PMs condenados

Leia a sentença que condena 10 PMs por crime de tortura em SP

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19 de fevereiro de 2005, 10h21

O fato de uma vítima de violência policial estar sendo processada não altera a importância de suas declarações, que devem ser “a viga mestra da prova” do crime de tortura. Isso porque a “integridade física é um atributo do ser humano e o Estado tem o dever de preservá-la”.

O entendimento é da juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 16ª Vara Criminal de São Paulo, que condenou dez policiais militares de São Paulo a 12 anos e 6 meses de prisão em regime fechado por torturar duas pessoas em fevereiro do ano passado. A condenação é a primeira por tortura em 2005 e com o maior número de réus acusados do crime.

De acordo com os laudos, o casal foi torturado durante quatro horas para que admitissem que tinham maconha. Um dos policiais reconheceu uma das vítimas, Roberto Carlos dos Santos, que meses antes foi flagrado com um cigarro de maconha, mas liberado sob a promessa de pagamento de R$ 6 mil aos policiais. Como ele pagou apenas R$ 1 mil, os policiais resolveram aplicar um castigo nele e em Natacha Ribeiro dos Santos. Dias depois Santos foi encontrado morto na carceragem.

Para Kenarik, as provas oral e pericial derrubam a afirmação da defesa de que as vítimas teriam sido entregues intactas para a delegacia. Também não há, segundo ela, como afastar qualquer um dos policiais do pólo passivo do processo. “Todos agrediram as vítimas”, afirmou. Não há, segundo a juíza, como “saber qual a razão para o Ministério Público concluir que as vítimas praticaram auto-lesão”.

Ela entendeu que as provas são incontestáveis e que Santos e Natacha foram submetidos a “atrocidade que estão no campo de produção de sofrimento físico e mental intenso”. Santos, além de agredido, foi obrigado a rolar em fezes de cachorro e ameaçado de ter sua sobrancelha raspada para que os presos pensassem que seria um estuprador — o que de fato foi feito. Natacha, também agredida, foi ameaçada de estupro pelos policiais, colocada de quatro, surrada nas nádegas e ameaçada ter objetos colocados em seus ânus.

“O que a sociedade espera, porque estabelecido na Constituição Federal, é que policiais militares atuem em sua defesa. Esta espécie de comportamento, praticado por agente do Estado que tem a competência constitucional de preservar a incolumidade das pessoas e preservar a ordem pública, leva ao descrédito da população na ordem democrática”, afirmou Kenarik.

Os policiais foram condenados a reclusão nos termos do artigo 69 do Código Penal. A juíza também os condenou a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício por 25 anos, segundo o artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 9455/97. “Pessoas que praticam tal espécie de atos não estão em condições de exercer tal mister, já que colocam em risco a segurança pública”. O regime fechado foi aplicado de acordo com o artigo 33, parágrafo 2º, “a”, do Código Penal e artigo 1º, parágrafo 7º, da Lei de Tortura.

Leia a íntegra da sentença

Processo: 050.04.040084-0

Controle: 701/04

Vistos, etc.

VITOR MAXIMINO DE MELO, VICENTE DE PAULA TORRES SANTOS, VALDENIR GOMES ARANTES, MÁRCIO ROGÉRIO BUENO DE GODÓI, FREDERICO DOS SANTOS VALÉRIO, ISSA CARON SARRAF, ANTONIO ROBERTO ALVES JÚNIOR, SÉRGIO MARCELINO DA COSTA, PAULO AUGUSTO NOGUEIRA e JEFERSON DOS SANTOS, policiais militares, qualificados nos autos, foram denunciados como incursos no artigo 1º, incisos I, alínea “a”, II e parágrafo 4º, inciso I, da Lei 9455/97, por duas vezes, c.c. o artigo 69, “caput” e 29 “caput”, do Código Penal, porque no dia 24 de fevereiro de 2004, na avenida Nossa Senhora do Sabará e na rua João Ferreira de Abreu, bairro Vila Arriete, agindo em concurso e com identidade de propósitos, no exercício de suas funções, constrangeram Roberto Carlos dos Santos e Natacha Ribeiro dos Santos, com emprego de violência e grave ameaça, como forma de aplicar ao primeiro castigo pessoal, causando-lhes sofrimentos físico e mental, com o fim de obter deles confissão e informação, sendo que as vítimas estavam sob a autoridade deles, todos policiais militares no exercício de suas funções.

Consta da denúncia que a polícia militar foi alertada por um anônimo de que um casal estava comercializando substâncias entorpecentes no cruzamento das referidas vias públicas. Os denunciados Vitor, Vicente e Valdenir, dirigiram-se ao local e em patrulhamento encontraram Roberto Carlos e Natacha no interior do bar sediado no imóvel de número 3336 da avenida Nossa Senhora do Sabará, onde os abordaram, revistaram e teriam encontrado em poder de ambos pequenas porções de cannabis Sativa L. Um dos três reconheceu Roberto Carlos como sendo o indivíduo que, meses antes, surpreenderam na posse de um cigarro de maconha e que deixaram de prender em flagrante mediante promessa de pagamento de R$ 6.000,00, dos quais apenas R$ 1.000,00 foram efetivamente pagos por Roberto Carlos, que se furtou ao pagamento do restante. O policial alertou seus comparsas e juntos resolveram castigar Roberto Carlos por sua inadimplência, submetendo-o e sua companheira Natacha a sevícias.


Os três conduziram as vítimas ao imóvel de número 73 da rua João Ferreira de Abreu, onde funcionou um lava-rápido. No trajeto as vítimas foram agredidas fisicamente, desferindo socos e pontapés contra Roberto Carlos e puxando os cabelos de Natacha. Neste imóvel os três mencionados, a partir de então agindo em concurso com Márcio, Frederico e Issa, que diante de uma solicitação de apoio dos primeiros dirigiram-se ao local e aderiram ao comportamento criminoso. Todos eles, em conjunto, substituindo-se mutuamente, de modo alternado e sucessivo, puxaram os cabelos de Natacha e desferiram-lhe tapas na face, bem como desferiram socos contra Roberto Carlos, direcionados principalmente a seu abdômen e chutes contra suas pernas, fazendo-o não somente para vingarem-se deste último, mas também para que ambos admitissem a posse de mais substâncias tóxicas e revelassem o lugar onde se encontrava. As sevícias perpetradas no antigo lava-rápido perduraram até a chegada do morador. Os denunciados conduziram os ofendidos ao imóvel de número 330 da mesma rua, onde residiam as vítimas; a partir de então, passaram a agir em conjunto com Antonio Roberto, Sérgio Marcelino, Paulo Augusto e Jeferson, que diante de uma solicitação de apoio daqueles, dirigiram-se ao local e aderiram ao comportamento criminoso e deram continuidade às agressões.

