Sistema de cotas

Universidade tem de matricular aluno reprovado por causa de cotas

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11 de fevereiro de 2005, 11h56

A Universidade Federal do Paraná tem de matricular um aluno reprovado no vestibular, mas que teria sido aprovado se não existisse o sistema de cotas. A decisão é do juiz Mauro Spalding, da 7ª Vara Federal de Curitiba. Cabe recurso.

O juiz concedeu liminar em Mandado de Segurança proposto pelo candidato ao curso de Medicina. Spalding afirmou que o aluno tem de ocupar o lugar de um estudante que obteve a vaga em razão de cotas.

Segundo ele, se a decisão for confirmada pelas instâncias superiores, “o impetrante passará a ocupar o lugar de um daqueles cotistas que foram indevidamente aprovados com escore inferior ao seu, mantendo-se o número de vagas do curso de Medicina inalterado ao final da demanda, com a possível exclusão do outro aluno cotista”.

A Universidade Federal do Paraná ofereceu 176 vagas para o curso. Dessas, 35 foram destinadas para negros e outras 35 para alunos de escola pública. Restaram 106 vagas para todos os concorrentes. O candidato ficou em 126ª lugar e, segundo o processo, seria classificado caso a universidade não tivesse instituído o sistema de cotas.

Para o juiz federal, destinar vagas nas universidades a pessoas de determinadas raças ou etnias representa afronta ao princípio de isonomia e pressupõe o reconhecimento da total falência do ensino público, além de mostrar que o Brasil é uma nação racista. “Admitir-se como válida a política adotada pela UFPR seria, guardadas as devidas proporções, admitir-se como constitucional, por exemplo, a destinação de assentos em transportes coletivos aos negros, ou a criação de vagas em estacionamentos diferenciados para amarelos, etc”, afirmou.

O magistrado ainda afirmou que “não resta dúvida de que a política de reserva de cotas nas universidades para pessoas de determinada raça, em vez de realizar a integração social, acaba criando sua segregação referendada pelo Estado. Por isso receia-se até mesmo que tal ação afirmativa venha a fomentar no país o sentimento racista que hoje se pretende repudiar, criando classes distintas dentro das universidades”.

No dia 28 de janeiro, o juiz federal substituto Fabiano Bley Franco, em exercício na 4ª Vara Federal de Curitiba, adotou entendimento diferente e negou liminar em Mandado de Segurança numa situação semelhante.

No Tribunal Regional Federal da 4a Região, o entendimento predominante é o de que a reserva de vagas é legal. Em dezembro de 2004, o presidente do tribunal, desembargador federal Vladimir Passos de Freitas, suspendeu a liminar que impediu a universidade paranaense de reservar 20% das vagas oferecidas em seu vestibular para estudantes negros e outros 20% a alunos da rede pública de ensino. Neste caso, a liminar também foi concedida pelo juiz Spalding, da 7ª Vara de Curitiba.

O presidente do Tribunal considerou que a instituição de ensino, ao se valer da autonomia administrativa garantida pela Constituição Federal no artigo 207, “agiu acertadamente ao expedir o edital 01/04-NC, referente ao exame vestibular de seus cursos para 2005”. Freitas lembrou que a liminar se baseou na ofensa ao princípio da isonomia e no argumento de que a decisão administrativa da UFPR trataria desigualmente negros e brancos.

No entanto, para o desembargador, “a distinção feita administrativamente e a ser disciplinada por lei trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”.

Leia a íntegra da decisão

Autos nº 2005.70.00.001962-8

Trata-se de mandado de segurança impetrado por CÉSAR AUGUSTO CHOMISKI contra ato atribuído ao REITOR DA UFPR consubstanciado na reserva de 20% das vagas no último concurso vestibular para o curso de Medicina para afro-descendentes e 20% para egressos de escolas públicas, mediante sistema de cotas previsto no Edital nº 01/04-NC.

Em suma, alegando afronta aos princípios constitucionais da isonomia, da legalidade e da razoabilidade e imputando ao sistema de cotas o caráter discriminatório inconstitucional, pretende medida liminar que lhe assegure o direito à matrícula no curso de Medicina, em relação ao qual obteve nota suficiente no concurso vestibular que o posicione em 20º lugar na “lista de espera”, sendo que 70 (setenta) das 175 (cento e setenta e cinco) vagas do curso foram destinadas aos cotistas, em número de aprovados com notas inferiores a sua.

À fl. 74 foi determinado ao impetrante que promovesse a emenda a sua petição inicial de modo a demonstrar que sua nota obtida no vestibular era superior às notas obtidas pelos cotistas aprovados no exame, tendo vindo aos autos a petição de fls. 75 instruída com os documentos de fls. 76/77 e, posteriormente, nova petição de fls. 79/81.

É o que basta para a apreciação do pedido de liminar.

A — Da ação civil pública nº 2004.70.00.040716-8 e da autonomia do presente mandado de segurança


Ab initio, importante consignar que a ação civil pública nº 2004.70.00.040716-8, ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da UFPR igualmente impugnando o sistema de cotas adotado para o concurso vestibular 2005 não é capaz de gerar a litispendência em relação ao presente mandado de segurança individual.

Portanto, o fato de a medida antecipatória dos efeitos da tutela deferida naquela ação coletiva ter sido suspensa pelo Eminente Presidente do E. TRF da 4ª Região no incidente de Suspensão de Execução de Liminar nº 2004.04.01.054675-8/PR não implica, data vênia, óbice ao deferimento de medidas liminares em ações individuais ajuizadas posteriormente àquela demanda, mesmo que tenham pretensão similar.

