Interceptação ilegal

Leia voto de Gilmar Mendes que livrou Casem Mazloum na Anaconda

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8 de fevereiro de 2005, 8h48

O voto do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, livrou o juiz Casem Mazloum de responder a processo por interceptação telefônica ilegal na ação que julgou os envolvidos na Operação Anaconda. Para Gilmar Mendes, que abriu a divergência, a denúncia não preenchia “os requisitos para o desenrolar de uma ação penal garantidora do legítimo direito de defesa”.

Votaram pela concessão do Habeas Corpus os ministros Gilmar Mendes, Carlos Velloso e Celso de Mello. Os ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie votaram contra o pedido de Casem Mazloum, mas foram vencidos.

No mesmo julgamento, feito no dia 14 de dezembro do ano passado, a 2ª Turma do Supremo também extinguiu, por unanimidade, a denúncia por crime de falsidade ideológica a que o juiz respondia. Casem também é apontado pelo Ministério Público Federal como um dos integrantes de esquema de venda de sentenças judiciais.

Dos 11 denunciados pela Operação Anaconda, 10 foram condenados por formação de quadrilha em julgamento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em 17 de dezembro. O juiz Casem Mazloum foi condenado a dois anos de reclusão, mas teve a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos.

Leia o voto de Gilmar Mendes

07/12/2004

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 84.388-3 SÃO PAULO

V O T O – V I S T A

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – :

Após o voto do Ministro-Relator pela concessão parcial da ordem para afastar o crime de falsidade ideológica imputado ao paciente, pedi vistas dos autos para analisar a acusação também atribuída de crime de interceptação telefônica.

Estando o processo pronto para julgamento na semana passada, por solicitação do advogado, aguardei que fosse encaminhada petição com documentos acerca da efetiva realização ou não da interceptação supostamente ilegal.

Protocolada a petição em 18 de novembro próximo passado, apresento o processo em mesa para julgamento.

O paciente foi denunciado pelo como incurso nas sanções do: a) art. 299, com a agravante do art. 61, II, alínea g, ambos do Código Penal; e b) art. 10 da Lei nº 9.296/96, com as agravantes do art. 61, II, alíneas a, c e g, ambos do Código Penal.

Relativamente à primeira imputação, na sessão anterior, esta Segunda Turma já se posicionou pela concessão da ordem para trancar a ação penal. Quanto à segunda, pedi vista dos autos para melhor examinar a questão.

A denúncia assim descreve a conduta criminosa atribuída ao paciente:

“Constam dos autos arquivos de áudio e de conversas entre o Juiz Federal CASEM MAZLOUM e o Agente de Polícia Federal CÉSAR HERMAN RODRIGUEZ (…). CAZEM liga para CÉSAR em 17.09.2002. Conversam sempre de forma cifrada, sobre uma reunião à qual CÉSAR compareceu e na qual teria tratado de assuntos de interesse comum:

(…)” (fl. 40)

Em seguida, passa a transcrever conversas telefônicas entre esses denunciados:

“CÉSAR – Alô.

CASEM – Alô.

CÉSAR – Oi

CASEM – Oi, Herman?

CÉSAR – Oi, Dr. Mazloum, tudo bem?

CASEM – Tudo bom, tudo em ordem?

CÉSAR – Tudo jóia.

CASEM – E aí, já teve a reunião lá?

CÉSAR – Tive. Tive, teve muito interesse, tá, vai ser… vai estudar de hoje pra amanhã, tá, agora… eu fui obrigado a deixar o… uma cópia lá, até… até pra poder ser estudado, né?

CASEM – Lógico, lógico.

CÉSAR – mas tem um compromisso lá… de que… qualquer start agora, tá, depende… depende da gente, tá?

CASEM – Ah, tá.

CÉSAR – Então, já tá dado o start, … eu não quis passar nome nem nada, mas… já avisei que… teria um pessoal, não é, que estaria junto com a gente, né… aí… e realmente, se eles falarem vamo tocar pra frente, tá, aí vamos ter uma reunião junto com… com o senhor.

CASEM – Ah, tá legal.

CÉSAR – Aí vai ser bem fechada, tá, se for pra acontecer vai ser nesses próximos dois dias.