Em sistema de revezamento, alguns dos denunciados procuravam a droga, outros seviciavam as vítimas. Desferiram pontapés e socos contra Roberto Carlos, principalmente em seu abdômen, onde tinha tatuado o símbolo do “Esporte Clube Corinthians Paulista”, queimaram-lhe com cigarro, raparam-lhe a sobrancelha com o uso de uma lâmina de barbear, sob a ameaça de que, sem sobrancelha, ele seria identificado como estuprador por aqueles com quem habitaria no cárcere e, em conseqüência, seria seviciado e, obrigaram-no a esfregar fezes de cachorro contra as próprias nádegas. Desferiram inúmeros tapas, socos e pontapés contra Natacha, bem como lhe infligiram violência moral. Frederico, contando com o apoio moral dos demais, abriu o zíper de suas calças e ameaçou Natacha, dizendo-lhe que teria de chupar seu pênis, bem com desferiu golpes com cabo de vassoura contra suas nádegas. Márcio Rogério obrigou Natacha a colocar-se “de quatro” no chão e ameaçou estuprá-la e introduzir um cabo de vassoura e uma garrafa de cerveja em seu ânus. Estrangulou-a com uma coleira metálica de cachorro, que também usou para desferir golpes contra suas nádegas. Antônio Roberto, igualmente apoiado pelos demais, desferiu um golpe com um pedaço de madeira contra o joelho de Natacha. Jéferson desferiu um soco no maxilar de Natacha enquanto Vítor, Paulo Augusto, Vicente e Valdenir desferiram-lhe diversos tapas na face, tudo isto com total apoio dos demais.

A violência física e moral perdurou, por cerca de cinco horas, até que os policiais teriam encontrado dois tijolos de maconha, após o que conduziram as vítimas até o 99º Distrito Policial sendo constatado que os denunciados produziram lesões corporais, além de intenso sofrimento físico.

A denúncia foi recebida por decisão datada de 28 de maio de 2004 (fls. 353/359), ocasião em que foi decretada a prisão preventiva dos réus, bem como determinada a remessa de cópia dos autos para o Sr. Dr. Procurador Geral de Justiça, uma vez que o Ministério Público não denunciou a delegada Maria Solange Valone, o que foi feito nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal, para eventual oferecimento de denúncia contra esta autoridade policial, que sobreveio a fls. 981/982, cujo recebimento se deu a fls. 1038.

Os acusados foram interrogados (fls. 493/515 e 517/535); a defesa manifestou-se nos termos do artigo 395 do Código de Processo Penal (fls. 578/579) e foi produzida prova oral (fls. 584/673, 893/907 e 918/920) e pericial (fls. 156/157, 163/164, 329/341, 990/992, 1035/1036 e 1048/1052).

Ultrapassada a fase do artigo 499 do Código de Processo Penal, as partes apresentaram alegações finais, requerendo o Ministério Público a absolvição nos termos do artigo 386, incisos II, III e IV do Código de Processo Penal. O Defensor apresentou o mesmo pedido, pelos mesmos fundamentos e também pelo artigo 386, inciso I, do mesmo código.

É o relatório.

DECIDO.

A ação é procedente.

A prova é segura e firme para embasar o decreto condenatório em relação a todos os acusados, havendo certeza quanto à existência do fato, que se consubstancia no crime de tortura, tal como narrado na denúncia, não havendo dúvida que todos os acusados concorreram com a infração penal.

Os réus negaram a prática do delito. Todos admitiram que participaram de diligências que culminaram com a prisão das vítimas, mas disseram que não as torturaram.

O acusado Vítor afirmou que Valdenir recebeu a denúncia anônima de tráfico de entorpecentes com descrição dos dois agentes, razão pela qual dirigiu-se ao local acompanhado dos policiais Vicente e Valdenir. Entraram no bar por volta das 15:00 horas e lá estavam as duas vítimas. Roberto Carlos se identificou como proprietário da motocicleta que segundo a denúncia anônima era utilizada pelo traficante. Levou os dois para fora do estabelecimento e encontrou algumas porções de maconha com Natacha e também com Roberto Carlos. Deu voz de prisão aos dois e os levou a um lava-rápido, que segundo a denúncia era o lugar onde o casal guardava droga e que fica na mesma rua do bar, em distância aproximada de cinqüenta metros. No caminho do lava-rápido encontrou-se com um civil chamado Sandro, que é do Conseg, que lhe noticiou o furto que tinha sofrido. Os policiais Márcio, Frederico e Issa chegaram ao local, pois tinha sido solicitado apoio. Realizaram buscas no lava-rápido e o proprietário chegou pouco depois. Permaneceram neste imóvel por cerca de dez a quinze minutos. Resolveram dirigir-se à casa de Roberto e Natacha, que fica na mesma rua. Nesta altura outra viatura já estava no local e tinha como componentes os acusados Antonio, Sérgio, Paulo e Jeferson. A vítima Roberto prendeu seus dois cachorros e acompanhou a revista realizada na residência, enquanto Natacha permaneceu na parte de baixo da casa. Entraram na residência, e os policiais Antonio e Frederico permaneceram na segurança da viatura. Encontrou dois tijolos de maconha no assoalho e levaram as vítimas ao distrito policial, onde chegaram por volta das 17:00 horas. O acusado Vicente preencheu o cadastro da polícia militar para identificação dos presos, enquanto fazia apresentação da ocorrência para a autoridade. Apenas os componentes de sua equipe estiveram na delegacia e depois foram ao IML para realização de exame de constatação no entorpecente. Os demais policiais não estiveram na delegacia. No trajeto até o distrito Roberto Carlos pediu para que não fosse levado ao 99º distrito policial, pois havia presos com quem tinha brigado e que poderiam matá-lo, sendo que comunicou esse fato para a delegada. Afirmou que entregou as duas vítimas sem qualquer lesão para a autoridade policial e ele não estava sujo de fezes. Não constrangeu nenhum dos dois, não fez uso de violência ou grave ameaça e nem impôs sofrimento físico e mental, assim como não exigiu dinheiro de qualquer pessoa para que não fosse realizada a prisão. Confirmou que Roberto Carlos tinha tatuagens na barriga e no braço e a sobrancelha não estava raspada (fls.494/497).


No mesmo sentido a versão dos demais policiais, que apresentaram a mesma narrativa. Asseveraram que as duas outras equipes que atenderam a ocorrência e prestaram apoio para a equipe do policial Vitor foram acionadas através de telefone celular particular e não através do rádio da polícia militar (fls. 498/511 e 521/535).

O acusado Frederico asseverou que todos os policiais entraram na casa das vítimas com exceção a ele e o acusado Antonio Roberto, sendo que conversou com o policial chamado Figueiredo e um outro, cujo nome desconhece, que são da 6ª Companhia e não tiveram nenhuma participação na diligência, apenas passaram pelo local. Não teve nenhum contato com pessoa que fosse do Conseg, mas teve notícia que esta pessoa esteve no local, antes de sua chegada (fls. 512/515).