A uma porque a interpretação decorrente do disposto no art. 104 da Lei nº 8.078/90 (aplicada às ações civis públicas por força do que dispõe o art. 21 da Lei nº 7.347/85) permite a conclusão no sentido de que as ações coletivas não geram litispendência em relação às ações individuais. Com efeito, um indivíduo que, ciente da existência de uma ação coletiva que lhe tutele o direito individual homogêneo, prefira ajuizar individualmente uma ação autônoma, está tão-somente abdicando de beneficiar-se com os efeitos de eventual sentença favorável obtida naquela ação coletiva, nada mais. É direito seu optar por manter-se inerte e vir a beneficiar-se pelos efeitos da coisa julgada decorrente de eventual sentença de procedência proferida na ação coletiva (art. 103, Lei nº 8.078/90) ou, então, romper sua inércia e promover ação própria para tentar buscar a tutela de seu direito individual, correndo os riscos inerentes a todo processo judicial.

A duas porque a prevenção do juízo por conexão de ações disciplinada no art. 2º, parágrafo único da Lei nº 7.347/85, certamente só se aplica em relação a duas ou mais ações coletivas ajuizadas em momentos distintos, e nunca entre uma ação coletiva e uma ação individual. Afinal, a conexão de ações e sua reunião para julgamento simultâneo tem por finalidade evitar a prolação de decisões conflitantes que não podem viver simultaneamente no mundo jurídico por total incompatibilidade lógica e material (art. 106 c.c. art. 253, inciso I, CPC). Esse risco não existe entre uma ação coletiva e outra individual. A extensão do pedido formulado numa ação coletiva é indubitavelmente superior àquela objetivada numa ação individual o que, por si só, é capaz de demonstrar a inexistência de identidade de objetos entre as duas ações. Também não há identidade de partes entre a ação civil pública nº 2004.70.00.040716-8 e o presente mandado de segurança (lá o autor é o MPF; aqui, o impetrante é aquele indicado no cabeçalho desta decisão). Por fim, ainda que os fundamentos jurídicos do pedido sejam os mesmos, os fatos constitutivos do direito do impetrante alegado na petição inicial lhe é peculiar e exclusivamente seu, não sendo objeto de análise naquela demanda coletiva, cuja causa de pedir, pela sua própria natureza, ostenta caráter genérico.

Por fim, tomo a liberdade de transcrever excerto da r. decisão de lavra do Exmo. Sr. Dr. Desembargador Federal do E. TRF da 4ª Região, mestre e exemplo ímpar de Magistrado a ser seguido por todos os que exercem humildemente a judicatura sob sua honrosa Presidência na região sul do país, proferido no julgamento da Suspensão de Execução de Liminar nº 2004.04.01.054675-8:

“(…) Não me alongo nas considerações, inclusive porque os autos não vieram com cópia da inicial da Ação Civil Pública. A questão central é a isonomia, ou seja, a decisão administrativa estaria tratando desigualmente negros e brancos. Assim não penso, com a vênia devida. Toco superficialmente no tema, até porque ele não morrerá aqui, pois será objetro de debate em muitas ações. (…)” – grifo não consta do original.

Veja-se que a possibilidade de ajuizamento de demandas individuais por aqueles que se sentirem lesados em seus direitos foi reconhecida no próprio âmbito da ação civil pública, o que permite a este juízo prosseguir na análise do pedido de liminar, acreditando não estar assim usurpando competência privativa do E. TRF da 4ª Região ou mesmo interferindo no resultado daquela ação civil pública, s.m.j.

B — Da falta de documento indispensável à demonstração de interesse de agir do impetrante na presente demanda.

Em decisão de fl. 74 este juízo determinou ao impetrante que promovesse emenda à sua petição inicial, trazendo aos autos prova documental no sentido de “comprovar que foram aprovados para o curso de medicina na UFPR no último vestibular pelo menos 20 (vinte) cotistas com nota inferior a sua, pois só assim o reconhecimento da ilegalidade/inconstitucionalidade apontada poderia trazer o resultado jurídico por ele almejado”. Ademais, determinou também que incluísse no pólo passivo deste mandado de segurança individual todos aqueles cotistas aprovados no curso de medicina que obtiveram nota inferior a sua no concurso vestibular 2005.


O impetrante demonstrou documentalmente que requereu administrativamente tais informações junto à UFPR, mediante protocolo de pedido recebido pelo Setor competente daquela universidade no dia 26 de janeiro p.p., ou seja, há mais de 10 (dez) dias da presente data.

Às fls. 79/80, compareceu aos autos para informar que as informações requisitadas não lhe foram prestadas, reiterando seu pedido para apreciação da liminar almejada, eis que as matrículas para os aprovados no vestibular já haviam inclusive se encerrado. Formulou também pedido no sentido de que a autoridade impetrada fosse compelida pelo juízo a apresentar nos autos as informações necessárias à válida continuidade do feito.

Apesar de a obtenção de tais informações, constantes de cadastros públicos que são, poder ser objeto de habeas data possivelmente impetrado autonomamente para tal finalidade, tenho que o pedido pode ser apreciado incidentalmente nesta ação mandamental.

Isso porque, nada obstante o mandado dde segurança se sujeite a um procedimento especial (Lei nº 1.533/51), é inegável a tentativa da autoridade impetrada em evitar os questionamentos judiciais da política de cotas adotada pela UFPR, sonegando informações dos candidatos que têm todo o direito de saber sua classificação em relação à classificação (por desempenho nas provas) dos demais candidatos. Tal prática não pode ser admitida pelo Poder Judiciário.

Afinal, a publicidade é princípio inerente a todo ato administrativo (art. 37, caput, CF/88), não sendo dado aos agentes que integram a Administração Pública obstando acesso às informações relativas à própria validade de seus atos, impossibilitando, assim, o exercício de fiscalização e controle por parte dos administrados da validade e legalidade dos atos administrativos.

