Fábrica de cópias

Internet é uma máquina de violar direitos autorais

Autor

  • Nehemias Gueiros Jr

    é advogado especializado em Direito Autoral Show Business e Internet professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e da Escola Superior de Advocacia — ESA-OAB/RJ consultor de Direito Autoral da ConJur membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados – Washington D.C. e do escritório Nelson Schver Advogados no Rio de Janeiro.

6 de julho de 2005, 11h29

Nestes vorazes tempos de globalização do novo milênio, temos todos lido, ouvido, observado e conjecturado sobre o colosso chinês do Extremo Oriente. Futura superpotência, provável contendor da unipolaridade dos Estados Unidos no planeta e novo gigante industrial, são apenas algumas das assertivas que são aplicadas à China por economistas, políticos, estudiosos e cientistas políticos.

Entretanto, esqueceram-se de consultar os advogados, juristas e profissionais do Direito, que certamente têm muito a dizer nesse sentido e é justamente o que nos propomos com esse ensaio que, longe de pretender ser uma verdade definitiva, objetiva chamar a atenção para fatos inevitáveis que evoluem a partir daquele grande país asiático e já estão começando a causar grandes dores de cabeça não apenas no Ocidente industrializado, mas em todo o mundo.

A China transformou-se no mais importante e movimentado fabricante sob encomenda no planeta nas duas últimas décadas, fonte de mais da metade da produção mundial de eletroeletrônicos, incluindo rádios, DVDs, telefones celulares, câmeras e brinquedos, mas enquanto a grande maioria dessa produção é legal, autorizada e motivada pela busca das multinacionais ocidentais por mão-de-obra mais barata, uma parte considerável é ilegal, pirata.

Os chineses vêm desenvolvendo sua prodigiosa capacidade produzir em massa bens replicados e falsos, de roupas de grife a produtos eletrônicos. Os atuais parceiros comerciais da China tendem a passar a mão sobre sua cabeça, não só “compreendendo” como natural esse desrespeito à propriedade intelectual a partir de uma nação antes unicamente dominada por um sistema econômico planificado e estatal, ainda em fase embrionária de livre mercado, como, principalmente, em função dos substanciais lucros que vêm obtendo nos negócios bilaterais.

Eles certamente estão cegos pela noção de que esse modelo de negócios é temporário e tenderá a se estabilizar com o tempo, na medida em que a China começar a dar maior importância às questões de propriedade intelectual em relação aos seus próprios produtos, o que, em tese, a faria respeitar mais os produtos estrangeiros protegidos. Em nossa opinião particular, trata-se de ledo engano. É uma hipótese que simplesmente não irá prosperar numa nação cujo governo controla a totalidade da indústria de base e a pirataria não parece derivar do efeito comum a uma economia de mercado; tem mais cara de ser mesmo política oficial, por incrível que possa parecer.

A administração chinesa certamente tem interesse em quebrar a espinha dorsal de pequenas empresas que inundam as ruas com produtos piratas, mas proteger o cerne da tecnologia de ponta alienígena é outra história. Essa a razão porque o governo chinês comemora quando uma campanha que durante muitos anos promoveu para “limpar” o chamado “Beco da Seda” em Pequim, uma espécie de camelódromo nacional de produtos piratas de grife, sportswear e relógios de marca, termina em pizza com a inauguração de um novo shopping center conhecido como “A Rua da Seda”, que vende os mesmos produtos com autorização governamental e pagando normalmente os impostos ou a invasão das lojas legalizadas pelos CDs e DVDs piratas, em franca competição com os mesmos produtos legais, produzidos pelas gravadoras que pagam — caro — os tributos regularmente devidos.

Por isso soa estranho quando o governo chinês promove uma campanha nacional em favor da proteção à Propriedade Intelectual mas, ao mesmo tempo, determina oficialmente que todas as patentes oficiais utilizadas na produção de produtos que apresentam utilidade tecnológica para o país podem ser legalmente expropriadas… E estamos falando de leis e dispositivos normativos formalmente aprovados pela burocracia do governo chinês em 2004.