O acusado Antonio Roberto também disse que permaneceu do lado de fora da casa das vítimas (fls. 507/520).

Mas a prova oral colhida derruba a versão apresentada pelos réus. A tentativa de afastarem qualquer responsabilidade sobre as lesões encontradas nas vítimas, afirmando que elas foram entregues intactas para a delegada, sem qualquer lesão, cai por terra diante da convicção que a prova nos fornece.

Não é verdadeiro, como querem fazer crer os acusados, que entregaram as vítimas para a delegada de polícia do 99º Distrito Policial sem lesões. A autoridade policial que lavrou o auto de prisão em flagrante não praticou os atos que provocaram as lesões corporais encontradas nas vítimas.

A vítima Natacha, sob o crivo do contraditório, reconheceu todos os acusados. Afirmou que estava no bar quando os policiais chegaram e realizaram uma vistoria no estabelecimento. Um dos policiais falou para o outro que seu marido era a pessoa que não fez o pagamento. Foram levados para um lava-rápido a pé, puxada pelos cabelos e pelo colarinho e perguntavam sobre drogas. Em seguida chegou o proprietário e foi levada para sua casa, sendo agredida nos dois trajetos. Antes de entrar em sua residência, Roberto Carlos prendeu os cachorros. Os policiais vistoriaram a casa e fizeram ameaças, batiam em ambos, falavam que iam estuprá-la e tiraram sua roupa. Pegaram um pedaço de madeira e disseram que iam introduzir em seu corpo. Foi levada para a lavanderia, enquanto permaneceram com Roberto no quarto de cima e ouvia que ele gritava. Colocaram uma camiseta em sua boca para que não gritasse e bateram em seu estômago, chegando a vomitar sangue. Foi agredida com a corrente do cachorro. Tiraram a parte de baixo de sua roupa. Os réus fizeram Roberto Carlos “passar merda de cachorro na cueca dele, ele chegou todo sujo, rasparam a sobrancelha dele”. Os policiais disseram que estavam raspando a sobrancelha para dizer aos presos da delegacia que ele tinha praticado estupro. Foi agredida nas nádegas com um pedaço de pau e com a corrente do cachorro e estes atos foram praticados pelos acusados Vitor e Márcio, sendo que o primeiro fazia uso da madeira e Márcio chicoteava as nádegas com a corrente do cachorro. Em dado momento mandaram que sentasse no sofá e o acusado Vitor abriu a calça e “falou que eu ia chupar ele”. Ficou machucada no rosto, nas nádegas, nos braços. Enquanto permaneceu “de quatro”, com a mão algemada, os acusados lhe chutavam, batiam ou faziam graça. Viu os policiais batendo no abdômen de Roberto, região que ele tinha a tatuagem do Corinthians e ainda no fígado e nas costas. Roberto foi pisoteado. Na delegacia ficou na mesma sala que o companheiro e viu a sobrancelha raspada, a roupa suja. Inclusive um policial do 99º D.P. deu papel higiênico para ele se limpar, auxiliado pela Dra. Cláudia. Afirmou que nenhum dos policiais civis a agrediu. Depois que foram apresentados chegou a Dra. Cláudia e ela exigiu os exames na presença da corregedoria. Roberto Carlos só foi levado para a carceragem no dia 25. Quando eram agredidos um dos policiais falou que o motivo da agressão era ter “dado um chá de canseira neles” e perguntavam sobre drogas. Roberto Carlos confirmou que tinha feito um acerto com os policias e que se arrependia de não ter arrumado o dinheiro para eles. Em dezembro ele foi abordado com um cigarro de maconha e disseram que ele iria para a cadeia caso não fizesse o pagamento. Roberto Carlos deu R$ 1.000,00, mas não pagou o restante (fls. 630/653).

A testemunha Claudia Apolônia Barbosa, que é advogada, soube dos fatos através de sua mãe, que é vizinha da vítima. Esteve na delegacia e teve contato com Roberto e Natacha, oportunidade que soube através de Roberto que ele “tinha apanhado muito, que tinham raspado a sobrancelha dele, que a casa dele estava toda quebrada… bateram muito nela”. Roberto lhe informou que estava “sujo de cocô de cachorro”, pois o obrigaram a sentar nas fezes do animal. Ajudou-o a limpar o corpo e o carcereiro Itamar providenciou um rolo de papel higiênico para que isso fosse possível. Os próprios carcereiros disseram para que ela pedisse um exame de corpo de delito. Ficou abalada por ter visto toda aquela sujeira e foi falar com a autoridade policial. Pediu para ela a realização do exame porque eles estavam aparentemente machucados, quando a delegada lhe disse que não podia fazer nada.Retorquiu, dizendo que chamaria a corregedoria, o que foi feito. Saiu da delegacia por volta das 03:30 horas do dia 25 de fevereiro e viu os policiais que apresentaram a ocorrência, pois eles chegaram à delegacia com o laudo de constatação e o tenente ficou bastante alterado quando soube que o casal tinha sido levado para o IML. Confirmou que Roberto Carlos estava sem a sobrancelha do lado direito e o lado esquerdo da face estava machucado. Depois de ter se retirado da delegacia, recebeu um telefonema e os policiais civis pediam para que voltasse para que esclarecesse se era verdade que o policial militar teria dito que aquilo tinha acontecido dentro da delegacia, confirmou que um dos policiais militares lhe disse que tinha deixado as vítimas intactas, porém falou para o policial civil que sabia que eles não tinham feito nada e que se precisassem dela poderia confirmar. Esteve na casa das vítimas para pegar roupas e retirar os cachorros e nessa oportunidade a perícia não tinha sido realizada. Acompanhou os peritos e posteriormente, após a morte de Roberto Carlos, ouviu a oitiva de Natacha perante uma outra autoridade policial, oportunidade que ela pôde dizer como ocorreram as agressões. As duas vítimas estavam com lesões no rosto. Soube que o doutor Cláudio, a quem chamou para permanecer consigo na delegacia, já que nunca tinha passado por situação semelhante, lhe disse que ao conversar com Roberto ele mencionou que tinha sido abordado por policiais com quem fez um “acerto”, mas não honrou o mesmo, razão pela qual os policiais o agrediram, bem como a Natacha. Finalmente reconheceu os acusados Vitor, Valdenir e Vicente como os policiais que apresentaram a ocorrência na delegacia (fls. 584/613).


A testemunha Alex Sandro da Silva encontrava-se na lanchonete onde as vítimas se encontravam no momento da abordagem inicial. Foi revistado como as duas vítimas e não viu apreensão e qualquer coisa. Depois os policiais perguntaram pela motocicleta que estava estacionada em frente e Roberto se identificou como proprietário. A partir de então não ouviu o que eles conversaram com Roberto. Viu que um policial deu um tapa em Natacha, bem como dois policiais militares darem os socos na região do abdômen de Roberto, quando ele estava sendo levado para o lava-rápido. A abordagem foi feita por três policiais, mas na seqüência compareceu uma outra viatura e eles pegaram a vítima e levaram para o lava-rápido do Hélio, que fica a uns vinte ou trinta metros do bar. Foi liberado e retirou-se do local e depois passou novamente e viu que havia duas viaturas estacionadas em frente à casa de Roberto Carlos (fls. 622/629).