No caso de um processo seletivo fundado em critérios objetivos previamente traçados nas normas editalícias que regem a sua realização a publicidade é fundamental para garantir a própria lisura que se espera do procedimento, sendo direito de todos os que dele participam obter informações precisas e claras sobre sua classificação em relação àqueles que foram aprovados ou estiveram melhor classificados, inclusive como forma de assegurar o conhecimento sobre os motivos que lhe levaram à reprovação ou a posição de sua classificação final no certame.

As notícias veiculadas pela imprensa local curitibana logo após a publicação da lista de aprovados informaram que o Sr. Reitor da UFPR não tornaria pública a lista geral de aprovados no vestibular para cada um dos cursos oferecidos pela UFPR, por ordem de classificação, para evitar eventual discriminação dos cotistas aprovados no certame.

A justificativa é, com o respeito devido, paradoxal e insustentável. Se a UFPR cria um sistema de cotas por entender que não revela qualquer afronta ao princípio da isonomia, não sendo discriminatória e tendo por finalidade a inclusão racial e social, não pode temer que a publicação dos nomes daqueles cotistas aprovados possa gerar o efeito que, por premissa, sustentam inexistir.

Portanto, considerando o disposto no art. 399, CPC, segundo o qual “o juiz requisitará às repartições públicas em qualquer tempo ou grau de jurisdição as certidões necessárias á prova das alegações das partes”, bem como o disposto no art. 355 do CPC, segundo o qual “o juiz pode ordenar que a parte exiba documento ou coisa que se ache em seu poder”, e ainda o que preceitua o art. 339, CPC de que “ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”, tudo isso à luz do princípio da publicidade dos atos administrativos, entendo cabível a notificação da impetrada para que, no mesmo prazo das informações, colacione aos autos a lista geral de aprovados no curso de medicina decorrentes do último concurso vestibular promovido pela UFPR, com menção às respectivas notas, nomes e qualificações de todos aqueles aprovados até a classificação obtida pelo impetrante.

Saliento que o decurso de mais de 10 (dez) dias sem que o pedido administrativo formulado pelo impetrante tenha sido atendido pela impetrada é suficiente para motivar o juízo a requisitar tais documentos judicialmente, aplicando por analogia o disposto no art. 8º, parágrafo único, inciso I da Lei nº 9.507/97, no sentido de demonstrar a razoabilidade desse lapso temporal para configurar o interesse de agir necessário à satisfação de tal pretensão.

C — Do pedido de liminar propriamente dito

Inicialmente, importante consignar que a medida liminar é excepcional, só sendo admitida quando cabalmente presentes os pressupostos legais que permitam sua concessão de modo a dar prioridade à efetividade do processo em detrimento do contraditório e da própria segurança jurídica.


É por isso que a medida liminar ostenta caráter precário e temporário, podendo a qualquer tempo vir a ser revogada ainda que previamente concedida, não havendo futuramente falar-se em manutenção permanente da situação jurídica enfocada se foi materializada com base numa decisão dessa natureza.

Analisando sumariamente os argumentos expendidos na petição inicial, tenho como presentes os dois requisitos legais necessários à concessão da medida.

A urgência (periculum in mora) prevista no art. 7º, inciso II da Lei nº 1.533/51 vem evidenciada pelo fato de a matrícula para o curso de Medicina cuja vaga é pretendida pelo impetrante já ter se encerrado no dia 02 de fevereiro, conforme calendário divulgado pela UFPR no seu site oficial.

Aguardar-se a vinda aos autos dos documentos a serem requisitados da autoridade impetrada para só então apreciar o pedido de liminar formulado seria possibilitar o perecimento irreversível do direito líquido e certo de que se queixa o impetrante na petição inicial, que ficaria longe das aulas iniciais do curso de medicina para o qual pretende assumir uma de suas vagas.

Convenço-me também da relevância do fundamento (fumus boni iuris).

A questão posta para julgamento, em sede de cognição sumária, restringe-se à verificação da (in)constitucionalidade do conteúdo dos §§ 1º e 2º do art. 3º da Resolução nº 37/04-COUN (repetida nos §§ 1º e 2º do Edital nº 01/2004-NC), que rege o Processo Seletivo para ingresso nos cursos de graduação da UFPR e de Tecnologia de Informática da Escola Técnica da UFPR no ano 2005, cuja redação é a seguinte:

“Art. 3.º – O Núcleo de Concursos disponibilizará na Internet (www.nc.ufpr.br), até 16 de julho de 2004, o Guia do Candidato, que conterá os cursos e as vagas ofertadas para o ano letivo de 2005, inclusive com a indicação das vagas de inclusão racial e social, e outras informações complementares às deste Edital, que sejam necessárias para a orientação do candidato quanto às inscrições, às provas e ao registro acadêmico.

§ 1.º – Das vagas oferecidas para os cursos, 20% serão de inclusão racial, disponibilizadas para estudantes afro-descendentes, sendo considerados como tais os que se enquadrarem como pretos ou pardos, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

§ 2.º – Das vagas oferecidas para os cursos, 20% serão de inclusão social, disponibilizadas para estudantes que tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública, sendo possível a exceção de um ano letivo cursado em escola particular.” (grifo não consta do original)

Tem-se acima o que a doutrina denomina de ação afirmativa, política pública originária dos Estados Unidos durante o governo John F. Kennedy, em 1961, que atualmente “designa um conjunto de estratégias, indicativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas.”(1)

A discussão sobre como conciliar os programas de ação afirmativa que, aparentemente, mostram-se admitidos pela Constituição, com o princípio geral da igualdade perante a lei, é uma das mais árduas tarefas enfrentadas pelo Poder Judiciário. O caso presente representa exatamente uma dessas situações excepcionais e polêmicas, de enorme repercussão que impõem ao Estado-juiz buscar cuidadosamente prestar a jurisdição arraigada ao conceito de Justiça, “a mais alta expressão daquele espírito pelo qual o homem se distingue dos brutos”(2).

