Dois em um

Defesa da concorrência é, antes de tudo, defesa do consumidor

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25 de janeiro de 2005, 18h02

Os consumidores não são defendidos tão somente pelo Código que leva o seu nome. Ao contrário, existem outras legislações que têm a mesma função, como a Lei 8.884/94, chamada de Lei do Abuso do Poder Econômico, ou Lei Anti-trust, que, já no primeiro artigo, evidencia a função de prevenir e reprimir infrações contra a ordem econômica, orientada pela liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

O bem protegido pela Lei 8.884/94 é o mercado competitivo onde, a ciência econômica demonstra, os preços dos bens e serviços tendem a permanecer próximos ao ponto de equilíbrio entre a oferta e a demanda. Em mercados dotados de oligopólios ou monopólios, os preços afastam-se desse equilíbrio, ocasionando uma transferência indevida de riqueza do consumidor ao fornecedor.

De fato, havendo concorrência em determinado mercado, os concorrentes tenderão a produzir pelo menor preço, preocupando-se com a qualidade dos produtos, uma vez que preços altos e/ou baixa qualidade dos produtos importarão na perda de clientela para outro agente desse mesmo mercado. Em um mercado monopolista, além da intenção de se vender pelo maior preço possível, com lucros arbitrários e abusivos, não há uma preocupação com a qualidade do produto, já que não há perigo, em princípio, da perda da clientela.

Assim, uma vez que a intenção da Lei Anti-trust é proteger a concorrência nos mercados, não há como negar o objetivo da legislação de proteger os consumidores. Em última análise, quem ganha com o mercado competitivo são eles, os consumidores.

Para a garantia de um mercado competitivo, a Lei 8.884/94 concede ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), duas funções: uma repressiva e outra preventiva.

A função repressiva está retratada a partir do artigo 15 da lei em comento. Dentre os artigos que a compõe, dispõe o artigo 20:

“Constituem infração de ordem econômica, independe de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I. imitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa,

II. dominar mercado relevante de bens ou serviços,

III. aumentar arbitrariamente os lucros,

IV. exercer de forma abusiva posição dominante”.

Em seguida, o artigo 21 enumera atos que, na medida em que configurem as hipóteses do artigo 20, caracterizam infração da ordem econômica. A análise dessas condutas permite verificar a potencialidade de prejudicarem o consumidor, senão vejamos:

a) fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma, preços e condições de venda de bens ou prestação de serviços;

b) interromper ou reduzir em grande escala a produção, sem justa causa comprovada;

c) subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço.

Todas essas condutas, ilícitas, têm por objetivo falsear a concorrência, causando, conseqüentemente, prejuízos ao consumidor.

A função preventiva, prevista a partir do artigo 54 da lei, traz a competência do Cade de analisar todos os atos que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços. Assim, atos de fusão, incorporação, ou qualquer forma de agrupamento de empresas antes concorrentes, devem ser levados para apreciação do Cade, para autorização ou não.

Contudo, evidenciando a preocupação da Lei 8.884/94 com o consumidor, o artigo 54, em seu parágrafo 1º, prevê a possibilidade da autorização dos atos de concentração, desde que:

a) tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente: aumentar a produtividade; melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou proporcionar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico;

b) os benefícios decorrentes da concentração sejam distribuídos eqüitativamente entre os seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro;

c) não impliquem a eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens ou serviços;

d) sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados.

Além disso, ratificando o seu interesse em proteger o consumidor, o parágrafo 2º do mesmo artigo prevê a possibilidade de aprovação do ato quando necessário por motivos da economia nacional e do bem comum, mas desde que não implique em prejuízo ao consumidor ou usuário final.

No caso “Nestlé – Garoto”, onde foi constatada elevada concentração de mercado em vários produtos e sérias barreiras de entrada para eventuais novos agentes, o conselheiro Fernando de Oliveira Marques, ao apreciar as eficiências aduzidas pela requerente a justificar a concentração dos mercados, manifestou o entendimento de que não houve demonstração da sua distribuição ao mercado e ao consumidor, aumentando a concorrência e conseqüentemente o bem-estar social.

“Isto é, as eficiências demonstradas não superam as perdas de concorrencialidade nem tampouco são compartilhadas com a sociedade”. Esse conselheiro, em remate ao seu voto e para sustentar o entendimento pela impossibilidade de aprovação da operação, relatou não ter vislumbrado efetivas possibilidades de distribuição eqüitativa dos benefícios da operação com os consumidores.

Ainda sob o aspecto de proteção do consumidor, do voto do relator, conselheiro Thompson Andrade, extrai-se: “Esta elevada participação de mercado, aliada às barreiras à entrada presentes neste mercado, representará um forte desincentivo seja para transferir parte das eficiências para os consumidores (distribuição eqüitativa), seja para realizá-las integralmente (ineficiência), em face do enfraquecimento da pressão competitiva”.

Por essa preocupação com o consumidor e em sua defesa que, explicitamente, constou da ementa do julgamento do caso “Nestlé – Garoto”: “Eficiências insuficientes para compensar dano à concorrência e garantir a não redução do bem estar do consumidor”.

Como conclusão, é possível afirmar que a decisão do Cade em não permitir a incorporação da Garoto, pela Nestlé, além dos inúmeros benefícios decorrentes da manutenção da concorrência, acaba por manter os direitos do consumidor intimamente relacionados com a manutenção da concorrência. Como asseverado no início, o consumidor é o destinatário primeiro dos valores protegidos pela Lei Anti-trust. A larga utilização desse sujeito – o consumidor -, quer no texto legal, quer na decisão ora comentada, é prova cabal da assertiva.

JOSÉ MARCELO MARTINS PROENÇA – Editora Saraiva.

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    é advogado do escritório Approbato Machado, doutor em Direito Comercial pela USP, professor de Direito Comercial do Complexo Jurídico Damásio de Jesus e da Escola Superior de Advocacia e autor do livro “Concentração Empresarial e o Direito da Concorrência”

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