A testemunha Valdir Freitas Cavalcanti é o proprietário do estabelecimento onde as vítimas foram abordadas. Assegurou que uma viatura da polícia estacionou um pouco mais adiante do bar, por volta das 15:00 horas. Três policiais militares realizaram a diligência. Eles revistaram Alex, Natacha e Roberto Carlos. Não viu apreensão de entorpecente e os policiais saíram do bar junto com as vítimas e conversaram com Roberto, mas não ouviu o que eles diziam, pois continuou dentro do bar. Os policiais saíram com o casal e não viu o que ocorreu, pois havia uma parede que tapava a sua visão e não sabe se eles foram colocados dentro da viatura ou se seguiram a pé para algum lugar (fls. 905/907).

A testemunha Hélio H. Mishimura, proprietário do lava-rápido, afirmou que chegou no local e viu duas viaturas paradas.Conversou com o policial que estava do lado de fora. O policial entrou, logo em seguida saiu e liberou para que entrasse em seu imóvel. Os policiais saíram com Roberto e Natacha e caminharam em direção à residência das vítimas, que é próximo do imóvel, mas não sabe informar se eles foram a pé ou se foram colocados em uma viatura. Não se recorda da fisionomia dos policias, mas acredita que eram cerca de oito a dez e eles na pediram para revistar a sua casa, que fica no mesmo espaço do lava-rápido. Esclareceu que as duas viaturas obstruíram a visão de quem passava pela rua, pois eram duas e estavam estacionadas em frente da casa. Não viu a prática de nenhuma agressão contra as vítimas (fls. 615/621).

A testemunha Adauto Rosa, que trabalha no 99º D.P., estava de plantão no dia da prisão das vítimas e recebeu os dois e os deixou em um quarto para que fossem depois ouvidos. Levou Roberto e Natacha para o IML, de noite, acompanhado do policial André Luiz. Viu que o rosto de Roberto Carlos estava inchado e as sobrancelhas pareciam que estavam raspadas, mas o rosto estava muito inchado e não dava para notar muito. Roberto Carlos estava cheirando muito mal e o carcereiro deu papel para que ele se limpasse. No caminho do IML as vítimas comentaram que tinham sido agredidas e Roberto falou que fizeram que ele rolasse nas fezes do cachorro. Não houve nenhuma agressão na delegacia e esclareceu que eles foram colocados separados dos demais presos, para que não tivessem qualquer contato e dali foram levados para o IML. Ouviu na delegacia que Roberto estava cheirando mal, pois tinham jogado fezes nele. Não conversou muito com as vítimas e inclusive evitou ter essa conversa (fls. 654/663).

O investigador de polícia André Luiz da Paixão estava no plantão quando as vítimas foram trazidas pelos policiais militares. Afirmou que Roberto Carlos estava com o rosto inchado, não se recorda se ele tinha a sobrancelha raspada. Natacha reclamava que estavam caindo os cabelos dela, pois tinham puxado o mesmo. Levou o casal para o IML e os dois reclamaram que tinham sido agredidos antes de chegar na delegacia. Não se recorda do horário que levou os dois para o IML. Quando os dois chegaram no distrito pensou que eram indigentes, pois ele estava sujo e Roberto disse que tinha fezes de cachorro noi corpo. Ele não deu detalhes das agressões e Natacha era que falava mais. Foi ela que disse que foram pegos no bar e levados para casa, que foi revistada e as agressões, com socos e empurrões, ocorreram na própria residência das vítimas. Afirmou que o casal permaneceu numa sala fechada e quando retornaram do IML permaneceram nessa mesma sala, pois era noite e não podiam abrir a cadeia. Só depois que amanheceu é que podiam colocar Roberto Carlos com os demais presos. A advogada que esteve na delegacia foi quem avisou a corregedoria (664/673).

A testemunha Sandro A. Gallego é a pessoa referida pelos acusados que veio noticiar o furto de sua motocicleta. Informou que conhecia os policiais Vicente e Valdenir e na data dos fatos, por volta das 09:00 ou 10:00 horas, viu uma viatura da polícia militar quase em frente ao bar e conversou com Valdenir para lhe informar sobre o furto de sua moto e nesse instante o acusado Vicente estava com outro policial e viu que eles fizeram revista em um rapaz. A vítima Roberto Carlos estava em pé na porta do bar e Natacha sentada do estabelecimento. Foi para sua casa e passados vinte minutos verificou que havia uma segunda viatura no local. Dirigiu-se para suas atividades e só retornou de noite. Permaneceu na calçada, conversando com o policial, no máximo por cinco minutos (898/899).


O carcereiro Roberto Teixeira Pistelli afirmou que não viu quando Roberto Carlos e Natacha chegaram na delegacia, mas na manhã seguinte os encontrou em uma sala separada e não tinham sido levados para a carceragem, pois não abrem as celas após as 20:00 horas. Fez a revista de praxe em Roberto Carlos, que praticamente não conversou com o depoente. Não viu nenhuma lesão em Natacha (fls. 900/901).

A testemunha Fabiano conhece os acusados, pois estão designados no mesmo batalhão da polícia militar. Na data dos fatos, por volta das 20:00 horas, a Corregedoria da Polícia Militar entrou em contato e informou que uma advogada dizia que os dois detidos tinham sofrido lesões corporais por parte dos policiais militares. Esteve no 99º D.P. e viu as vítimas à distância e, portanto, não tinha condições de notar se havia alguma lesão corporal no casal. Conversou com o policial Vitor e permaneceu no distrito por cerca de dez minutos. Deu referência sobre os aspectos profissional e pessoal dos réus, dizendo que todos têm excelente reputação. Ressaltou que teve contato maior com o acusado Vitor, que é pessoa excelente nesses dois aspectos e também com os acusados Jeferson, Issa, Sérgio, Frederico e Valdenir, pois trabalhou na mesma viatura que eles, com quem muito aprendeu (fls. 902/904).

O policial Leonilson Figueiredo Dias asseverou que se encontrava em patrulhamento e passou pela rua João Ferreira de Abreu, quando avistou duas viaturas que se encontravam paradas. Falou com os acusados Frederico e Antonio, perguntando se tudo corria bem, e recebeu resposta afirmativa. Não viu os demais acusados e prestou informações sobre os antecedentes de Frederico e Antonio, que são pessoas corretas e honestas. Não fez qualquer pergunta sobre a diligência que era realizada aos dois policiais (fls. 918/920).