Inicialmente, vejo como relevante o fundamento de inconstitucionalidade formal da norma que instituiu o sistema de cotas. Isso porque tal limitação de direitos foi prevista em Regulamento, norma administrativa que não tem status de lei e, portanto, não pode restringir direitos dos brasileiros, sob pena de afronta ao princípio da legalidade previsto no art. 5º, inciso II da CF/88. Tal situação revela-me, ao menos em sede de cognição sumária, um vício formal de inconstitucionalidade intransponível.

A autonomia administrativa das universidades (art. 207, CF/88) não lhes dá plenos poderes para normatizar situações restritivas de direitos de forma genérica como aquelas discutidas nesta demanda (se por um lado amplia o direito de algumas minorias, restringe o direito de outros brasileiros em todo o território nacional)(3). Com efeito, o Edital nº 01/2004-NC e a Resolução nº 37/04-COUN, responsáveis pela criação do sistema de cotas, mostram-se formalmente inconstitucionais. Em outras palavras, a UFPR extrapolou seu poder normativo administrativo ao editar as sobreditas normas jurídicas, já que só por lei, material e formalmente constitucional, é que se poderia validamente restringir direitos, nos termos do art. 5º, inciso II da CF/88. Aguardemos, assim, a tão esperada “Reforma Universitária”, atualmente em trâmite no Congresso Nacional, e esperamos que nela se incluam regras materialmente constitucionais.


Sob o prisma material, o art. 208, inciso V da CF/88, preceitua expressamente como garantia inerente à educação prestada pelo Estado “o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um, o que não permite a utilização no concurso vestibular para o ensino superior de qualquer outro critério dissociado da capacidade intelectual de cada candidato, por mais nobre que seja o seu fundamento (racial, econômico, de idade, de sexo, etc.).

Além dessa inconstitucionalidade material, ainda nessa análise perfunctória do feito, vejo no caso uma afronta ao princípio da isonomia disciplinado pela Constituição de 1988.

Para a solução do caso presente, entretanto, faz-se necessário discorrer sobre alguns aspectos do referido princípio constitucional para, em seguida, analisar as duas hipóteses versadas pelas normas acima transcritas e impugnadas pelo Ministério Público Federal: (a) a primeira, relativa à intenção da UFPR de valer-se do seu vestibular para obter a reintegração racial dos afro-descendentes, disponibilizando 20% de suas vagas aos pretos e pardos conforme classificação adotada pelo IBGE e (b) a segunda, relativa à política pública de inclusão social dos egressos de escolas públicas.

D — O Princípio da Isonomia

A Constituição Federal cidadã de 1988 elege, já em seu preâmbulo, a “sociedade sem preconceitos” como valor supremo e a “igualdade” como objetivo precípuo do Estado Democrático brasileiro, estabelecendo no caput do seu art. 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Sabe-se que assegurar a igualdade não significa atribuir sempre tratamento igual às pessoas que, sendo desiguais, merecem tratamento diferenciado como forma inevitável de se assegurar essa isonomia prevista na Constituição.

Nesse diapasão, ninguém ousaria dizer que o tratamento diferenciado dado pelo Direito aos homens e às mulheres quanto ao número de dias de afastamento remunerado do trabalho em caso de maternidade/paternidade significaria afronta ao princípio da isonomia. Da mesma forma ninguém discordaria que isentar do imposto de renda um contribuinte que aufere um salário-mínimo mensal e tributar um milionário à alíquota de 27,5% de seus rendimentos, apesar de representar indubitável tratamento desigual, tem por finalidade exatamente assegurar a igualdade objetivada pela norma constitucional. Inúmeros exemplos poderiam ser citados para demonstrar que, nem sempre, garantir a igualdade constitucional às pessoas impõe o dever de lhes atribuir tratamento igual; há situações em que se deve dar tratamento desigual às pessoas exatamente como forma de garantir a isonomia entre elas.

Há casos, entretanto, nos quais o problema não se mostra de fácil solução, haja vista as dificuldades em identificar quem são os iguais e quem são os desiguais e, diante dessa identificação, em analisar se o tratamento diferenciado atribuído àquelas pessoas mostra-se suficiente, e eficiente, no limite de sua atuação, para garantir a isonomia entre elas.

A título de exemplo, a Revista “Veja” trouxe ao público a discussão travada ano passado no Congresso Nacional sobre a distinção de tratamento entre homens e mulheres no que se refere à menor idade feminina em relação à masculina assegurada pela própria Constituição como requisito à aposentadoria, dando evidencias jornalísticas de que se trataria de um privilégio despropositado e gentil dado às mulheres(4). Apesar disso, após protestos da Bancada Feminina no Congresso Nacional (também veiculada na semana seguinte pelo mesmo periódico) prevaleceu na Reforma por que passou recentemente a Previdência Social brasileira o entendimento de que o tratamento diferenciado representava uma forma de assegurar a vigência da igualdade entre homens e mulheres, dadas as diferenças entre ambos à luz dos aspectos previdenciários vigentes no país. Hoje, as mulheres têm direito de se aposentar 5 (cinco) anos mais jovens que os homens.

