdade que os autores não tenham autorizado o uso de sua imagem na capa da revista, posto que sabiam que seria uma reportagem de capa. A manchete contra a qual eles se insurgem está em consonância com a reportagem, cujo objetivo, dentre outros, era mostrar pessoas bem sucedidas e que reconhecem o uso da maconha. Não houve sensacionalismo, mas mera escolha de uma chamada que causasse impacto, já que um dos objetivos da ré é vender o maior número possível de revistas. Em suma, não houve abuso.

Pelo princípio da eventualidade, a ré abordou também os aspectos da ocorrência dos danos morais, sua quantificação e o pedido de retratação.

Sobreveio réplica.

As partes não manifestaram interesse na conciliação.

Foi produzida a prova oral, com oitivas de testemunhas às fls. 278/286 e 350/353.

Encerrada a instrução, as partes manifestaram-se em alegações finais.


É o breve relato.

Os autores delinearam os pontos centrais contra os quais se insurgem: condução nefasta e sensacionalista na exploração da reportagem; uso não autorizado de suas imagens na capa e nos outdoors.

No que toca ao primeiro ponto, ele se resume na verdade, a delimitar se houve abuso por parte da ré no exercício da liberdade de imprensa.

Eis os pontos centrais: abuso e liberdade de imprensa. Não é necessário repetir que este se trata de um direito amparado constitucionalmente, vital à democracia, cujo controle, pelo Poder Judiciário, é sempre delicado.

Controle — preventivo ou repressivo — deve haver, posto que não há direitos absolutos e a própria Constituição assegura que não serão excluídos da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a outros direitos.

Tal controle, no entanto, deve atender a critérios de proporcionalidade — utilizado o termo, aqui, em seu sentido genérico —, sopesamento entre direitos. É dizer: só se deve restringir a liberdade de imprensa se seu exercício colidir com algum direito de maior envergadura, no caso concreto.

Essa situação se coloca em termos gerais e a breve introdução serve para assentar o seguinte: o controle do livre exercício do direito de imprensa só pode ser admitido em caráter excepcional.

Contudo, mais do que isso, no presente caso é preciso examinar se houve abuso por parte da ré.

O elemento ‘abuso’ foi uma constante, em todas as legislações brasileiras — desde a primeira lei referente à imprensa, promulgada ainda no Império — para que se caracterizasse a responsabilidade civil dos órgãos de imprensa.

Da análise dessa legislação pode-se ver:

O Decreto de 18 de junho de 1822 contém a seguinte passagem: ‘Determinada a existência de culpa, o Juiz imporá a pena’;

O Decreto de 22 de novembro de 1823: ‘Considerando que, assim como a liberdade de imprensa é um dos mais firmes sustentáculos dos Governos Constitucionais, também o abuso dela nos leva ao abismo da guerra civil e da anarquia’;

A Carta de Lei de 02 de outubro de 1823 reserva os artigos 5º a 16 para tratar dos abusos da imprensa;

A Cara de Lei de 20 de setembro de 1830, em seu art. 1º: ‘Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos e publicados pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de respondem pelos abusos que cometerem em exercício deste direito…’

A Lei nº 4.743, de 31 de outubro de 1923, em seu artigo 10, prescreve: ‘Pelos abusos de liberdade de imprensa são responsáveis…’

O Decreto nº 24.776, de 14 de julho de 1934, art. 1º: ‘Em todos assuntos é livre a manifestação do pensamento pela imprensa, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer …’

A Lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953, trata, em seu Capítulo II, dos abusos e suas penalidades, afirmando, em seu artigo 8º, que: ‘a liberdade de imprensa não exclui a punição dos que praticarem abusos no seu exercício.’

A atual Lei 5.250, de 09 de fevereiro de 1967, reza, em seu artigo 1º: ‘É livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer.’

Percebe-se, pois, por essa rápida digressão, que o legislador brasileiro sempre quis assegurar a liberdade de imprensa, vedada a censura, restringindo a responsabilidade dos órgãos de imprensa à hipótese da ocorrência de abuso.

Cabe, nesse passo, a pergunta: a ré cometeu algum abuso? A resposta é negativa.

Tenho que seja necessário interpretar a reportagem veiculada pela revista.

Ela se desenvolve, em suas sete páginas, basicamente, em três momentos.

Num primeiro momento, que se desenvolve nas páginas 90 a 93, a reportagem se preocupa em demonstrar que o tema do uso da maconha vem sendo cada vez mais discutido, em diversos campos, inclusive nos ‘sisudos corredores do STF’.

Num segundo momento, que tem início na página 93, a reportagem tem por foco mostrar pessoas bem sucedidas que reconhecem o uso da droga. Isso fica claro na seguinte passagem: ‘A novidade é que, aos poucos, se percebe também que os usuários estão dispostos a falar sobre suas preferências. Se há alguma notícia boa em relação às drogas, essa é uma delas’. E continua: ‘Época entrevistou 14 usuários de maconha — famosos e anônimos que se dispuseram a sair das sombras que habitualmente envolvem o tema’. E destaca, mais à frente: ‘todos eles são pessoas produtivas, bem-sucedidas, que escaparam do precipício onde sempre é possível cair pelo uso da maconha’.

Num momento final, a reportagem se preocupa em mostrar que o tema da descriminalização não é pacífico e os riscos potenciais da droga.


Para ilustrar as reportagens, há quadros específicos, onde aparecem, entre outros, os três autores, dando relatos pessoais. Os três, sem dúvida, reconhecem o uso da droga. A autora Sônia posa ao lado de um álbum do cantor Bob Marley, conhecido pelo uso da maconha. O autor Rogério, mais explícito, aparece na foto usando a droga.