A testemunha Marcelo Salomão, policial militar, informou que conhece todos os réus, pois estão designados no mesmo batalhão e deu informações sobre a boa conduta dos réus, que são pessoas de sua inteira confiança e a quem considera pessoas íntegras, de bom trato e nunca recebeu reclamações referente à conduta dos acusados. Indicou Sérgio Marcelino, Márcio Rogério e Issa para comporem a força tática, tendo em vista os predicamentos que eles possuem (fls. 896/897).

A testemunha Michel Marchi Filho, comandante do batalhão onde estão designados os acusados, informou que havia diversas denúncias de tráfico de entorpecente e os réus realizaram diligências referentes a estas, culminando com a prisão em flagrante de Roberto. Asseverou que os acusados são excelentes policiais, de altíssima confiança e jamais praticariam os atos descritos na denúncia (fls. 893/895).

Embora seja comandante de um Batalhão da Polícia Militar, não soube dar qualquer esclarecimento acerca do documento de fls. 284, que conforme esclarecimentos prestados documentalmente pelo Tenente Coronel chefe do COPOM, Altino José Fernandes, indica o procedimento padrão do Centro de Operações ( fls. 932/933, 1007).

Constatamos pelo referido documento que às 17:20 horas ocorreu o despacho da ocorrência para a viatura do policial Vitor para diligência de denúncia de tráfico de entorpecente. O mesmo documento indica que houve uma reiteração de denúncia referente ao local às 18:01:58, constando da notícia levada para o COPOM que o solicitante informa que há viatura no local agredindo indivíduos ( sol inf vtr no local agredindo indvs.)

O Copom não foi informado sobre as diligências realizadas. Os réus chegaram no local por volta das 15:00 horas e a notícia só veio por denúncia telefônica ao Copom às 17:20, quando despacha a ocorrência para a viatura do policial Vitor, que já estava no local.

O Boletim de Ocorrência da Policia Militar foi entregue no batalhão no dia 25 de fevereiro de 2004, às 14:00 horas, conforme fls. 995/996 dos autos e indica que o fato teria ocorrido às 17:00 horas, o que contraria a prova produzida, pois todos os acusados disseram que chegaram ao local por volta das 15:00 horas, fato confirmado pela vítima e pela testemunha Valdir.

Naquele momento Roberto Carlos ainda estava vivo e não se averiguava a tortura.Porém, quando os policias foram ouvidos na Corregedoria da Polícia Militar, alteraram o horário dos fatos, dizendo que estiveram no local por volta das 15:30 horas e por certo este dado seria comprovado através do rastreamento do telefone celular, já que não havia registro algum no Copom de pedido de apoio e os policias fizeram uso de telefones pessoais para solicitar que os outros fossem ao local.

Outrossim, há que se observar que os documentos apresentados pelos policiais, no dia seguinte à prisão, estão com rasuras. O relatório PTM da viatura em que estavam os policiais da mesma equipe de Jéferson aponta que a diligência do tráfico de entorpecente teve início às 17:15 horas e a quantidade de entorpecente está rasurada ( fls. 997v); o relatório PTM dos policiais Vitor, Valdenir e Vicente tem rasura do horário, no campo de abordagem de veículo de Roberto Carlos dos Santos e no campo de abordagem de pessoas, que teria ocorrido às 17:00 horas, observando que a diligência anterior desta equipe ocorreu horas antes, às 13:00 horas ( fls. 998); o relatório PTM dos policias Issa, Frederico e Márcio registrou abordagem da vítima Roberto Carlos às 19:00 horas.


Esta é a síntese das informações trazidas pela prova oral.

Vejamos a prova técnica.

O laudo realizado na casa das vítimas indica que o local não estava preservado nos termos da legislação processual penal, como lamentavelmente acontece de forma rotineira. Já se tornou usual na leitura de laudos de local dos fatos a preliminar dos peritos indicando a falta de cuidado com a preservação. No caso em tela, não poderia ser de outra forma, pois sequer o crime de tortura estava sendo apurado. O que se investigava era exclusivamente o crime de tráfico de entorpecente. Somente com a morte de Roberto Carlos é que surge a apuração da tortura, mas ainda assim, os peritos apresentam descrição do local e fornecem dados importantes para o deslinde da causa. Eles encontraram os cômodos com objetos espalhados, os conteúdos dos armários revirados; havia objetos espalhados e amontoados pelo piso; os objetos estavam remexidos ( fls. 330/336).

Estas características indicam que a casa foi revistada, como os policias afirmaram, como fornece elementos que vêem de encontro com a prova oral, dando maior fidedignidade a ela.

Ressalte-se que foi encontrado um aparelho de barba, sobre o piso da pia, com diversos fragmentos de pêlos, com características dos encontrados em humanos e no mesmo ambiente os peritos verificaram, maculando o piso reservado do boxe, uma mancha de substância com característica hematóide, o que se compatibiliza com as informações que constam nos autos no sentido de que Roberto Carlos teve a sombrancelha raspada e que desferiram inúmeros socos no abdômen de Roberto, que chegou a vomitar sangue, segundo Natacha ( fls. 332).

Os peritos chegaram a encontrar o cabo de vassoura quebrado e a parte faltante deste cabo estava em um outro cômodo. Natasha disse que um dos policias deu golpes em suas nádegas com um cabo de vassoura (fls. 334).

Mais, os peritos encontraram as duas garrafas de cerveja e Natacha asseverou que um dos policiais disse que colocaria a garrafa em seu ânus (fls. 333) .

Ainda, os peritos foram até a lage e neste local constataram fezes de animais depositados no piso, recordando que a prova indica que Roberto Carlos disse aos policiais, a Natacha e Dra. Claudia que foi obrigado a rolar nas fezes do cachorro e como comprovado, ele chegou na delegacia cheirando mal e inclusive tiveram que dar papel higiênico para ele se limpar (fls. 334).

O laudo pericial realizado na vítima Natacha comprova que as agressões ocorreram justamente na forma como ela narrou. O exame de corpo de delito indica que ela tinha hematoma em nádega direita e em braço esquerdo; edema periorbitário direito e esquerdo; edema traumático em região cervical à esquerda; hematoma em hemiface à esquerda; hematoma em ambos os joelhos; hematoma em ambos os antebraços; e os peritos notaram queda de cabelos em região frontal à esquerda (fls. 1035).

A vítima prestou narrativa minuciosa sobre a forma como foi perpetrada a violência física contra a sua pessoa e contra Roberto Carlos, como se confere do relato acima. Ao relatar as agressões que sofreu afirmou que foi puxada pelos cabelos, foi agredida na nádega, teve que ficar “de quatro”, levou tapas no rosto e um soco na face. Essa descrição coincide de forma perfeita com a descrição das lesões apontadas pelos peritos.