Para identificar eventual afronta ao princípio da isonomia dentro dessa “zona cinzenta”, o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello(5) criou um critério para detectar-se a lesão à igualdade pretendida e assegurada pela Constituição, segundo o qual se leva em conta a presença de dois fatores distintos: (a) o elemento de discriminação utilizado para o caso concreto; e (b) a finalidade, o objetivo previsto na norma. Quando houver uma adequação, uma compatibilidade entre os dois, não estaremos diante de uma agressão ao princípio da igualdade. Nesse sentido:

“(…) então no que atina ao ponto central da matéria abordada, procede afirmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto (…)”


Diante desse critério, por exemplo, uma pessoa que tenha a sua inscrição em concurso público para Analista da Justiça Federal impedida pelo fato de pertencer à raça negra ou outra qualquer, certamente estará sofrendo uma discriminação inconstitucional (e, diga-se, odiosa!) dado à flagrante agressão ao princípio da igualdade, uma vez que o fator de discriminação aqui utilizado (a pigmentação da pele) em hipótese alguma se coaduna com o objetivo da norma. De outra parte, se for obstada a inscrição de um paraplégico para um concurso público visando à seleção de candidatos à função de salva-vidas, não estaremos diante de qualquer agressão ao princípio da isonomia, vez que o fator de discriminação utilizado (deficiência física) se coaduna perfeitamente com o objetivo do concurso.(6)

Portanto, o princípio da isonomia previsto na Constituição, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (sexo, raça, trabalho, credo religioso, convicções políticas, etc.) assegura, conforme ensinamentos aristotélicos, o tratamento igual aos iguais e o tratamento desigual aos desiguais, no estrito limite e na medida de suas desigualdades.

Sob essa ótica, as ações afirmativas adotadas pelo Estado no intuito de proteger as castas menos favorecidas da sociedade (sob o aspecto econômico, cultural, racial, etc.) e as classes sociais minoritárias, devem sempre guardar compatibilidade com o princípio da isonomia, sob pena de virem a sofrer intervenção do Poder Judiciário numa das poucas situações admitidas pela doutrina constitucionalista de intervenção direta deste Poder constituído em políticas públicas.

Por exemplo, o art. 37, § 1º do Decreto nº 3.298/99 disciplina a necessidade de reserva de pelo menos 5% (cinco por cento) das vagas oferecidas em concursos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, sendo constitucional o referido tratamento diferenciado sempre que o fator de diferenciação (deficiência) não se mostre incompatível com as atribuições do cargo público ofertado pelo concurso. Isso porque há diferenças evidentes entre o deficiente e o não deficiente que justificam esse tratamento mais benéfico àquele que, por razões óbvias decorrentes de sua limitação funcional, enfrenta maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, justificando e legitimando a adoção de ações afirmativas como a prevista na sobredita norma jurídica.

Tecidas essas breves considerações, passo à análise das normas editadas pela UFPR relativas à reserva de vagas no concurso vestibular de 2005, objeto da presente demanda.

E — A reserva de vagas para afro-descendentes

O impetrante afirma com bastante ênfase na petição inicial que o sistema de cotas para afro-descendentes representa violação ao princípio constitucional da isonomia.

Tecendo-se uma análise perfunctória do feito, própria do atual momento processual, sem distanciar-me da acuidade que o presente caso impõe, entendo assistir razão ao autor na matéria ora sub judice.

Apesar de todo o contexto histórico que envolveu os negros no Brasil, que há pouco mais de um século deixaram de ser vistos como patrimônio dos seus senhores e se livraram da escravidão, adquirindo a duras penas sua liberdade e a personalidade jurídica dada pelo ordenamento às pessoas, não vejo nisso motivo que justifique um tratamento diferenciado aos afro-descendentes para ingresso nas universidades públicas no atual cenário sócio-político brasileiro.

Por serem lentas as mudanças sociais, as estatísticas ainda hoje demonstram que, apesar de o racismo ser amplamente repudiado pelo ordenamento jurídico(7), o lamentável sentimento discriminatório ainda presente no íntimo de alguns brasileiros em relação aos afro-descendentes traz dificuldades para sua inclusão social, o que poderia justificar a adoção de ações afirmativas pelo Estado como forma de preservar e garantir a inversão desse quadro, entretanto, desde que tais ações afirmativas não ofendessem a Constituição Federal.

Com efeito, apesar de louvável a intenção da UFPR em buscar um remédio para amenizar essa insustentável situação de preconceito que ainda vige no âmago da sociedade brasileira, o método eleito não se coaduna com o ordenamento jurídico constitucional brasileiro.

As universidades representativas do ensino superior são locais destinados ao exercício da pesquisa e extensão (art. 207, CF/88), sendo seu acesso destinado exclusivamente às pessoas que demonstrem aptidão intelectual suficientemente necessária e indispensável para o exercício da ciência.

Portanto, o fator “raça”, ou qualquer outro que se distancie da aferição intelectual do candidato ao ingresso no ensino superior, não se mostra adequado às finalidades da norma constitucional que expressamente assegura a “igualdade de condições para o acesso” como princípio do ensino no Brasil (art. 206, inciso I, CF/88).


Adotando o critério traçado pelo Professor Bandeira de Mello acima citado, vê-se um evidente descompasso entre o elemento de discriminação eleito pela UFPR para corrigir as desigualdades raciais vivenciadas no Brasil (raça) e a finalidade própria do concurso de vestibular (selecionar os candidatos mais bem preparados que concluíram o ensino médio para obterem do Estado o ensino superior).

Em suma, não há pertinência lógica alguma entre o critério de raça e a aprovação em vestibular, sendo a reserva de cotas, essa sim, preconceituosa e não condizente com a igualdade assegurada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Veja-se que a situação se assemelha daquela acima citada relativa às pessoas portadoras de deficiência, mas com ela não se confunde em sua essência. O acesso ao mercado de trabalho das pessoas deficientes é consideravelmente menor do que o das demais pessoas por razões óbvias e cristalinas inerentes a sua própria limitação funcional (diversas, portanto, da mera discriminação), o que permite e legitima a reserva de vagas em concurso público para serem por elas preenchidas. Do mesmo modo se justifica, por exemplo, assentos especiais para deficientes reservados no transporte público, vagas de estacionamento privilegiadas, ou outras ações afirmativas do Estado com o objetivo de, em respeito ao princípio da isonomia, reduzir o sofrimento daqueles que demonstram quaisquer limitações físicas. Veja-se que os deficientes físicos concorrem às vagas a eles destinadas independente de sua raça, cor, crença religiosa ou qualquer outro elemento discriminatório, ou seja, concorrem em igualdade de condições.