Fica claro para qualquer um que se permita um pouco mais de reflexão sobre o assunto que, quando o Governo de um país totalitário é o principal proprietário dos negócios, a iniciativa privada não tem como assegurar o respeito aos seus direitos intelectuais, principalmente em se tratando de criações imateriais, como marcas, patentes, modelos de negócios e idéias. E o advento em escala mundial da grande rede de computadores Internet só veio facilitar esse estado de coisas, pois a China começou a surgir como potência econômica no final do século passado, justamente quando a Super-Rodovia da informação propiciada pela Internet começava a dar os seus passos como meio de comunicação dominante da sociedade planetária, onde informações compostas de idéias, obras literárias, artísticas e científicas podem circular livremente pelo planeta em forma de elétrons trafegando à velocidade da luz, sem barreiras alfandegárias ou outro tipo de fiscalização.

Assim como as ferrovias, o telégrafo e código Morse criaram as primeiras redes de informação no século XIX e com isso engendraram as primeiras reais preocupações com relação a Direitos de Propriedade Intelectual (a Convenção Internacional de Berna, a primeira mundialmente dedicada à proteção aos Direitos de Autor se deu em Berna em 1886 e continua em pleno vigor até hoje), a Internet e a tecnologia da informação (TI) mudaram completamente a paisagem com relação às criações intelectuais e às invenções no final do século XX. Qualquer um pode navegar na Grande Rede, encontrar registros de patentes de outros países ou mesmo internacionais e buscar brechas até conseguir quebrá-las.

A Internet é efetivamente incontrolável em sua totalidade e esta é uma premissa que precisa ser urgentemente adotada por todos os profissionais do Direito em redor do mundo, desde juristas e advogados até os membros do Poder Judiciário, de forma a que se possa unificar os estudos da novíssima CyberLaw (do inglês, lei cibernética), pois a Web literalmente pulverizou a territorialidade e tornou obsoletos os atuais dispositivos legais de fiscalização e coerção de violações da Propriedade Intelectual derivados do mundo físico. No mundo virtual, as possibilidades de pirataria e contrafação passaram de dias e horas para minutos e segundos, deixando perplexos os criadores intelectuais, os legisladores e os consumidores, que nunca sabem como estão sendo utilizadas suas obras ou o que estão realmente adquirindo com seu dinheiro, arduamente disputado na dura vida do capitalismo contemporâneo.

O grande paradoxo que estamos a assistir é que a globalização e a tecnologia foram as principais responsáveis pela criação de uma máquina sem precedentes de copiagem e violação de Direitos Autorais. Os Estados Unidos, única superpotência mundial do mundo contemporâneo, tanto em termos econômicos como militares, estendem uma longa manus para proteger sua propriedade intelectual, como os filmes de Hollywood, o rock and roll e os automóveis de Detroit entre outros, através de pressões na WTO (do inglês World Trade Organization ou OIT — Organização Mundial do Trabalho) através de sanções econômicas — existem diversas linhas de crédito no valor de bilhões de dólares viabilizadas aos chineses pelos americanos ainda que isso pareça um despropósito em se tratando de capitalistas auxiliando comunistas — mas todos os esforços até aqui têm sido infrutíferos.

A comunidade comercial internacional, atualmente mais global do que nunca, simplesmente precisa se adaptar. A Internet é incontrolável, assim como o crime e a pirataria sempre foram ao longo da História. Podemos tentar coibir e minimizar os seus efeitos. Da mesma forma que a indústria fonográfica não descansou enquanto não fechou o Napster (e o reabriu dois anos depois cobrando pelos downloads após ser adquirido pela BMG, do poderoso grupo alemão multimídia Bertelsmann) e agora obteve uma histórica vitória na Suprema Corte dos Estados Unidos (vide nosso artigo no CONJUR de 28.06.2005), os industriais do Ocidente precisam urgentemente desenvolver novos modelos de negócio que bypassem os efeitos nefastos da pirataria e da contrafação da propriedade intelectual.

Certamente esses modelos passarão pela redução imediata de preços ao consumidor final, terceirização dos serviços de distribuição e a criação de um sistema global de licenciamento de obras intelectuais tais como livros, músicas, filmes, textos e softwares que não privilegiem “o produto” mas, sim “o serviço”, tal como já vem sendo feito com bastante sucesso pelo LINUX, o chamado software livre, que vem sendo gradualmente adotado no mundo, principalmente pelo setor público (governos).

Não há como escaparmos da realidade de que a violação da propriedade intelectual é inexorável e incontrolável em sua totalidade. O que temos que fazer é conferir a mesma importância aos mecanismos e salvaguardas legais que hoje é conferida somente do ponto-de-vista político e sempre com uma visão imediatista, individual.