A posição que Natacha teve que permanecer, ou seja, “de quatro”, explica a existência dos hematomas nos joelhos e nos antebraços. Os hematomas nas nádegas vêm de encontro com a afirmativa de que foram desferidos golpes nesta parte de seu corpo, seja utilizando a coleira metálica do cachorro, seja com o cabo de vassoura. O edema periorbitário e o hematoma na hemiface são provenientes dos tapas e do soco que Natacha sofreu. Ainda, Natacha afirmou que foi puxada pelos cabelos e o perito notou que em região frontal havia queda dos cabelos, fato por ela referido aos peritos.

O policial André Luis asseverou que Natacha reclamava que seus cabelos estavam caindo, pois foi puxada pelos cabelos pelos policiais militares.

A harmonia entre o relato da vítima e o laudo de exame de corpo de delito é absoluta.

Em relação à narrativa das agressões físicas sofridas por Roberto Carlos, a prova pericial se harmoniza, igualmente, com a prova pericial.

Natacha explicou as agressões sofridas por Roberto Carlos. Disse que os policiais queimaram Roberto com cigarro. Os réus deram muitos socos, pontapés e empurrões em Roberto Carlos, o que foi visto parcialmente pela testemunha Alex, que viu os policiais dando socos no abdômen de Roberto, no trajeto do bar até o lava-rápido. Outrossim, os policiais civis que viram Roberto chegar na delegacia e o levaram até o IML confirmaram que ele estava com o rosto inchado e o policial Adauto viu que a sobrancelha dele estava raspada. Ambos disseram que ele cheirava mal. André chegou a pensar que o casal eles fosse indigente. As duas vítimas disseram que Roberto Carlos estava sujo de fezes de cachorro, já que os policiais o obrigaram a rolar nas fezes dos cães.


O exame pericial realizado na vítima Roberto Carlos, na noite dos fatos, constatou que ele possuía escoriações em ambos os joelhos; escoriações lineares em antebraço direito; edema traumático em região parietal esquerda; edema traumático com hematoma em região parietal em região cervical esquerda; edema traumático em mão esquerda; sinais de queimadura compatível com queimadura de cigarros em antebraço esquerdo; hematoma em região supraorbitrária à esquerda; escoriações em hemiface à direita ( fls. 1036).

Roberto Carlos veio a falecer na manhã do dia 26 de fevereiro e não foi produzida prova que a morte foi conseqüência direta da tortura, das lesões causadas pelos réus.

O laudo necroscópico indica que Roberto Carlos morreu por outra causa, qual seja, asfixia mecânica, por obstrução de vias aéreas devido à ação de agentes físicos. A asfixia ocorreu por oclusão das vias respiratórias (fls. 1048/1050).

Observo que foram encontradas queimaduras de cigarro no corpo de Roberto, o que se coaduna com a afirmativa de Natasha que asseverou que os réus o torturaram desta forma.

As lesões eram aparentes, o que não significa que todas eram visíveis, tendo em vista a parte do corpo que se encontra coberta pela vestes.

Já observou o Procurador Geral de Justiça, Dr. Rodrigo César Rebello Pinho, referente ao protocolado 60.002/04, referente a estes autos, em manifestação nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal, referente à autoridade policial que autuou as vítimas em flagrante delito:

“Contudo, compulsando as provas coligidas, parece-nos que oferecimento da denúncia, pelo artigo 1º, § 2º, da Lei 9455/97, se impõe.

Com efeito, o estado físico e o aspecto com que as vítimas foram levadas à delegacia de polícia, deveria ter feito a autoridade policial ter tomado providências diretas e efetivas para apuração das torturas” .

Portanto, desde a data do fato, já havia elementos de constatação de agressão, tendo em vista o estado físico das vítimas e o relato que tentaram apresentar para a autoridade policial.

Repita-se, algumas das lesões não eram perceptíveis no momento que estavam vestidos, mas outras não. O rosto inchado de Roberto Carlos e a sombrancelha raspada era evidente. Aliás, os peritos também indicaram “depilação nas regiões palpebrais – sombrancelhas” ( fls. 326 do apenso).

Não há como acolher o pedido do Ministério Público e da Defesa, pois a prova é robusta e nos dá certeza da materialidade e autoria delitiva.

Além do relato da vítima Natacha, temos a prova pericial, que se harmoniza com o relato por ela prestado desde o primeiro momento. Ela tentou esclarecer para a autoridade policial como as agressões ocorreram e por exigência da advogada foi realizado o exame pericial que indicou a espécie de lesões corporais que apareciam no corpo das duas vítimas; o relato dos policiais civis deixa evidenciado que Roberto Carlos foi apresentado com o rosto inchado, sombrancelha raspada e com mal cheiro. Os dois ouviram as vítimas dizer que sofreram agressões por parte dos policiais e foram unânimes em dizer que nenhuma das vítimas teve contato com outros presos, na medida que ficaram em uma sala em separado, de lá foram levados para o IML e só na manhã seguinte aos fatos é que Roberto Carlos foi colocado na carceragem; a testemunha Dra. Claudia, confirma que viu lesões nas vítimas e eles narram que foram agredidos pelos policiais militares que realizaram a prisão; ainda, a testemunha Alex chegou a ver o momento que deram tapa em Natacha e soco em Roberto Carlos. Acrescente-se que havia notícia no Copom de indivíduos sendo agredidos no local dos fatos; o laudo de exame de corpo de delito indica que as duas vítimas sofreram lesões corporais; o laudo pericial confirma que Roberto Carlos estava com a sombrancelha raspada e o laudo do local fornece descrição compatível com o relato de Natasha.

Não há como afastar quaisquer dos policias do polo passivo. Todos agrediram as vítimas. Natacha foi segura em esclarecer o que todos os policiais militares fizeram. Reconheceu todos os réus e ofertou declaração segura e firme, sem contradições com o que consta dos autos e o que disse em outras esferas, seja na polícia civil, como na polícia militar.

A alegação dos acusados no sentido de que os policiais Antonio e Frederico não entraram na casa da vítima, não encontra guarida. Natacha explicou como a sessão de tortura foi realizada, tal como consta da denúncia. Eles atuavam em sistema de revezamento e todos lhe agrediram. Alguns praticaram atos mais específicos, como bater em suas nádegas com pedaço de pau; golpes com a coleira metálica do cachorro; mostrar o pênis e dizer que teria que “chupá-lo”; ameaçá-la de introduzir a vassoura em seu ânus, etc…,mas estes atos tinham a adesão dos demais, estavam atuando de forma conjunta, aderindo à vontade do outro, tratando-se , pois, de prática criminosa coletiva.


O fato do policial Leonilson Figueiredo ter visto os policiais Antonio e Frederico nas duas viaturas, não permite concluir que eles não tenham agredido as vítimas, pois os atos perduraram por cerca de quatro horas e Leonilson ficou pouquíssimo tempo no local, não viu os demais acusados e nem soube qual era a diligência que realizavam. Apenas viu os dois e perguntou se tudo estava bem e se retirou. Portanto, coisa de minutos.

A testemunha Valdir, dono do bar, também não viu as agressões, mas atente-se para o fato que ele não viu sequer como as vítimas foram levadas do local, à pé ou de viatura, já que não tinha visão, por conseguinte, não poderia mesmo ter visto qualquer agressão.