O mesmo não se pode dizer da reserva de vagas em universidades para os afro-descendentes. Suas condições de acesso às universidades não são menores em decorrência de sua descendência; a raça em nada interfere na possibilidade de êxito de um negro, amarelo, vermelho ou branco no vestibular; o sucesso no concurso para ingresso no ensino superior depende tão-só da demonstração de conhecimento das matérias que são afetas ao certame, adquiridas no ensino médio e fundamental pelos candidatos, não guardando qualquer relação com a pigmentação da pele ou com a descendência do aluno.

Portanto, destinar vagas nas universidades a pessoas desta ou daquela raça ou etnia tão-só porque os dados estatísticos demonstram um número reduzido de universitários de tais raças ou etnias representa patente afronta ao princípio da isonomia, haja vista o total descompasso entre o discrímen eleito e a finalidade da norma jurídica em análise. Admitir-se como válida a política adotada pela UFPR seria, guardadas as devidas proporções, admitir-se como constitucional, por exemplo, a destinação de assentos em transportes coletivos aos negros, ou a criação de vagas em estacionamentos diferenciadas para amarelos, etc. Não resta dúvida de que a política de reserva de cotas nas universidades para pessoas de determinada raça, em vez de realizar a integração social, acaba criando sua segregação referendada pelo Estado.

Por isso receia-se até mesmo que tal ação afirmativa venha a fomentar no país o sentimento racista que hoje se pretende repudiar, criando classes distintas dentro das universidades (uma representada pelos ingressos no vestibular mediante aferição de sua capacidade intelectual e outra representada pelos cotistas) e contribuindo para que o Brasil corra o risco de perder seu honroso título de “exemplo para o mundo em matéria de reintegração racial”. Enfim, referendar o sistema de cotas para afro-descendentes seria caminhar na contra-mão da evolução social brasileira, colidindo com tudo o que se alcançou até hoje em níveis de igualdade racial no Brasil.

Nesse sentido manifestou-se com bastante propriedade Hélio Schwartzman, jornalista da Folha de São Paulo, em artigo intitulado “Igualdade e Diferença”(8) veiculado na edição do dia 12/12/2002, in verbis:

“(…) No Brasil, porém, a introdução de quotas em meio a um sistema puramente objetivo-meritocrático se faria contra o mérito. Seria grande o risco de o beneficiado pelas quotas não ser visto como um bom estudante que chegou a uma boa universidade com um empurrãozinho do critério racial, mas como um aluno de menor talento que só conseguiu sua vaga na universidade pública por causa de uma lei discriminatória (uma discriminação positiva, mas, ainda assim, uma discriminação)”.

Em suma, qualquer tentativa de separar a miscigenação racial valendo-se de políticas públicas alicerçadas no critério de raça, por mais nobre que seja o seu fundamento, constitui discriminação insustentável à luz da Constituição vigente.

O Exmo. Juiz Federal Sérgio Fernando Moro narra em sua obra intitulada “Jurisdição Constitucional como Democracia”, ed. RT, São Paulo: 2004, pp. 38/43, que no ano de 1954, auge da segregação racial nas escolas públicas no sul dos Estados Unidos, a Suprema Corte americana julgou inconstitucional a doutrina “separados, mas iguais” em matéria de educação, no caso “Brown v. Board of Education”, cujo excerto do voto do juiz Warren, merece ser abaixo transcrito:


“Separá-las [as crianças negras] de outras de idade e qualificações similares só em virtude da raça negra gera um sentimento de inferioridade de seu status na comunidade, que deve afetar seus corações e mentes de um modo que provavelmente não possa ser desfeito. (…)”(9)

Percebe-se que àquela ocasião, galgando degraus no sentido do progresso humanitário e integração das raças branca e negra nos Estados Unidos, o Poder Judiciário repudiou qualquer tentativa de separar alunos de raça negra dos alunos de outras raças, devendo agregá-las no ensino de acordo com suas “idades e qualificações similares”. Tal situação demonstra que qualquer ação afirmativa que tenha por finalidade a integração racial acabará inevitavelmente por esbarrar numa diferenciação fundada em critérios de raça, o que sempre implicará a perigosa implantação de guetos distintos, inconstitucionalmente derivados de tal política pública. A medida pretendida pela UFPR neste particular consubstancia-se num retrocesso histórico, ressuscitando a política dos “separados, mas iguais”, há tempos vencida como essencial à inclusão racial dos negros.

Além do mais, quem é preto ou pardo? É uma questão de melanina ou de descendência (“afro-descendentes”)? E se o ascendente for branco, apesar de africano? Ainda que o IBGE traga critérios no sentido de tornar o mais objetivo possível essa identificação, a subjetividade é inerente ao próprio conceito de raça humana, o que tornaria sobremaneira frágil e injusta (pela subjetividade) a reserva de vagas fundada em tal critério racial.

E mais. Se o vestibular não se mostra adequado para testar o grau de conhecimentos indispensáveis ao acesso às universidades, como corriqueiramente defendem alguns notáveis pedagogos, que se crie outro método mais eficiente de avaliação desses conhecimentos. O que não se pode admitir é que esse suposto erro sirva de justificativa válida para a instalação desse outro ainda mais grave, já que, como se disse, o critério de raça, de crença religiosa, de idade, de convicção política, de sexo, ou de qualquer outro que se distancie da finalidade inerente ao ensino superior (desenvolvimento da ciência) representa afronta ao princípio da igualdade que rege todas as relações jurídicas no Direito Brasileiro.

Portanto, por ser inconstitucional a norma preconizada no art. 3º, § 1º do Edital nº 01/2004-NC, deve o mesmo deixar de ser aplicado em relação ao impetrante.

