Pena mais rígida

Juiz aplica pena de 36 anos em caso de seqüestro relâmpago

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10 de fevereiro de 2005, 11h49

O juiz Ítalo Morelle, da 4ª Vara Criminal de São Paulo, resolveu aplicar pena mais rígida para seqüestro relâmpago. Geralmente nesses casos as penas não chegam a 10 anos dependendo da tipificação do crime feita pelo juiz. Morelle foi mais longe. Condenou o réu a 36 anos de prisão em regime fechado.

O réu já cumpria outra pena por latrocínio em regime semi-aberto quando cometeu extorsão mediante seqüestro e roubo, segundo o juiz. Para cada um dos crimes, ele aplicou a pena de 18 anos. Pelo sistema brasileiro, o tempo máximo para ficar na prisão é de 30 anos.

“O réu tem personalidade arraigada na criminalidade violenta, com franca renitência nesta. Impossível ignorar que encontrava-se em pleno cumprimento de castigo, que, o intolerável laxismo de nosso ordenamento, admite o regime intermediário, vera ‘pseudo-pena’”, afirmou o juiz.

Punição

O réu seqüestrou três mulheres e roubou celulares, além de exigir cartão bancário e senhas. Só não sacou o dinheiro porque a polícia o perseguiu antes. O carro em que estava capotou e uma das vítimas foi parar no hospital.

O professor Luiz Flávio Gomes, doutor em Direito Penal, considerou a pena “incorreta” e “exagerada”. Segundo o professor, a pena para assassinato, por exemplo, pode chegar a até 20 anos. Para ele, houve crime de roubo, que pode ser agravado com seqüestro. “Mas essa pena de 36 anos está fora dos parâmetros. Se o réu recorrer, vai conseguir revertê-la”.

Para o advogado criminalista José Luís de Oliveira Lima, o crime cometido nesse caso foi roubo e não extorsão mediante seqüestro. Segundo ele, a pena é “exagerada” e “equivocada” e, por isso, deveria ser menor.

Leia a íntegra da sentença

V I S T O S et cetera

REGINALDO DO NASCIMENTO, quantum satis qualificado e identificado no caderno dos autos a f. 18, foi denunciado e vê-se criminalmente processado, pela prática dos crimes nomen júris roubo qualificado e extorsão mediante seqüestro em concurso real e continuidade delitiva (artigo 157, parágrafo 2º., incisos I, II e V ; artigo 159, por três vezes, na forma do artigo 71, caput, todos do Código Penal e combinados com o artigo 69, caput, também do Código Penal).

Historia a exordial acusatória que, no dia 04 de agosto transacto, aproximadamente às 21 horas, na rua Conceição de Monte Alegra, nesta urbe e comarca, o réu, adrede conluiado e comungando idêntico desideratum com outrem ignoto, mediante vis compulsiva obrada com arma de fogo, impassibilizaram as vítimas Maria Clarisse Martins de Andrade, Daniela Brandão da Silva e Rosilene Ivo da Silva Guedes, contendo-as em suas liberdades e, de Maria Clarisse, despojaram-na de seu automotor Renault Scenic, individualizado a f. 02. Em tal comenos, seqüestraram todas, com o escopo de vantagem, em troca de paga de resgate.

Prossegue dando conta que os réus planearam os crimes e, alvitrando as ofendidas, valendo-se de carro outro (Ford Escort), lograram a parada do Renault. Com arma em riste, o réu dominou-as, com ameaço de morte. Tomou a direção do veículo e, em dado momento, o outro facínora adentrou no veículo. Exigiram, para a libertação das ofendidas, entrega de cartões bancários e senhas. Atendidos, esquadrinharam por caixas eletrônicos. Entrementes, defrontaram-se com viatura policial. Encetou-se acosso e, deste, sinistro, o que deu ensancha a lesões suportadas por Maria Clarisse e Rosilene. O réu foi preso em estado flagrancial e, o outro larápio, logrou dar às de vila-diogo.

O r. despacho inaugural de cunho positivo, encetador desta actio criminalis, foi proferido a f. 44.

O réu foi citado e intimado in faciem, cônsone certidão lançada no dorso de f. 55.

Audiência para interrogatório concretizada a f. 56.

Prévia in opportuno tempore ofertada a f. 59/61.

Além das vítimas (f. 68/9), inquiridas duas testemunhas (f. 70/1).

Instrução encerrada a f. 72.

Observada a fase de diligências complementares a f. 74 e verso.

Alfim e ao cabo, manifestaram-se as partes (f. 76/82 e 91/5).

