Garantia de vôos

Varig, TAM e Gol devem transportar passageiros lesados pela Vasp.

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22 de fevereiro de 2005, 12h18

As empresas aéreas Varig, TAM e Gol estão obrigadas a transportar os passageiros lesados pela Vasp. A determinação é do juiz da 3a Vara Federal de Porto Alegre, Eduardo Vandré Garcia, e vale para todo o país. Ainda cabe recurso.

A Ação Civil Pública foi ajuizada pela Associação de Defesa dos Passageiros das Empresas Aéreas (Andep). A associação pediu liminar para obrigar as empresas a aceitarem o endosso das passagens emitidas pela Vasp e fazerem o transporte dos passageiros. O juiz estabeleceu que o número de endosso deverá ser de até cinco por vôo. De acordo com a liminar, oportunamente a União deverá arcar com as despesas. As informações são do site Espaço Vital.

A liminar foi concedida na sexta-feira (18/2) depois de serem colhidas as contestações da Varig, da TAM e da Gol, além de ter sido feita audiência de tentativa de conciliação. Para o juiz, “o ideal da justiça nem é algo que passa apenas pela cabeça do juiz”. Segundo ele, “é algo que está expresso na nossa Constituição: um serviço adequado e eficaz ao usuário do serviço público”.

“Mais ainda, assegurar-se a esses brasileiros que não conseguiram retornar da sua viagem, um tratamento digno (CR, art. 1º, III), o que é um fundamento da República”, completou.

Para o advogado especializado em direito do consumidor, Marcelo Roitman, do escritório Pompeu, Longo, Kignel e Cipullo, “é um grande absurdo obrigar a TAM, a Varig e a Gol, todas empresas privadas sem qualquer vínculo com a Vasp, a cumprir as obrigações de transporte de consumidores que firmaram contratos com a Vasp”. Segundo ele, “não há qualquer fundamento jurídico capaz de legitimar a transferência as outras empresas do ônus da Vasp de cumprir as obrigações assumidas ao vender as passagens aéreas”.

Segundo Roitman, o argumento utilizado pelo juiz em sua decisão também não tem respaldo legal. “Ainda que o Governo possua culpa, não há como responsabilizar outras empresas privadas pelo inadimplemento de outra empresa privada. Se há erro do governo, ele deve se responsabilizar, jamais transferir essa obrigação para outras empresas”, destaca.

Veja a liminar

Processo nº 2005.71.00.002594-1

Ação Civil Pública

DESPACHO

Trata-se de ação civil pública, na qual a Associação Nacional em Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos pretende a concessão de tutela antecipada que determine às empresas aéreas, VARIG, TAM e GOL, que procedam no endosso das passagens vendidas pela VASP, com a respectiva responsabilização da UNIÃO pelo o seu ressarcimento.

Ouvi a UNIÃO (fls. 85 a 98), no prazo legal, e determinei a realização de audiência de conciliação, na qual não houve êxito (fl. 69).

Sobrevieram memoriais pela GOL (fls. 100 a 104), pela ANDEP (fls. 111 a 114), pela TAM (fls. 119 a 124) e pela UNIÃO (fls. 125 a 126).

Os autos vieram conclusos no final da tarde do dia 17 de novembro de 2004.

É o breve relatório.

Decido, em sede liminar.

As preliminares poderão ser melhor apreciadas após o prazo para contestação. Contudo, para admissibilidade do feito e enfrentamento da tutela, cumpre distinguir responsabilidade de legitimidade.

A primeira decorre da relação jurídica de direito material, e diz respeito ao mérito da demanda. Eventual ausência de responsabilidade da UNIÃO ou das companhias aéreas não implica ilegitimidade passiva, senão que improcedência do pedido.

A segunda, sim, diz respeito a aspecto de natureza formal, ou seja, de admissibilidade da ação. Porém, a legitimidade não é verificada pelo âmbito da relação jurídica de direito material, mas pelos termos do pedido.

No caso dos autos, a Associação requerente pretende que a VARIG, a TAM e a GOL recebam os bilhetes de passagem da VASP. E mais, pede que a UNIÃO se responsabilize pelo reembolso. Ora, se esse é o pedido, quem tem legitimidade para estar na lide? Quem iria defender os interesses dessas companhias e da própria UNIÃO, senão elas mesmas.

Assim, nesta fase precária do processo, rejeito a preliminar e passo a analisar o pedido de tutela.

O artigo 21, inciso XII, letra “c”, da Constituição da República, afirma que compete à UNIÃO conceder os serviços de navegação aérea.

Portanto, em que pese a contratação da companhia que irá executar o serviço se dê através de um negócio jurídico de direito privado, à atividade que é prestada pela empresa de aviação caracteriza-se como serviço público. O contratante, pois, é usuário desses serviços.

Para análise desse subsistema normativo (da concessão do serviço público de aviação civil), deve-se ter presente que a tradicional idéia de que o Direito é um sistema de regras, tão bem desenvolvida por HANS KELSEN, ALF ROSS e HERBERT HART, há muito não se sustenta. Ao menos desde RONALD DOWRKIN, entre outros tantos, sabe-se que o conjunto normativo que encerra a idéia de direito contemporâneo integra um sistema de princípios e regras.

O que difere um do outro (princípios de regras), para o que me valho do eminente jurista gaúcho HUMBERTO ÁVILA, é justamente o caráter imediatamente finalístico do primeiro (princípio) em relação ao caráter imediatamente descritivo do segundo (regra): “os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento”; isso sem excluir, obviamente, tanto o caráter descritivo dos princípios como finalístico das regras, porém com menor intensidade.