A conclusão imediata a que podemos chegar diante de todos os sinais evidentes da abertura comercial da China para o Ocidente é que no mundo atual existem duas potências: a dominante (os EUA) e a emergente (a China), o que não significa que elas terão inevitavelmente que se tornar inimigas. Washington deseja naturalmente “controlar” a emergência da China de forma a integrar-se pacificamente como uma nova força no cenário mundial sob o vigilante olhar da lança militar americana, enquanto os chineses querem emergir com independência, protegendo-se da invasão cultural e econômica americana mas, ao mesmo tempo já perceberam que seu modelo comunista de economia planificada se esgotou e não há mais tempo a perder se ainda quiserem controlar o surto capitalista já experimentado a partir de cidades como Hong-Kong e Xangai, sob o risco de ver o país se transformar em um “caos” neo-econômico como a Rússia da atualidade.

É muito importante entendermos o significado dos paradoxos que abundam na China de hoje. A poderosa rede americana Wal-Mart por exemplo, tornou-se um dos maiores motores de mudança no país, como comprador e vendedor de bens e também empregador, enquanto que várias administrações municipais vêm conduzindo pesquisas de opinião entre a população para apurar sua eficiência, realizando reuniões e respondendo a milhares de e-mails do público.

Como deve o Ocidente entender uma sociedade em que protestos ambientais são cada vez mais comuns e as igrejas clandestinas estão maiores do que nunca, embora a informação ainda seja estritamente controlada e longas penas de prisão são assinadas a todos aqueles que ultrapassam a mais tênue — e nebulosa — regra estabelecida? Depois de passar cerca de 500 anos adormecida e longe do resto do mundo conhecido, a trajetória da China em direção à modernidade teve efetivamente um empurrão do Ocidente e não foi atraves de um ato de benevolência do Grande Dragão amarelo. O empurrão foi mesmo violento.

Os chineses somente começaram a abrir sua Caixa de Pandora para o mundo ocidental no século XIX quando os canhões da poderosa Marinha Real Britânica — em estreita colaboração com os traficantes de ópio — forçaram o governo imperial chinês a aceitar a prática do comércio externo. Seguiram-se um século de humilhação, invasões e desmembramento de seu território, saques e massacres, além de sedições internas, catástrofes naturais, fome e caos. É assim que a grande maioria do povo chinês ainda olha para o Ocidente, mesmo a despeito da frágil e aparente estabilidade que emergiu desde o massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, em que o país experimentou mais expansão econômica e prosperidade do que nos últimos 150 anos.

O foco maior da atual administração chinesa é alcançar um equilíbrio mínimo entre o voluptuoso crescimento econômico das cidades costeiras como Xangai, Macao e Hong-Kong e o chocantemente pobre interior do país, com milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza inevitavelmente prenhes do incontrolável êxodo rural e funcionários públicos engajados numa onda sem precedentes de corrupção (qualquer semelhança com um certo país é mera coincidência). A China é o país que vem formando o maior número de milionários do mundo recente, um paradoxo que certamente está fazendo Mao-Tsé-Tung dar voltas no caixão.

Tudo isso é combustível certo para o desenvolvimento cada vez mais voraz de uma economia informal, utilizando as plataformas de propriedade intelectual fornecidas pelo próprio Ocidente – que procura a barata mão-de-obra chinesa para reduzir o custo de fabricação dos seus produtos – inundando a economia dos “patrões” com milhões de produtos piratas, ilegais e de sofrível qualidade, os chamados copycats. É a clássica história do cão mordendo seu próprio rabo, que parece não ter fim a curto prazo. E o que é pior: com o beneplácito das autoridades que não vêem outra forma de produzir empregos para os cidadãos de um pais com quase 1,5 bilhão de habitantes.

A China serve de exemplo devido ao seu tamanho e à sua importância no cenário global contemporâneo, mas a questão da propriedade intelectual é urgente e precisa ser encarada de forma emergencial, pois o volume de negócios ilegais e piratas no planeta é irresistivelmente atraente para qualquer pessoa, pela incontestável economia que gera para os infratores, tanto em termos de royalties como de impostos, em absoluto detrimento dos legítimos direitos de compensação pecuniária dos genuínos criadores intelectuais.

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  • é advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e Internet, professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e da Escola Superior de Advocacia — ESA-OAB/RJ , consultor de Direito Autoral da ConJur, membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados – Washington D.C. e do escritório Nelson Schver Advogados no Rio de Janeiro.

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