Crime no Pará

Balas que abateram freira feriram Brasil do governo

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20 de fevereiro de 2005, 9h57

Uma coisa é o país, outra é o Estado. Isso tudo não tem importância sem a nação, sem o povo em geral. O Brasil do governo não conhece direito o Brasil do interior, onde mora grande parte do povo. Só vai lá para arrecadar votos ou impostos. Ou quando pipocam escândalos, violência com morte, como essa da freira americana, a irmã Dorothy Stang, de repercussão internacional. Vivia ela lá na boca do mato, em seus 73 anos, que nem tia Zulmira, macróbia, bem informada, interessada em tudo. Nascida em Ohio, Estados Unidos, quis ser brasileira e assim viveu, em doação plena pela causa dos outros.

É mais com o Fisco e com a força que o Brasil do governo sempre comparece. Por aqui, na banda mais visível, violência urbana, assaltos, seqüestros. No trânsito, à mercê dos sinais, meninos malabaristas em alegorias tristes. Quem anda a pé vai vendo famílias inteiras sem emprego, morando nas calçadas, pedindo esmolas, escascando o lixo nas esquinas, afugentando os ratos nas noites.

Calma, gente, por enquanto é o monetário, mas o social vai ter a sua vez. Ainda temos para cumprir as promessas dos superávits primários, os juros lá em cima como espantalho da inflação, o sufoco tributário, as medidas provisórias. Ainda temos que cuidar todo dia da governabilidade, pagando pelos tijolos de apoio um preço que nem Deus sabe.

Mas precisamos urgentemente levar o Brasil ao interior. Fixar em definitivo a presença das instituições republicanas, a começar pela Justiça. Antes que o crime organizado se estabeleça, criando novos enclaves alternativos. É visível a olho nu a interiorização do crime. É no interior, hoje, que estão as maiores chances de impunidade. Exatamente porque é escancarada a ausência do Estado federal e dos seus agentes da lei.

Sempre que ocorrem horrores como esse da freira, falamos logo em federalização do crime e nos lembramos da Justiça Federal. Era danada a irmã. Não tinha medo, seguia em frente, convicta de seus valores espirituais e sociais. Sabia dos riscos que corria. Uma juíza estadual chegou a pedir ao governo que desse à irmã garantia de vida. Não adiantou nada. Os interesses que ela contrariou foram mais fortes que os deveres do Estado para com as causas que ela defendeu.

As balas que a abateram feriram também, sangrando, o Brasil do governo, que não conhece o Brasil do interior. O Brasil que conta no mapa só pelo que tem de muito território. O Brasil onde se mata e se morre por questões da terra. Não obstante, ainda há, e por longo tempo haverá, muita terra sobrando.

Parafraseando Vinicius, o poeta, os abnegados coleguinhas da Justiça estadual que me perdoem. Mas a interiorização da Justiça Federal -com pelo menos mais 4.000 varas — é fundamental. Uma vara federal leva consigo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Receita Federal; Advocacia Geral da União e Defensoria Pública; Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil; Correios e Internet. Leva progresso. Leva salários e pessoas com nível cultural acima da média local. Planta sementes para o surgimento de uma nova classe média. É com renda e com cultura que se faz a classe média. O Brasil, como está indo, vai ficar sem classe média.

Daí a urgência de interiorizar mais as ações do Estado. Recuperar rios, rodovias, ferrovias. Extinguir municípios que não se sustentam. Fechar prefeituras e câmaras municipais. Construir cidades, portos, aeroportos. Levar a Justiça ao campo. Reforma agrária só haverá se for na lei ou na lei. Nada de na marra ou na marra. Mas como na lei se o Judiciário federal e os demais operadores e os respectivos periféricos não estão por perto?

Neste país continental, com mais de 185 milhões de habitantes, temos hoje menos de 2.000 juízes federais. A maioria deles nas capitais e nas regiões metropolitanas. Temos Estados com milhões e milhões de habitantes e nenhum juiz federal no interior. Quanto à Amazônia, nem se fala.

Falar em Justiça Federal para um país como o Brasil, com esse número ridículo de juízes, não parece sério. Sério mesmo é dizer que pontos do mapa como Anapu, no Pará, onde mataram a irmã Dorothy Stang, é terra sem lei e sem ordem. É elementar, companheiras e companheiros. Onde não há juízes, não há Justiça. Portanto, não há lei. E, onde não vale a lei, vale o bandalho. Resta só o Estado por ninguém e alguns poucos — como a freira — por todos. Não há saída. É matar ou morrer.

*Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 20/2/05

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