Pois bem, nesse contexto, não me parece que a manchete de capa esteja dissociada da reportagem feita. Um dos pontos da reportagem, como dito, era mostrar que pessoas bem sucedidas fazem uso da droga, sem prejudicarem sua produção ou sua inteligência. E, mais, não fazem questão de se esconder. A manchete ‘EU FUMO MACONHA’ tem completa ligação com um dos objetivos da reportagem. E o subtítulo surge também no contexto da reportagem, como mera conseqüência do fato dos autores, assim como muitas pessoas, usarem a droga, não obstante a proibição legal.

É possível que os autores tenham entendido que o foco da reportagem era outro. É possível, principalmente no caso da primeira autora, que tenham se preocupado em mostrar que o problema é social e não criminal. Que tenham se exposto com o fim de incentivar a discussão.

Não se coloca em dúvida o caráter e as boas intenções dos três autores. No entanto, não cabe a eles pautar a reportagem. A ré é livre para montá-la como lhe parecer melhor e para criar a manchete da forma mais apropriada a incentivar a compra. Afinal, em um regime capitalista, é evidente que uma manchete é feita para chamar a atenção.

Haveria abuso se a manchete de capa não encontrasse eco na reportagem feita. Mas ela encontra. E também encontra arrimo nos depoimentos dos autores. Eles afirmaram, sem rodeios, que fumam maconha. O autor Rogério, ressalte-se, deixou-se fotografar fazendo uso da droga, com o seguinte comentário: ‘é ótimo dar uns tapinhas depois de um dia estressante, porque relaxa’. A autora Sônia disse: ‘Infelizmente, muitos vão entender errado e achar que passei a ser um modelo negativo porque resolvi dizer que gosto do efeito da maconha’. O autor Angeli afirmou: ‘Eu nunca quis parar, só quis me educar para usar de maneira limpa e prazerosa. Maconha é apenas para relaxar’.

Diante de tais relatos, não parece razoável dizer que a manchete da capa esteja dissociada da reportagem. Repita-se: os autores abordaram também outros pontos que, no seu entender, eram mais importantes. Acreditaram que a reportagem tivesse como objetivo incentivar o debate e falar da descriminalização. Porém, cabe à ré — e não aos autores — direcionar o foco da reportagem e escolher a manchete. O relato, após prestado, não mais pertence ao entrevistado. Pertence ao repórter, que é livre para fazer dele o uso que entender apropriado, desde que sem abuso.

A ré não cometeu abuso algum ao eleger a manchete de capa, já que ligada a depoimentos verdadeiros e efetivamente prestados pelos autores. Nada inventou e não fez qualquer menção desonrosa a eles.

Resolvido, então, o primeiro ponto.

Quanto ao uso da imagem dos autores na capa, tenho que, no fundo, ele esteja ligado ao primeiro ponto.

Se a manchete houvesse sido outra, como, p. ex., ‘Sou a favor da descriminalização’, certamente os autores não se insurgiriam com o uso da sua imagem. Assim, eles não controvertem exatamente sobre o uso isolado, mas sobre esse uso associado àquela manchete.

E, tal como dito alhures, aqui também não têm razão os autores.

Apenas uma testemunha, à fl. 281, disse, em relação ao autor Angeli, que ele não permitira o uso de sua imagem na capa. No mais, tal afirmação restringe-se ao dizer dos autores.

As testemunhas da ré, embora ouvidas na condição de informantes, alegaram que o uso da imagem na capa não foi restringido e que os entrevistados sabiam que seria uma reportagem de capa.

É mesmo verossímil que os entrevistados soubessem que a reportagem seria de capa. Nesse diapasão, nada, a não ser um testemunho isolado, em relação a apenas um dos autores, demonstra que haveria restrição no uso das fotos.

Isso é muito pouco, se confrontado com os argumentos já expostos nessa sentença.

Para que se considerasse que houve restrição dos autores no uso das fotos na capa, a prova produzida teria que ser mais forte — documental, por exemplo. Os autores se deixaram fotografar e é bastante verossímil que soubessem que se tratava da reportagem da capa. Cuidando-se das pessoas de maior repercussão na reportagem, parece razoável que a revista utilizasse suas fotos.

Nenhuma delas foi tirada sem o consentimento dos autores. Eles anuíram em que se sacassem fotos posadas, no bojo das entrevistas.

O uso, dentro da revista, evidentemente era permitido. E o uso na capa, por extensão, deve ser considerado lícito, à falta de prova mais robusto acerca da expressa restrição por eles feita — valendo lembrar que, a teor do art. 333, I, do Código de Processo Civil, é ônus do autor provar os fatos constitutivos de seu direito.

A veiculação da propaganda, por meio de outdoors, é um direito da ré e é evidente que assim deve agir, no intuito de vender revistas. A questão só haveria de ser examinada se procedentes as demais teses.

Por todo o exposto, não tendo havido conduta desconforme ao direito por parte da ré, a ação há de ser julgada improcedente.

Ausente abuso da ré, o exame das demais questões fica prejudicado, uma vez que não há responsabilidade civil geradora do direito à indenização.

Posto isso, JULGO A AÇÃO IMPROCEDENTE e condeno os autores, nos termos do art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil, a pagarem as custas e honorários advocatícios, que fixo, para cada um deles, em R$ 1.500,00.

P.R.I.C.

São Paulo, 26 de junho de 2005.

Swarai Cervone de Oliveira

Juiz de Direito

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