Outrossim, a testemunha Helio, dono do lava-rápido não presenciou as agressões e esclareceu que o policial com quem conversou, e que estava do lado de fora, entrou no seu imóvel e em seguida saiu e o local foi liberado. Assegurou que as viaturas não permitiam que visse o que ocorria no local, pois tapavam a visão e os policiais saíram em seguida com as vítimas.

O delito de tortura esta caracterizado, nas duas formas descritas na denúncia, ao contrário do afirmado pelo Ministério Público e Defesa.

O Ministério Público alega que as lesões apresentadas nas vítimas são decorrentes de auto-lesão.

As duas vítimas asseguraram para a advogada que as lesões foram praticadas pelos policiais militares; constou sucintamente no auto de prisão em flagrante que as vítimas disseram que foram agredidas; o Ministério Público, pelo Procurador Geral de Justiça afirma que “o estado físico e o aspecto com que as vítimas foram levadas à delegacia de policia, deveria ter feito a autoridade policial ter tomado providências…”; os policiais civis esclareceram que as vítimas foram colocadas em sala separada e de lá levadas para o IML, quando realizado o laudo pericial que atesta as lesões corporais encontradas; a vítima afirma que foi agredida severamente pelos réus antes de chegar na delegacia; os policiais civis afirmam que as vítimas disseram que foram agredidas pelos policiais; o exame de corpo de delito realizado em Natasha e Roberto Carlos, no dia dos fatos, indica que as lesões coincidem com a narrativa de Natacha; há testemunha civil que viu os policiais darem socos em Roberto e tapas em Natasha.

Diante deste quadro é impossível saber qual a razão para o Ministério Público concluir que as vítimas praticaram auto-lesão.

A importância das declarações da vítima são de suma importância nesta espécie de delito, como o são nos crimes praticados na clandestinidade, como comumente são os delitos sexuais. Neste delito, se deve atribuir à palavra da vítima a viga mestre da prova, ela é o principal objeto de prova. O fato de estar sendo processada em nada altera este quadro, pois a integridade física é um atributo do ser humano e o Estado tem o dever de preservá-la.

Não pudemos ouvir as duas vítimas, pois uma delas veio a falecer, mas a sobrevivente, narra os fatos com detalhes e com coesão, em todas as oportunidades que foi inquirida. Não é possível afirmar que Natacha criou ou aumentou as circunstâncias para prejudicar os réus, pois suas declarações encontraram pertinência nos demais elementos de prova. Não temos como colocar reserva em suas declarações, tendo em vista a narrativa ofertada, a coerência nos detalhes que forneceu, a precisão dos dados, o ânimo como se apresentou em juízo, mostrando-se visivelmente abalada no momento que viu os acusados.

Soma-se à declaração da vítima, o restante da prova oral que vem em apoio às suas afirmativas. Acrescenta-se que toda a prova pericial, tanto o exame de corpo de delito realizado nas duas vítimas, como o realizado no local dos fatos, confirma as barbaridades pelas quais elas passaram.

Por certo que o crime de tortura pode não deixar vestígio, porém, não é o que ocorreu no caso em tela.

O crime de tortura exige para sua caracterização que o agente cause sofrimento físico ou mental mediante constrangimento, com emprego de violência e grave ameaça, seja com o fim de obter informação, declaração ou confissão, seja para aplicar castigo pessoal.

A prova é inconteste. As duas vítimas foram submetidas a sevícias, atrocidades que estão no campo de produção de sofrimento físico e mental intenso.

Necessário fixar que a sessão durou cerca de quatro horas. Todos os acusados afirmaram em juízo que chegaram ao bar onde as duas vítimas estavam, por volta das 15:00 horas, o que foi confirmado, como dito acima, pela prova oral. Outrossim, chegaram na delegacia apenas às 19:00 horas, como se vê do boletim de ocorrência.

Neste longo tempo os policiais militares permaneceram com as vítimas sob guarda, poder e autoridade. Os policiais militares já tinham dado voz de prisão para as vítimas, isto ainda na calçada em frente ao bar e as levaram primeiro para um lava-rápido e depois na residência delas.


Durante este tempo agrediram Natasha e causaram lesões corporais, o que acarretou sofrimento físico e mental. O sofrimento físico é facilmente observável através das lesões corporais. O sofrimento mental é decorrente deste conjunto de atos praticados pelos réus. Ameaçar uma mulher de ser estuprada; mostra o pênis e dizer que teria que “chupá-lo”; colocá-la de quatro como se fosse um animal; aplicar golpes nas nádegas; dizer palavras de baixo calão; afirmar que colocariam objetos em seu ânus, somente podem redundar em profundo sofrimento mental.

Roberto Carlos experimentou a mesma espécie de sofrimento, físico e mental. Além das agressões constatadas pelo laudo pericial, também sofreu sofrimento mental. A testemunha Dra. Claudia afirmou que Roberto disse que bateram muito em Natacha. Calcule-se o sofrimento de um ser humano vendo uma pessoa querida ser violentamente agredida. Ouvir que sua mulher seria estuprada; ouvir os policias dizendo que raspariam a sua sobrancelha para que os presos pensassem que seria um estuprador, o que de fato fizeram e obrigá-lo a rolar em fezes de cachorro, num gesto de total humilhação.

Não há outra forma de caracterizar esta situação: emprego de violência e grave ameaça com resultado de intenso sofrimento físico e mental, lembrando que os policiais queriam castigar a vítima Roberto Carlos, pois em outra oportunidade tinham feito um “acerto” com ele, que não tinha cumprido a sua parte. Uma das motivações dos policiais era justamente castigar Roberto Carlos em razão do inadimplemento e a outra razão era que desse informação sobre o tráfico de entorpecente.

Logo, a prova é contundente e a condenação é de rigor.

A solução absolutória ao caso vertente, após esta multiplicidade de provas, somente poderia ocorrer se tivessemos o papel de desconstruir o crime de tortura, se adotássemos as ilegalidades toleradas, mencionadas por Luis Fernando Barros Vidal “in” R.CEJ, maio/agosto de 2001, ‘Da Tortura: aspectos conceituais e normativos’:

“Admitindo que a tortura é usual no sistema punitivo, e, sabido que o sistema normativo repudia a sua prática, é fácil concluir que há uma profunda contradição entre o que se passa e o que se espera, entre o ser e o dever-ser, entre o mundo das coisas e o mundo ideal. Ao mesmo tempo em que o sistema normativo caracteriza a tortura como anormalidade do sistema, a prática erige à verdadeira instituição deste sistema.

….

Este fenômeno, bastante corrente, é próprio do sistema penal, em cuja definição Nilo Batista, com apoio de Zaffaroni, entende ser possível incluir as ilegalidades estabelecidas como praticas rotineiras, mais ou menos conhecidas ou toleradas.