CASEM – Ah, então tá bom, aí você me avisa e…

CÉSAR – Bom, e eu já falei, né? Eu já avisei que o material tá entregue e que se por um acaso eu tiver em algum lugar nós vamos saber se foi utilizado ou não o material, né?

CASEM – Certo.

CÉSAR – mas já sabemos que tem algum tipo de… de… de… reconhecimento, né?

CASEM – Certo, tá bom. … escuta… bom, aí você me avisa, né

CÉSAR – Aviso. Com certeza.

CASEM – Bom, outro motivo também que eu tô te ligando, tem um amigo meu, uma pessoa de confiança, né, e… ai tem um… um amigo dele que é uma pessoa aí… um prefeito aí, né… precisa grampear um…

CÉSAR (interrompe) – ah, a gente tem … a gente tem que se falar pessoalmente.

CASEM – Certo.

CÉSAR – Sem problema.

CASEM – tá bom, e… é celular, né.


CÉSAR – esses é mais problemático, tá, depois eu te explico porquê.

CASEM – Tá bom, então faz o seguinte, é … cê vai estar lá amanhã, vai estar por aqui?

CÉSAR – Eu vou estar por aqui amanhã, tá, e eu marquei, eu tô tentando marcar uma reunião amanhã, tá, com o… Abdo, tá?

CASEM – Certo.

CÉSAR – Eu quero ver se o pessoal realmente vai, daí, não falou que ia ajudar? eu quero deixar que ele tome o pé da situação tá, então amanhã de qualquer maneira eu estou vendo se eu tenho uma reunião com ele.

CASEM – tá.

CÉSAR – em relação a isso, só uma coisa, muito… o… só se for o fixo, tá, é cem por cento pra fazer de imediato, tá, agora o… o outro, não.

CASEM – o outro… ah… aquela… aquele aparelho lá que fica clonando…

CÉSAR – (corta DE IMEDIATO): não, mas daí, não, eu te explico, eu explico tudo como funciona, até lá o… o… oficial.

CASEM – Ah, tá.

CÉSAR – Tá.

CASEM – Bom, vamos fazer o seguinte, amanhã se você estiver por aqui vamos combinar, a gente se encontra aí em algum lugar, aqui, no aeroporto… CÉSAR – Tá bom, tá bom, tá bom. Eu estou correndo atrás, estou tentando salvar o que dá pra salvar ali do João também né?

CASEM – ah, e lá como é que tá?

CÉSAR – eu tive com ele, ele tá mal, né.

CASEM – Ele tá mal?

CÉSAR – Tá mal, sabe, eu tô… eu já fiz as ações, né, pra ver se consegue anular o casamento lá e pra fazer o reconhecimento dela aqui.

CASEM – e ela tá pegando no pé dele aqui?

CÉSAR – não, ela tá dando uma folga, em relação por exemplo aquelas conversa maluca dela, ela tá dando uma folga, tá, agora em relação às perdas de bônus dela, aquelas coisas, isso não.

CASEM – de o que?

CÉSAR – em relação homem e mulher, dele ter levado a menina…

CASEM – a menina lá?

CÉSAR – é, levar pra dentro de casa…

CASEM – ele tá junto com ela de novo, né?

CÉSAR – não, está no mesmo teto, né.

CASEM – Morando perto?

CÉSAR – é, no mesmo teto.

CASEM – ah, bom, vamos ver se amanhã a gente se encontra?

CÉSAR – olha, esses dois dias são dois dias que… vão acontecer, assim, ou vamo acontecer muita coisa ou nós vamo deixar tudo de mão e deixar quieto, tá, então vai acontecer realmente bastante coisa, tá, é… eu falei direto co … com o pessoal mesmo, tá, e o pessoal ficou assim super interessado.

CASEM – Ah, tá.

CÉSAR – tá… naquele material que o senhor leu o final de semana.

CASEM – Ah, tá. Tá bom, então, e… então eu vou ver se a gente sé encontra aí amanhã pra gente conversar direitinho.

CÉSAR – Tá bom.

CASEM – Tá bom?

CÉSAR – Tá bom então, tá?

CASEM – Tá legal então.