F — A reserva de vagas para egressos de Escolas Públicas

Quanto à reserva de vagas para vestibulandos egressos de escolas públicas, apesar de se visualizar com maior clareza uma certa pertinência lógica entre o critério de discriminação (capacidade financeira) e a finalidade da norma que garante o acesso a todos ao ensino superior, ainda assim entendo assistir razão ao impetrante no sentido de que tal prática configura afronta à isonomia constitucional.

Como se disse alhures, é cediço que o grande problema da educação nacional reside na prestação do ensino básico e fundamental pelo Estado, e isso sim pode implicar acesso às universidades apenas aos mais favorecidos economicamente.

A Constituição Federal assegura aos brasileiros o direito ao ensino fundamental gratuito e progressiva universalização do ensino médio gratuito (art. 208, incisos I e II, CF/88). Apesar disso, sabe-se que atualmente o ensino de base (médio e fundamental) ofertado pelo Estado não apresenta a mesma qualidade do ensino prestado pela iniciativa privada em escolas particulares que cobram pelos serviços educacionais elevadas mensalidades. Essa distinção acaba por implicar patente restrição do acesso à melhor formação educacional àqueles mais afortunados financeiramente, o que poderia justificar a adoção de reserva de vagas para os alunos egressos de escolas públicas.

Ocorre que, como se disse alhures, ainda que pareça mais evidente a pertinência lógica entre o discímen selecionado (capacidade financeira do aluno) e a finalidade da norma sob análise, o fato é que a reserva de vagas às pessoas menos afortunadas financeiramente acaba, assim como no caso das cotas raciais, implicando a segregação social, e não sua reintegração.

Isso porque, conforme já assinalado nesta decisão, as universidades (ensino superior) representam local para o exercício da ciência, sendo relevante para o ingresso nela o nível de conhecimento indispensável ao aproveitamento do curso e a extensão das pesquisas a ele relativas demonstrado pelos candidatos às vagas ofertadas, o que não guarda qualquer relação direta com o nível econômico do aluno (apesar de relacionar-se indiretamente com ele, em decorrência dos problemas citados).

A única solução constitucionalmente possível para se alcançar a plena reintegração social e racial no país seria a adoção de ações afirmativas consoantes com o princípio da isonomia o que, no campo educacional, pressupõe o ataque do problema em sua raiz, traçando políticas públicas eficientes que impliquem melhora no ensino fundamental e médio ofertados pelo Estado, o que se consegue com a melhoria na remuneração dos profissionais de ensino e valorização desses profissionais, políticas de avaliação mais eficientes e condizentes com os modernos ensinamentos pedagógicos e ampliação de acesso, sem qualquer restrição, a todas as pessoas. Em outras palavras, para solucionar o problema não basta remediá-lo com medidas paliativas e preconceituosas, é necessário preveni-lo, antes de mais nada, simplesmente dando plena eficácia às normas constitucionais vigentes.


Com efeito, a reserva de vagas na UFPR para afro-descendentes e para egressos de escolas públicas representa tentativa que, apesar de nobre e louvável, mostra-se inconstitucional por afronta ao princípio da igualdade assegurado como valor máximo do Estado Democrático de Direito.

Atacar a causa pelo efeito há muito tem demonstrado sua ineficiência, não recomendando, portanto, o referendo do Poder Judiciário já que, assim como a violência não se resolve com violência, as segregações racial e social não se resolvem com medidas discriminatórias como aquelas previstas na norma administrativa editada pela UFPR.

Admitir-se como juridicamente válida a reserva de vagas nas universidades amparada em critérios de raça ou de capacidade financeira dos alunos pressupõe o necessário reconhecimento da total falência do ensino público de base no país e, além disso, que o Brasil é uma nação racista.

Ainda que os fatos evidenciem de certa forma a veracidade de tais premissas, sob o prisma estritamente jurídico elas são indubitavelmente falsas, haja vista que o Direito possui normas para o perfeito funcionamento da educação pública e para que qualquer ato racista seja severamente sancionado na própria Constituição Federal. Desse modo, fundadas em premissas juridicamente falsas, não se pode chegar a uma conclusão juridicamente verdadeira. Em síntese, independente do aspecto político da medida adotada pela UFPR, seu aspecto jurídico, pela lógica, não permite seja ela validada.

Por fim, mas não menos importante, mister consignar que não se está aqui aplicando isoladamente o princípio da isonomia ou a regra constitucional que exige a capacidade do aluno como único critério válido para o ingresso no ensino superior. Não se está, nem de longe, olvidando-se dos fundamentos da República Federativa do Brasil, tais como a erradicação da pobreza, a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, a redução das desigualdades sociais, a promoção do bem de todos sem preconceitos (art. 3º, CF/88). O que se está fazendo é evitando a prática de ações compensatórias distorcidas em favor de classes minoritárias, completamente alheias e dissonantes do sistema jurídico vigente aplicado ao ensino universitário, capazes de gerar discriminações, preconceitos e o enfraquecimento do ensino superior que vem, há tempos, pelo total descaso político da Administração Pública, sofrendo violações sérias na sua qualidade.

Afinal, as universidades públicas são notoriamente tidas como as melhores do país principalmente pelo nível intelectual do seu corpo discente, sendo o corpo discente secundário, dada a vênia devida, para a boa fama de tais centros de ensino.

Esse é o entendimento deste juízo, em sede de cognição sumária.

G — Considerações Finais

Por certo o impetrante, ocupando a 20ª colocação na lista de espera para uma das 175 (cento e setenta e cinco) vagas destinadas aos aprovados no curso de Medicina da UFPR deverá posicionar no pólo passivo desta demanda todos aqueles aprovados que no certame obtiveram nota inferior a sua (788,259 — fl. 27).

Isso porque eventual decisão final de mérito nesta demanda tem o condão de inevitavelmente afetar a esfera jurídica de interesses daqueles candidatos, subsumindo-se a hipótese aos ditames do art. 47, parágrafo único do CPC c.c. o art. 19 da Lei nº 1.533/51.