O Ministério Público obsecrou a condenação do réu nos precisos termos vazados na denúncia.

A Defesa bateu-se pela absolvição. Interpolou o reconhecimento do conatus, o reconhecimento do concurso ideal ou tão-só da continuidade delitiva e a atenuante da confissão sponte propria. Arrematou pela gratuidade e pelo apelo livre.

Procedi à leitura dos autos.

Sinopse ex lege.

DECIDO.

Vinga a pretensão do Estado-acusador, pese o denodo e empenho da culta Procuradora do Estado, a quem rendemos homenagens.

Deveras e ver-se-á linhas avante.

Em juízo (f. 56), o réu externou discurso parcialmente confessório. Mais que compungido mas, bem cônscio das coisas afetas à Justiça Penal, ex-calceta, com condenação longeva e em pleno cumprimento de escarmento em regime intermediário, diante das evidências, anuiu parcialmente com o que lhe foi assacado, conquanto, intentado tenha suavizar sua responsabilização.


Articulou que, por arrostar percalços financeiros, aderiu a alvitre de um “amigo” tendente a rapinagem de um veículo. Efetuaram a abordagem e as vítimas foram postadas no banco traseiro. Seu “amigo” – jamais identificado, como procede a súcia – tomou a direção. Logo, encetou-se acosso, eis que defrontaram viatura policial. Sobreveio sinistro, com capotamento do carro pilhado. Negou o porte de arma. Negou a ordenança de senhas de cartões bancários. Negou a presença – ou uso – de um veículo Ford Escort.

Pois bem.

Indisputável a rapinagem. E o réu, solerte e matreiro, bem o sabe. Foi salteado e contido em estado flagrancial! Natural, diante de tal quadro, a impossibilidade de escape quanto a tais increpações. No mais.

Os salvatérios são insubsistentes.

Assim, as evidências coletadas sob o pavês garantidor do contraditório.

Daniela Silva (f. 68) assentou que, em companhia das demais, após deixar o labor, foram surpreendidas pelos rapinantes, com arma em riste. Um tomou a direção e o outro postou-se ao seu lado, ordenando a todas que fossem ter ao banco traseiro. Demandaram senhas e cartões magnéticos, no que foram atendidos por Clarisse. Mencionou um outro veículo, acosso policial que redundou em acidente. Em poder dos ladinos, ficaram por trinta minutos.

Maria Clarisse (f. 69) pronunciou-se de forma similar a outra vítima. Narrou que foram rendidas pelos malfeitores quando em obediência a sinal de trânsito para parada. Assim o foi, mediante ameaço com arma de fogo, apontada em sua direção. Malogrou ao esboçar tentame de fuga, eis que pressentiu que, de fato, seria alvejada. Mencionou outro veículo, que participava da investida criminosa.

Após percorrerem certa distância, um dos assaltadores foi para o banco de trás, tomando o outro, a direção de seu veículo, do qual barbaramente foi despojada. Exigiram cartões, dinheiro, senha e ela , a tudo atendeu, inclusive, na despoja de celulares. Obtemperou, apenas, quanto as letras correlatas ao complemento da senha para a efetivação de saque. Surgiu, no itinerário, uma viatura policial. Iniciou-se uma perseguição, com acidente que culminou na perda de seus sentidos.

Antonio Santos (f. 70) esclareceu quanto a sua participação no gravísimo evento. É que o réu, após o malogro de seu vil intento, quis escapulir no carro de aluguel desta testemunha. Sem êxito, contudo, eis que devidamente arrestado pela milícia.

Edson Pelizon (f. 71), confirmou os fatos alinhavados na peça acusatória. E, desmentindo o réu, deu conta da arma apreendida e periciada a f. 49. Trouxe a lume, inclusive, que esta arma fora subtraída de um policial. Confirmou que o desiderato era a prática do denominado “seqüestro-relâmpago”.

Como visto, ao reverso do obtemperado pela indefessa e combativa Defensoria, as provas são fartas e fortes. Dúvida não há que a conduta do réu subsumiu-se aos preceitos primários das normas penais incriminadoras lançadas na denúncia.

Roubo qualificado houve, sendo curial o concurso de agentes e o emprego de arma de fogo. O concurso, não foi sequer negaceado pelo réu. E, por óbvio que a ameaça foi obrada com a arma de fogo. Como explicar a apreensão da arma? Os dizeres das vítimas? E seria razoável que o réu, calceta (donde foi ter ao cárcere por latrocínio) rapinasse desarmado?

