Arquivos da Ditadura

Leia decisão em que juiz rejeita suspeição pedida pela AGU

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24 de fevereiro de 2005, 11h30

“Não sou suspeito para a causa, pois não tenho qualquer interesse material ou moral no seu resultado. Não tive parente, amigo ou conhecido, próximos ou distantes, vítimas da ditadura e que agora esperam pelas informações mantidas sob sigilo. Não tenho nenhuma questão pessoal com qualquer das autoridades constituídas envolvidas na questão, mesmo porque pelo que se pode observar na mídia, minha decisão não agradou ao Governo nem aos Militares”.

A afirmação é do juiz federal Paulo Alberto Jorge, de Guaratinguetá, São Paulo, que determinou a abertura dos arquivos sigilosos da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Ele rejeitou a exceção de suspeição invocada pela União no caso.

Ele afirma que a decisão de mandar abrir os arquivos da Ditadura “não expressa senão entendimento jurídico acerca do tema, fruto da formação de livre convicção cujos fundamentos demandaram exposição em 45 (quarenta e cinco) laudas, com referências doutrinárias de escol”. Segundo ele, “não se trata de mero achismo despropositado, no intuito de satisfação de interesses pessoais”.

Leia a decisão

PROCESSO Nº 2005.61.18.000088-2

1ª VARA FEDERAL DE GUARATINGUETÁ/SP

EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO

Decisão

A UNIÃO FEDERAL oferece exceção de suspeição em face deste Magistrado, pretendendo impedi-lo de continuar a atuar no processo, prerrogativa que é sua por ser o Juiz Natural de causa distribuída ao Juízo da 1ª Vara Federal de Guaratinguetá e da qual é Titular.

Quer a UNIÃO FEDERAL que este Juiz seja afastado do processo e impedido de nele proferir novas decisões.

E o faz sob pífios argumentos, calcados no fato de terem sido dadas declarações à imprensa APÓS A DECISÃO LIMINAR PROFERIDA e no intuito único de esclarecer a comunidade interessada em assunto de grande relevância nacional – abertura dos documentos da ditadura –, cumprindo-se dever da autoridade pública dar plena publicidade aos atos praticados e dos fundamentos tomados para decidir.

A medida tomada tem, todavia, propósito diverso daquele preconizado pela norma processual invocada.

Trata-se de clara tentativa de retaliação pessoal a um Magistrado que ousou decidir contrariamente aos interesses daqueles que ainda rezam a cartilha da ideologia da segurança nacional “doutrina concebida sob o espectro da guerra – da Guerra Fria, da guerra revolucionária e da Terceira Guerra Mundial, tida por longo tempo como uma inevitabilidade histórica. Em nome da segurança nacional, disseminou-se nos países periféricos do bloco ocidental um truculento sentimento anticomunista, fundamento da repressão, da censura e da perseguição política. Quase todos os países da América Latina sofreram o impacto antidemocrático da ideologia da segurança nacional, com o colapso das instituições constitucionais e a ascensão de regimes militares” (LUIS ROBERTO BARROSO, A superação da ideologia da segurança nacional e a tipificação dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, in Revista do Advogado nº 73, pág. 113).

Sintomático que este sentimento ressurja na presente ação, que trata exatamente da expiação dos pecados que o Estado praticou no passado, para muitos ainda motivo de orgulho.

Não podendo mais se valer das normas (?) estabelecidas em Atos Institucionais, valem-se, agora, de uma temerária exceção processual, hipocritamente dita como não atentatória à honorabilidade do Juízo.

Como se não ferisse a honra do Magistrado independente e consciente de seus deveres seu afastamento de processo sob seus cuidados sob a pecha de suspeito parcial. Como se não dissesse respeito à honra do Magistrado a privação de prerrogativas de seu cargo por não ser ele “adequado” para o caso.

Decidindo sobre o que era ou não “adequado” aos interesses dominantes e à revelia da ordem constitucional, o Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965 estabeleceu que “Art. 14. Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício de funções por tempo certo. Parágrafo único. Ouvido o Conselho de Segurança Nacional, os titulares dessas garantias poderão ser demitidos, removidos ou dispensados, ou, ainda, com os vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, desde que demonstrem incompatibilidade com os objetivos da Revolução”.

Quase 40 (quarenta) anos depois, ainda há os que para satisfação dos interesses do regime felizmente extinto, julgam pertinente dispensar um Juiz de suas funções à revelia da garantia constitucional da inamovibilidade, por ter ele, com a decisão tomada no âmbito de suas legítimas atribuições, demonstrado incompatibilidade com os objetivos da dita Revolução, questionando à luz da Constituição vigente o atributo do sigilo conferido aos atos deploráveis praticados em nome da mesma.

O afastamento deste Magistrado sob o fundamento da suspeição não terá outra conotação senão a da punição na esteira de descarada perseguição política, única forma de satisfazer a sanha daqueles ainda não acostumados com a convivência democrática e que, por isso, não se conformando com a contrariedade de seus interesses, não se contentam com o uso das vias institucionais de reforma das decisões judiciais, preferindo lançar mão de intimidação e do ataque moral.

Não sou suspeito para a causa, pois não tenho qualquer interesse material ou moral no seu resultado. Não tive parente, amigo ou conhecido, próximos ou distantes, vítimas da ditadura e que agora esperam pelas informações mantidas sob sigilo. Não tenho nenhuma questão pessoal com qualquer das autoridades constituídas envolvidas na questão, mesmo porque pelo que se pode observar na mídia, minha decisão não agradou ao Governo nem aos Militares. Nem se cogite ter sido dada para favorecer perseguidos políticos, os mesmos que em outra Ação Civil Pública em tramitação neste Juízo tiveram por decisão também de minha lavras limitados os valores das prestações mensais que recebem na condição de anistiados (Processo nº 2004.61.18.001724-5).

A decisão que proferi não expressa senão entendimento jurídico acerca do tema, fruto da formação de livre convicção cujos fundamentos demandaram exposição em 45 (quarenta e cinco) laudas, com referências doutrinárias de escol. Não se trata de mero achismo despropositado, no intuito de satisfação de interesses pessoais.

Meus únicos compromissos, dos quais nunca abrirei mão, são com a Constituição Federal, com a Nação Brasileira e com minha consciência. Não aceito a acusação de suspeição, menos ainda à vista de razões absolutamente irrelevantes e até pueris, como ter me permitido fotografar ao lado de autoridade pública ou de ter feito declarações quanto aos receios que posso ter em razão do desempenho de minhas funções.

A postura da UNIÃO FEDERAL esconde suas verdadeiras intenções. Forçando interpretação sobre os fatos tenta afastar este Magistrado do processo sob o fundamento de excepcionalíssima hipótese de suspeição por interesse na causa. Quando, n a verdade, pretende mesmo impor punição ao Juiz que no exercício regular, honesto e independente de suas atribuições decidiu contrariando interesses que a excipiente ainda se presta a defender. Age no melhor estilo daquilo que George Orwell, em seu já clássico 1984, cunhou tratar-se de doublethink, “talvez a palavra mais importante cunhada por Orwell, que se refere a situações em que a versão oficial dos eventos é totalmente oposta ao que realmente acontece” (VARDA BURSTYN, in revista CartaCapital de 19 de janeiro de 2005, pág. 16).

Rejeito, por isso, veementemente a exceção.

Encaminhem-se os autos ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região nos termos do art. 313, 2ª parte, do CPC e para os fins do art. 314 do mesmo Código.

Intimem-se. Cumpra-se.

Guaratinguetá, 2 de fevereiro de 2005.

PAULO ALBERTO JORGE

Juiz Federal

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