Quanto aos outros 19 candidatos que se encontram na lista de espera à frente do impetrante, poder-se-ia cogitar na aplicação do disposto no art. 3º da Lei nº 1.533/51, possibilitando a sua substituição processual pelo impetrante que continuaria a integrar sozinho o pólo ativo deste mandamus. Ocorre que é do conhecimento deste magistrado que vários outros candidatos estão impetrante individualmente outros mandados de segurança nesta Subseção Judiciária de Curitiba-PR, com o mesmo objetivo, o que inviabilizaria a adoção daquela providência (art. 3º da Lei nº 1.533/51) pela patente situação de litispendência que poderia causar gerando tumultos não condizentes com a efetividade e celeridade na prestação jurisdicional adequada (art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88, acrescido pela EC nº 45/2004).

Portanto, admito a impetração exclusiva e individual, nos termos como proposta esta demanda, devendo o impetrante, contudo, incluir no pólo passivo os candidatos aprovados que obtiveram nota inferior à sua, conforme acima fundamentado, após a vinda aos autos das informações a serem prestadas pela autoridade impetrada neste feito.

H — Da decisão propriamente dita

Pelo que foi exposto, defiro a medida liminar objetivada, o que faço para determinar ao Sr. Reitor da UFPR que realize a matrícula do impetrante CÉSR AUGUSTO CHOMISKI no curso de Medicina, devendo acolhê-lo como aluno regular, sem quaisquer restrições pedagógicas ou acadêmicas, até a prolação de decisão definitiva neste feito.


Saliento que esta decisão, apesar de implicar imediato aumento do número de alunos no curso de Medicina como conseqüência lógica, não significa usurpação da competência administrativa e da autonomia da UFPR no sentido de estabelecer a limitação de vagas em seus cursos. Isso porque a presente tutela, como se disse alhures, é provisória e precária e, caso venha a ser confirmada em sentença, o impetrante passará a ocupar o lugar de um daqueles cotistas que foram indevidamente aprovados com escore inferior ao seu, mantendo-se o número de vagas do curso de Medicina inalterado ao final da demanda com a possível exclusão daquele outro aluno cotista. Isso justifica a formação do litisconsórcio necessário aduzido na fundamentação supra.

Sopesando-se o risco de lesão ao direito à vaga pelo impetrante e o provisório aumento do número de alunos que iniciarão a cursar Medicina na UFPR em decorrência deste processo, sem dúvida aquele primeiro deve sobrepor-se a esse último, sem que isso implique qualquer ilegalidade por parte deste juízo.

Como conseqüência desta decisão, determino:

I – Intime-se com urgência a autoridade impetrada desta decisão para que a cumpra no prazo máximo de 48h (quarenta e oito horas) e, no mesmo ato, notifique-a para que preste as informações cabíveis no prazo de 10 (dez) dias. Nesse mesmo prazo deverá apresentar a este juízo a lista com os nomes, qualificações (endereço, etc.) e notas finais obtidas no exame vestibular/2005 por todos os aprovados para o curso de Medicina até a classificação do impetrante, cotistas ou não (conforme item B da presente decisão), sob pena de multa diária que fixo pessoalmente em desfavor da autoridade impetrada em caso de descumprimento em valor equivalente a R$ 5.000,00 (cinco mil reais), nos termos do art. 14, parágrafo único, CPC, a iniciar-se no dia seguinte ao da expiração do prazo aqui concedido.

II – Com as informações e os documentos requisitados pelo juízo, intime-se o impetrante para que promova a formação do litisconsórcio passivo necessário, nos termos da presente decisão e, em seguida, voltem-me conclusos.

III — O Ministério Público Federal terá vista dos autos após apreciação deste juízo da emenda à petição inicial a ser apresentada pelo impetrante, conforme o item precedente, e da análise da documentação a ser fornecida pela UFPR em cumprimento ao item I desta decisão.

Em homenagem ao princípio da celeridade processual e da instrumentalidade das formas processuais, cópia da presente decisão servirá de ofício para a intimação e notificação da autoridade impetrada.

Curitiba, 09 de fevereiro de 2005.

MAURO SPALDING

Juiz Federal Substituto

7ª Vara Federal de Curitiba-PR

Notas de rodapé

1- MENEZES, Paulo Lucena de. “A Ação Afirmativa (Afirmative Action) no Direito Norte-Americano”, ed. RT, São Paulo: 2001, p. 27.

2- CALAMANDREI, Piero. “Eles, os juízes, vistos por um advogado”, ed. Martins Fontes, São Paulo: 1996, p. 8/9.

3- Veja-se que, apesar de localizada no Estado do Paraná, a UFPR possibilita o acesso ao seu vestibular a todas as pessoas, sem qualquer distinção de domicílio ou origem, conforme dispõe o art. 19, inciso III, CF/88. Aqui outra indagação: seria possível a criação de quotas nos vestibulares promovidos pelas universidades sulinas aos nordestinos, só por serem estatisticamente minoria nas universidades da região sul do país? Parece que tal distinção seria igualmente inconstitucional!

4- Edição de 3 de abril de 2003, artigo intitulado “Previdência Gentil com as Mulheres”.

5- MELLO, Celso Antonio Bandeira de. “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”. Ed. RT. São Paulo: 1994.

6- Exemplos extraídos da obra “Direito Constitucional”, de Leda Pereira Mota em co-autoria com Celso Spitzcovsky, Ed. Terra, São Paulo: 1995, p. 285.

7- Veja-se que o racismo é crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, CF/88), punido com severa pena de reclusão (Lei nº 7.716/89).

8- Obtido do site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u87.shtml no dia 06/12/2004.

9- Apud LOCKHART, W.B. et al. Constitutional law: cases-comments-questions. 18ª ed. P. 1.173.

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