Conta em dobro

Consumidor faz papel do governo e paga conta de luz em dobro

Autor

  • Flávia Lefèvre Guimarães

    é advogada do escritório Lescher e Lefèvre Advogados Associados mestre pela PUC de São Paulo membro do Ipeg -- Instituto Pedra Grande de Preservação Ambiental da Pro Teste -- Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e do Instituto Ilumina -- Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.

13 de fevereiro de 2005, 12h35

Espantoso o fato de que no cenário da discussão a respeito da dificuldade que as empresas distribuidoras de energia elétrica enfrentam por conta de furto de energia e inadimplência não surja nem a sombra de dois outros fatos que, se não são totalmente causadores da atual circunstância, em muito contribuíram para que ela tenha se configurado.

Com o processo preparatório para a privatização das distribuidoras, o que se deu a partir de 1994, o valor médio das tarifas para o consumidor residencial até hoje, segundo dados da Aneel, sofreu aumento real superior a 380% e, paralelamente, o consumidor brasileiro perdeu seu emprego e viu drasticamente reduzido seu nível de renda.

A tarifa para o consumidor residencial subiu como resultante de três fatores: a) inverteu-se o subsídio cruzado, de acordo com o qual os consumidores residenciais pagavam menos pelo MWH do que os consumidores industriais e comerciais – hoje aqueles pagam R$ 241,36,00 e estes últimos, R$ 80,58 e R$ 215,32, respectivamente; b) o sistema de descontos em cascata correspondente ao nível de consumo, aplicado até 220 KWh/mês, para todos os consumidores acabou para quem consome acima desse patamar e, para os usuários que conseguiram se manter classificados como baixa renda, os percentuais foram significativamente reduzidos; c) os contratos de concessão estabelecem como índice de reajuste o IGP-M, que sofre forte influência da variação cambial, como forma de garantir o retorno dos investimentos feitos pelas empresas que venceram as licitações. Todavia, o salário dos brasileiros é reajustado (quando isso ocorre) pelo IPCA.

Enfim, o setor passou por mudanças radicais. Além de a prestação do serviço público essencial ter passado das mãos do Estado para as mãos da iniciativa privada — o que já implica na alteração da correlação de forças entre fornecedor e consumidores — as mudanças econômicas do setor elétrico e as sócio-econômicas do país, impõem que o governo, já muito tarde, adote medidas claras para sanar o grave prejuízo sofrido pelos consumidores residenciais.

Segundo o IBGE, em 2000, o consumo de energia elétrica da classe residencial, já muito baixo, era de 173 KWh/mês e hoje está abaixo de 140 KWh/mês, o que nos permite concluir que o direito ao acesso a serviço essencial vem sendo violado e reduzido pouco a pouco.

Louvável a iniciativa do governo com o programa Luz para Todos, que tem por objetivo universalizar o acesso para as áreas rurais. Porém não podemos esquecer que 70% da população brasileira encontra-se nos grandes centros urbanos e está seriamente empobrecida, como se tem constatado com as últimas estatísticas divulgadas pelo IBGE.

Tudo isso permitiria concluir que o governo esteja fazendo efetivos esforços para cumprir seu papel constitucional de garantir o acesso aos serviços públicos, erradicando a pobreza e desenvolvendo política setorial adequada ao quadro delineado acima.

Mas não é o que ocorre. A Lei 10.438/2002 (medida provisória convertida editada em dezembro de 2001 – época da crise energética) estabelece um critério nacional para o enquadramento do consumidor de baixa renda, para o quê o usuário vê-se obrigado a cumprir requisitos que nada têm a ver com o nível de pobreza e, pior, estar vinculado a qualquer dos programas do Bolsa Família.

Ou seja, três problemas. O primeiro, o fato de se tratar de um critério nacional para um país com as diferenças regionais e sociais como é o Brasil, de acordo com o qual o usuário deve comprovar que possui renda familiar per capita de R$ 100,00, o que tem causado grave prejuízo aos pobres das regiões Sul e Sudeste. Além disso, o cidadão deve demonstrar que o tipo de ligação em sua residência é monofásico, que já são pouquíssimos utilizados nas cidades. O terceiro, o fato de se condicionar a concessão do benefício ao vínculo a programa federal, que apresenta problemas estruturais para ser eficiente, como tem sido amplamente noticiado.

O resultado da ineficiência do Estado para a definição de uma política específica para esse setor é o aumento do furto de energia e a alta inadimplência. O cidadão, especialmente o morador das grandes cidades, não pode ficar sem energia elétrica — trata-se de serviço essencial.

O aumento de tarifa concedido à Ligth pela Aneel neste mês de fevereiro não irá resolver o problema; ao contrário, o aumento da tarifa irá realimentar um círculo vicioso que só irá se quebrar com o estabelecimento de mecanismos que propiciem a cobrança de uma tarifa adequada ao nível de renda dos consumidores mais pobres. E, pior, funcionará como preocupante precedente para as demais concessionárias que, argüindo o princípio da igualdade, certamente entrarão na fila do pedido de aumento.

O subsídio da tarifa de baixa renda cabe ao Estado e a fonte para arrecadação deste recurso é a Conta de Desenvolvimento Energético, instituída com a Lei 10.762/2003.

Nessa direção, é importante esclarecer que quem paga a CDE é o consumidor por intermédio de sua conta de luz todo mês. Portanto, devemos cobrar que o governo se empenhe para dar uma destinação correta aos monumentais valores recolhidos mensalmente para garantir acesso à energia elétrica aos mais pobres.

Diante desse quadro é incompreensível que o governo não cogite de levar em conta as propostas de novos critérios de tarifa social apresentadas pela sociedade civil, que repousam nos escaninhos do Ministério das Minas e Energia há dois anos, e instaure um debate eficiente e célere para resolver essa situação, ou que o Congresso não se apresse em aprovar o PL 3.430/2004, que estabelece novos e eficientes critérios para enquadramento do consumidor de baixa renda, ou, ainda, que as concessionárias não façam contas básicas para investigar se o barateamento da tarifa não levaria à diminuição da inadimplência e do furto de energia e, consequentemente, não reverteria em ganho ao invés de perdas.

Causa indignação o fato de estarem gastando preciosos recursos no desenvolvimento de tecnologia contra o furto, como foi publicado na edição do último dia 5 de fevereiro, no caderno de economia do Estadão, sem se preocupar e resolver o problema pela raiz.

Não é lícito e nem justo que os consumidores que conseguem pagar suas contas arquem duplamente com a atribuição do Estado de garantir o acesso aos serviços essenciais: pagando a CDE e amargando esse ilegal aumento.

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    é advogada do escritório Lescher e Lefèvre Advogados Associados, mestre pela PUC de São Paulo, membro do Ipeg -- Instituto Pedra Grande de Preservação Ambiental, da Pro Teste -- Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e do Instituto Ilumina -- Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.

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