….

A idéia de integridade do sistema vamos buscar como criação da jurisprudência americana da judiciary integrity, noção bastante singela segundo a qual o Judiciário não pode se deixar contaminar pelas ilegalidades praticadas pelos demais órgãos do sistema penal, e que tem aplicação naquelas hipóteses de violações de garantias e direitos fundamentais”

Não sendo aceitável que o Poder Judiciário fomente as ilegalidades toleradas, diante de prova tão cristalina, só resta a condenação.

Passo para a fase de dosimetria da pena.

Foram dois delitos de tortura, praticados em concurso material, como consta da denúncia.

Na aplicação da pena, para cada um dos dois delitos, considerando as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal, fixo a pena base em cinco anos de reclusão.

A pena é fixada além do mínimo tendo em vista o número de agentes, a intensidade do dolo, pelo tempo que perdurou o crime, pelo grau intenso da tortura, consubstanciada em violência tanto física como mental. As vítimas ficaram sob o jugo dos réus pelo período interminável de quatro horas; os atos praticados são de extrema crueldade; são atrocidades de tal jaez que qualquer pessoa pensa ser impossível que um ser humano faça isto a outrem; as vítimas estavam entregues, completamente dominadas, já que receberam voz de prisão e não reagiram; o número de agentes, infinitamente superior, já que eram dez policiais, atuando em concurso, demonstra o grau de perversidade na atuação dos policiais que tinham as vítimas às suas mercês; as vítimas não tinham qualquer capacidade de defesa e de reação; os réus tentaram cobrir seus atos e agiram ao arrepio das determinações da Polícia Militar, pois tinham obrigação de acionar o Copom via rádio para solicitar apoio, para que tudo ficasse registrado, porém, os policiais da segunda e terceira viatura foram chamados pela primeira equipe através dos telefones pessoais, o que somente pode demonstrar que pretendiam esconder alguma coisa da própria Corporação.

Não há circunstâncias atenuantes e agravantes a serem consideradas.


Não há que se falar em maus antecedentes, pois não há certidões nos autos indicando condenação criminal com trânsito em julgado. A certidão condenatória, referente ao acusado Frederico, indica condenação, porém os autos encontram-se em andamento, como se verifica pelo documento de fls. 1005.

Verifico a causa de aumento do artigo 1º, parágrafo 4º, da Lei 9455/97, assim, aumento a pena em um quarto, fixando-a em seis anos e três meses de reclusão. Além do mínimo, tendo em vista a espécie de cargo que ocupam. Todos os réus são policiais militares e estavam no exercício de suas funções. O que a sociedade espera, porque estabelecido na Constituição Federal, é que policiais militares atuem em sua defesa. Esta espécie de comportamento, praticado por agente do Estado que tem a competência constitucional de preservar a incolumidade das pessoas e preservar a ordem pública, leva ao descrédito da população na ordem democrática. Os policias militares desonram a Instituição a que pertencem. Quando afrontam a ordem democrática praticando delito de proteção internacional e constitucional, não denigrem apenas a própria imagem, mancham a imagem da Instituição e fazem a população desacreditar no próprio Estado, pois a segurança pública é seu dever e direito de todos, sendo inaceitável que fomentem violência e insegurança.

Quando um direito fundamental é violado pelo Estado, a repercussão é para a vida de todas as pessoas e da comunidade internacional.

Nos termos do artigo 69 do Código Penal, torno a pena definitiva em doze anos e seis meses de reclusão, tendo em vista o concurso material de delitos.

Declaro a perda do cargo, função ou emprego público que os acusados exercem e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada, o que faço nos termos do artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 9455/97. Pessoas que praticam tal espécie de atos não estão em condições de exercer tal mister, já que colocam em risco a segurança pública.

Fixo o regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 33, parágrafo 2º, “a”, do Código Penal e artigo 1º, parágrafo 7º, da Lei de Tortura, tendo em vista a quantidade da pena e as circunstâncias referidas, que não admitem que o cumprimento inicial da pena se dê de forma mais abrandada.

Deixo de condicionar eventual recurso dos acusados à prisão.

O artigo 594 do Código de Processo Penal é inconstitucional, posto que vincula a “prisão cautelar” com o direito de apelar. Na esteira da lição de Luiz Flavio Gomes “in” Direito de Apelar em Liberdade, destaco:

“O direito de apelar integra o contraditório e a ampla defesa, nos termos do art. 5º, inciso LV, da CF. Cabe observar que a ampla defesa e os recursos a ela inerentes foram previstos irrestritamente na Constituição…Logo, não podia o legislador infraconstitucional condicionar a apelação à prisão. Um fenômeno processual não se confunde com o outro; um não pode ‘condicionar’ o outro. Ainda que fosse possível superar o argumento expendido, ainda assim, seria tal dispositivo inconstitucional por violar o ‘devido processo legal’ (CF, art. 5º, inc. VIV). Vejamos: o direito de ‘duplo grau de jurisdição legal, seja pelo próprio sistema processual adotado entre nós, seja agora por força do disposto no art. 8º, 2, ‘h’, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; restringir, por lei, o duplo grau de jurisdição, significa, destarte, restringir o devido processo legal ou, dito de outra maneira, retirar por lei o que é garantido pela Constituição e pelo Direito Internacional. A exigência da prisão para apelar, em suma, é inconstitucional e, se não fosse, teria sido revogada pela CADH”.

Tal entendimento não implica na impossibilidade da decretação de prisão cautelar. Caso as circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva se façam presentes, a prisão do acusado deve ser decretada, a qualquer tempo.

No caso vertente nesta fase processual vislumbro a circunstância autorizadora da prisão preventiva consubstanciada na garantia da aplicação da lei penal e na garantia da ordem pública.

Isto posto, JULGO PROCEDENTE a ação penal promovida pela Justiça Pública contra VITOR MAXIMINO DE MELO, VICENTE DE PAULA TORRES SANTOS, VALDENIR GOMES ARANTES, MÁRCIO ROGÉRIO BUENO DE GODÓI, FREDERICO DOS SANTOS VALÉRIO, ISSA CARON SARRAF, ANTONIO ROBERTO ALVES JÚNIOR, SÉRGIO MARCELINO DA COSTA, PAULO AUGUSTO NOGUEIRA e JEFERSON DOS SANTOS para condená-los ao cumprimento de doze anos e seis meses de reclusão, tendo-os como incursos no artigo 1º, incisos I, alínea “a”, II e parágrafo 4º, inciso I, da Lei 9455/97, por duas vezes, c.c. o artigo 69, “caput” e 29 “caput”, do Código Penal, fixando o regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade. Declaro a perda do cargo que os acusados exercem e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada, nos termos do artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 9455/97.

Recomendem-se os réus na prisão em que eles se encontram.

P.R.I.C.

São Paulo, 15 de fevereiro de 2005.

Kenarik Boujikian Felippe

Juíza de Direito

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