De modo a positivar o manejo dos princípios, a própria Constituição da República os estabeleceu, e, em relação ao caso dos autos, assim explicitou as vertentes que devem orientar aquele que aplica o direito:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

II – os direitos dos usuários;

IV – a obrigação de manter serviço adequado”.

Veja-se que a idéia de que o serviço deve ser adequado ao usuário tem lastro constitucional, o que evidencia o potencial político desse valor social.

Ainda nesse subsistema, o artigo 6º, § 1º, da Lei nº 8.987, de 1995, estabeleceu que toda “concessão (…) pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários” e que “serviço adequado é que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência (…) cortesia na sua prestação e modificidade das tarifas”.

Não é possível que a Constituição e a Lei das Concessões se proponha a quimeras.

Pois bem. Está-se diante de uma circunstância em que, em face de dificuldades operacionais, a UNIÃO interrompeu os serviços de transporte de passageiros até então executados pela VASP.

Fazendo isso, sem dúvida, exerceu regularmente seu poder de polícia e, em certa medida, fez cumprir os direitos de usuários futuros, que provavelmente não receberiam um serviço público de forma adequada e eficaz.

Mas, considerando-se que dessa interrupção vários passageiros ficaram impedidos de viajar, em que pese já estivessem com os seus bilhetes adquiridos, há alguma dúvida de que foi violado o seu direito de usuário do serviço público? Imagine-se, ainda, o caso daqueles passageiros que executaram apenas parcialmente a sua viagem e atualmente estão impossibilitados de retornar à cidade de origem.

E como se concretiza a Constituição e a Lei das Concessões? Como se assegura um serviço público adequado e eficaz? Simplesmente reconhecendo a natureza privada dos contratos de transporte e afastando o quanto de interesse público permeia o serviço público de transporte aéreo? Simplesmente afirmando a ausência de responsabilidade da UNIÃO e das demais concessionárias?

Creio que não. Realmente, não há nenhuma regra que assegure o endosso das passagens perante as demais companhias, mas também não há regra que a impeça.

A hipótese é de um hard case, para lembrar-se a conhecida teoria de RONALD DWORKIN. E quando se está diante de um hard case, utilizam-se os princípios para alcançar a melhor solução, através de método de ponderação, agora valendo-se da doutrina de ROBERT ALEXY.

Para lembrar a célebre obra de KARL LARENZ (Direito Justo), o manejo dos princípios é o mecanismo para adequar o racionalismo do processo interpretativo à necessidade de avançar-se na busca pelo ideal de justiça.

E aqui, o “ideal de justiça” nem é algo que passa apenas pela cabeça do juiz. É algo que está expresso na nossa Constituição: um serviço adequado e eficaz ao usuário do serviço público. Mais ainda, assegurar-se a esses brasileiros que não conseguiram retornar da sua viagem, um tratamento digno (CR, art. 1º, III), o que é um fundamento da república.

Conclusivamente, se a UNIÃO poderia e deveria interromper o serviço público prestado pela VASP, não poderia fazê-lo sem um plano contingencial em relação aos usuários que já haviam contratado o respectivo serviço. Assim fazendo, descumpriu a Constituição e a Lei das Concessões (Lei nº 8.987, de 1995).

Resta, pois, equalisar o direito desses usuários.

Não posso esquecer que a Constituição afirma que são objetivos da república, construir uma sociedade justa, livre e solidária (CR, art. 3º, I).

Nesse ponto, é sabido que o serviço de transporte aéreo não vem sendo executado pela própria UNIÃO, em que pese pudesse fazê-lo por expressa autorização constitucional. É feito através das empresas concessionárias ora requeridas. É elas, pois, que deverão receber os bilhetes válidos expedidos pela VASP até o dia 27 de janeiro de 2005 e fazer o agendamento em igualdade de condições com os seus passageiros.

A solução oferecida pela VARIG, outrossim, não tem eficácia, uma vez que o usuário teria que sistematicamente ir ao balcão do aeroporto e aguardar, após sucessivas chamadas, que haja um acento vago. Tal procedimento, ainda que possa decorrer de boa-vontade da companhia, acaba por violar o princípio da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III).

Porém, tomando como critério o número adotado pela VARIG, qual seja, o de cinco passageiros por aeronave (vôo/horário), autorizo essa limitação.

Os termos do ressarcimento que caberá à UNIÃO será estipulado na sentença, que valerá como título executivo, inclusive compensável com outros créditos a serem definidos na solução da lide.

Assim, concedo a medida liminar e determino às empresas VARIG – VIAÇÃO RIOGRANDENSE S/A, GOL LINHAS AÉREAS INTELIGENTES S/A e TAM LINHAS AÉREAS S/A que recebam e executem os bilhetes válidos emitidos pela VASP até a interrupção das linhas.

(1) Oficiem-se para imediato cumprimento.

(2) Intimem-se, sendo que a parte autora para requerer a citação da VASP, haja vista a possibilidade de a UNIÃO ressarcir-se perante essa companhia aérea.

(3) Atendido, citem-se para responder ao pedido.

(4) Sobrevindo resposta, dela se dê vista à parte autora pelo prazo de dez dias, abrindo o prazo subseqüente de dez dias para que as partes digam se têm provas a produzir.

Porto Alegre, 18 de fevereiro de 2005.

Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia

Juiz Federal da Terceira Vara

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