Homessa! E, um parênteses: foi o réu até beneficiado, eis que doutas vozes, face o novel Estatuto do Desarmamento, reclamar por concurso real (art. 14 ou 16 do EA), em havendo rapinagem com arma de fogo, reservada a qualificadora para, verbi gratia, a pilha com arma branca. Na mesma toada, a qualificadora correlata a privação de liberdade, eis que, como dos autos verte, por trinta terríveis minutos as vítimas ficaram à sanha dos rapinantes.

Conatus não é de se falar.

“Na realidade, o roubo atinge o momento consumativo no exato ponto em que, exercida eficazmente a violência (lato sensu), o agente logra retirar a coisa da esfera de controle imediato do sujeito passivo. Nesta altura – e com inteira desconsideração ao que venha a ocorrer subseqüentemente: ao grau de imperturbabilidade da posse da res, à existência ou não de perseguição e ao seu coeficiente de intensidade etc. – já se têm por consubstanciados todos os elementos da definição legal do roubo”(1)

Os crimes foram diversos e o concurso real é de ser conhecido.

A propósito, sempre a preciosa ensinança do luminar pátrio do Direito Penal, o saudoso Ministro NELSON HUNGRIA:

“Há entre a extorsão e o roubo (aos quais é cominada pena idêntica), uma tal afinidade que, em certos casos, praticamente se confundem…

Dizia FRANK, lapidarmente “que o ladrão subtrai, o extorsionário faz com que se lhe entregue”…

No roubo, há uma contractio; na extorsão, uma traditio…

Assim, o dizer-se que no roubo a violência e a locupletação se realizam no mesmo contexto de ação, enquanto na extorsão há um lapso de tempo, ainda que breve, entre uma e outra…

Se a extorsão não representa, necessariamente, uma espoliação dominical, pode, entretanto, assumir essa feição, isto é, consistir em coagir o dono a entregar coisa corpórea, de modo que, em tal caso, seria insuficiente a referida fórmula distintiva. Não há sair daqui: a infalível distinção entre o extorsão e roubo é que neste o agente toma por si mesmo, enquanto naquela, faz com que se lhe entregue ou se ponha à sua disposição, ou se renuncie a seu favor”(2)


Esta a hipótese dos autos.

O roubo do carro, celulares etc…a disposição ou renúncia, de cartões e senha.

E há concurso material.

Em tal sentido e por fundamento abalizada glosa pretoriana, com excertos de v. Arestos da lavra do eminente Desembargador bandeirante JARBAS MAZZONI:

“Não se podem igualar situações como a de um simples roubo, no qual se esgote a conduta criminosa e outro a que se siga o transporte compulsório e amargurado da vítima em situações de absoluto risco à sua incolumidade física e até mental. Neste último, não há exaurimento algum do delito de roubo, mas sim, o acréscimo de outro, bastante grave, contra a liberdade individual, caracterizando-se o delito de seqüestro em concurso material com o crime patrimonial”(3)

“Estando totalmente exaurido o roubo, uma vez que o réu e seus comparsas já haviam se apoderado do veículo, a supressão da liberdade de locomoção das vítimas configurou seqüestro, em concurso material com o primeiro”(4).

E, conquanto os v. Arestos encimados refiram-se a seqüestros, é hialina dos autos a extorsão mediante seqüestro, na medida da pressão ou chantagem, para volver a liberdade, mediante entrega de cartões magnéticos e senhas, consumando-se o delito. O plus consistente na efetivação do saque, foi obstado por nossa valorosa, brava e eficiente polícia, digna de encômios que, apesar do desaparelhamento oriundo do descaso das autoridades competentes, ainda consegue cumprir com galhardia seu alto mister.

Várias vítimas, com conexão temporal, especial e modal, inarredável a continuidade delitiva.

A materialidade é positivada nos autos, a par de incontroversa.

Mister o escarmento.

Gradua-se-o.

Quanto ao roubo triplamente qualificado:

A sanção básica é além do piso. O réu tem personalidade arraigada na criminalidade violenta, com franca renitência nesta. Impossível ignorar que encontrava-se em pleno cumprimento de castigo, que, o intolerável laxismo de nosso ordenamento, admite o regime intermediário, vera “pseudo-pena”, ou, nos dizeres do expoente do Direito Penal, Desembargador Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., amoldando-se in specie como mão à luva “…conceder regime…intermediário a autor de roubo não significa apenas abrir uma porta para a impunidade, mas, em verdade, rasgar a via larga da reincidência. Provam-no as alarmantes estatísticas dos institutos penais agrícolas e sobre a execução de crimes por supostos reclusos em tal sistema. Em poucas palavras: regime outro que não o fechado para assaltante é crime de lesa-sociedade”(5). Personalidade túrpida, pois, com indizível desajuste social. Não há que se olvidar, também, a organização para a rapinagem, com comunicação por celulares, como narrou uma das vítimas. Também, as circunstâncias, ante a poltronice em escolher vítimas mulheres que, com certeza, a reação não é de se esperar ou, ao menos, é afrouxada, tudo tendente à facilitação do torpe intento. Também, o arrojo ímpar, com espetacular fuga, pondo em risco, não apenas transeuntes, mas as infelizes vítimas, que se encontravam no veículo – aliás, houve necessidade de recurso a nosocômio, em razão do sinistro, servindo isto, também, como conseqüência do ilícito. Assim, necessário e suficiente para a reprovação e prevenção, é a fixação da pena-base no dobro do piso, ou seja, 08 anos de reclusão e 20 dias-multa.

O réu é reincidente, pelo que acresce-se a pena em ¼ (um quarto), alcançando 10 anos de reclusão e 25 dias-multa. A confissão não é de ser reconhecida, eis que parcial e tendente a suavizar a reprimenda, naquilo em que esta tem de mais severa. Antes que arrependimento, evidencia solércia. Em sendo três as qualificadoras, com concurso de agentes (vários, como é dos autos, ante comunicação por celulares) emprego de arma de fogo com diferenciado potencial ofensivo, atestado a f. 49/50, e restrição da liberdade, a pena é acrescida pela metade, somando 15 anos de reclusão e 37 dias-multa. Ante a continuidade delitiva, em sendo três as vítimas, acresce-se à pena em 1/5, somando 18 anos de reclusão e 44 dias-multa.

O valor unitário da diária é raso, à míngua de informes quanto à situação econômico-financeira do réu.

O regime inicial de cumprimento da corporal, ante a quantidade de pena, bem como, pela recidiva, não olvidando-se ser o mais gravoso o único que ajusta-se a ladroagem violenta é o fechado.

Quanto ao crime de extorsão mediante seqüestro, as razões encimadas, por praticidade, são emprestadas para a graduação da reprimenda básica que, por sua vez, também deve ser além do piso. Necessário e suficiente que seja fixada na metade além do piso, montando 12 anos de reclusão. O réu não confessou. Pela reincidência, acresce-se-a em ¼ (um quarto), atingindo 15 anos de reclusão. Ante a continuidade delitiva, em sendo três as vítimas, ajunta-se mais 1/5 (um quinto), alcançando 18 anos de reclusão.

Em sendo crime capitulado como hediondo, o regime de cumprimento da corporal é o integralmente fechado ex vi legis (artigo 2o., parágrafo 1o., da Lei Federal n. 8.072, de 1.990).

Ante o concurso real, congregam-se as penas, que, em definitivo, alcança 36 anos de reclusão e 44 dias-multa.

Incólumes os motivos conducentes à custódia cautelar, máxime, ante o acolhimento da pretensão estatal nas condições encimadas. Decisão oposta seria contra-senso.

Nestes termos:

JULGO PROCEDENTE a presente ação penal e o faço para CONDENAR o réu REGINALDO DO NASCIMENTO, natural de Ribeirão Pires-SP, nascido no dia 03/11/1.971, filho de xxxx e xxxxx, às penas de 36 (trinta e seis) anos de reclusão e 44 (quarenta e quatro) dias-multa como incurso nas regras dos artigos 157, parágrafo 2º., incisos I, II e V e artigo 159, ambos do Código Penal, em continuidade delitiva (artigo 71 do CP) e concurso material (artigo 69 do CP).

Expeçam-se os necessários.

Recomende-se-o no estabelecimento prisional em que já se encontra.

Oportunamente, cópia às vítimas e lancem-se-lhe o nome no rol dos culpados.

Custas pelo réu, em 100 UFESP, suspendendo-se a exigibilidade por um lustro (art. 12, Lei 1.060/50), ora deferida a gratuidade.

P.R.I.C.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2.005.

ITALO MORELLE

Juiz de Direito

Nota de rodapé

1- “Em Torno do Roubo” – Des. Volney Corrêa Leite de Moraes Jr. – Millennium – 2.003, p. 53

2- “Comentários ao Código Penal” – Vol. VII – Forense/Rio, 2a. Ed., 1.958, pp.66/7

3- TJSP – RT 676/284

4- TJSP – JTJ 143/298

5- Op. cit., pp. 21/2

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