CÉSAR – Eu estou em casa, qualquer coisa… o João vai passar aqui daqui a pouco.

CASEM – ah, ele vai passar ai?

CÉSAR – vai.

CASEM – tá bom, então. Bom, a gente se fala amanhã então.

CÉSAR – Tá bom então.

CASEM – Um abraço.

CÉSAR – Um abraço, tchau.” (fls. 40-43)

Após, afirma:

“O Juiz Federal CASEM MAZLOUM engendrou junto ao Agente de Polícia Federal CÉSAR HERMAN RODRIGUEZ todas as providências para realizar uma interceptação telefônica clandestina, com se verifica também da conversa entre ambos no dia seguinte, 18.09.2003.” (fl. 45)

Em seguida, transcrevem-se mais conversas telefônicas:

“CASEM – Alô.

CÉSAR – CÉSAR.

CASEM – Oi.

CÉSAR – Oi, é CÉSAR, tudo bem?

CASEM – Tudo bom?

CÉSAR – Tudo bom. Falou com seu amigo ontem?

CASEM – Com…?

CÉSAR – Com seu amigo ontem, lá de Cotia?

CASEM – Ah, eu liguei pra ele e aí diz que você falou prá ele que ia ser dificil o celular né?

CÉSAR – Não, é, dificil não, é oneroso, tá?

CASEM – Hã?

CÉSAR – É oneroso.

CASEM – Ah, oneroso…

CÉSAR – É oneroso, muito oneroso. Agora é o seguinte: ele falou que te deu o nome do rapaz?

CASEM – Eu tenho o nome.

CÉSAR – Eu levantei o nome, o endereço, o carro, ele falou…

CASEM – O endereço do que? Da… do… lá da …

CÉSAR – Tudo, tudo, tudo. Confirmei que o caso existe, ele falou isso, né?

CASEM – ó, eu não tô entendendo, o cara…

CÉSAR – ele veio com uma suspeita de que a mulher do rapaz lá teria um caso com o exsegurança da… da… da empresa que fez a segurança pra ele, tá? Aí, o que aconteceu: ele tinha o número do telefone que ele tinha uma suspeita, tá? Aí eu levantei o número do telefone, tá, de quem usava o telefone, o nome dele, e bateu com o nome do segurança…

CASEM – Ah, tá…

CÉSAR – …depois que ele já tinha sido demitido, no período que ele viajou para o Líbano.


CASEM – Ah…

CÉSAR – ..(inaudível)… acontece todos os dias, então

CASEM – Ô, a ligação tá ruim, rapaz, não tô quase entendendo nada. Mas escuta, e aí você queria que…

CÉSAR – Bom, agora, o que eu tô fazendo é assim, eu tô levantando essa possibilidade pra ele, tá, que o problema dele não é nem questão da separação, tá, é móstrar pras filhas.

CASEM – é, ele falou isso aí.

CÉSAR – (inaudível) tá ruim a ligação.

CASEM – Alô?

CÉSAR – Alô, agora melhorou, né?

CASEM – É… cê tá falando de celular ou de fixo?

CÉSAR – De celular.

CASEM – De celular.

CÉSAR – É. Então, o rapaz lá, é… ela realmente tem um contato com o ex-segurança que ficou até maio, em maio o ex-segurança foi demitido e de maio em diante ela continua mantendo contato com esse segurança via celular dela, tá? Como o celular dela ela tem assim um milhão de ligação, tá, eu levantei exatamente o telefone que o cara tava usando, tá? Então, levantei o telefone que o cara tava usando, eu levantei o nome do cara, dei pro seu amigo ver e escutar que é o cara mesmo, entendeu?

CASEM – Ah, então fica fácil agora pra… pra ver o…

CÉSAR – é, agora eu tô pedindo o reverso, eu tô pedindo a… eu tô pedindo agora a conta de telefone dele, pra provar que ele também liga pra ela.

CASEM – Ah, tá.

CÉSAR – Entendeu?

CASEM – Ah, sim, é que esse cara aí é muito meu amigo, viu, se você puder dar uma…

CÉSAR – não, eu falei pra ele que não é uma coisa que a gente…. não é uma coisa que a gente…. não é o que a gente… não é o nosso metier, mas que nós tava fazendo isso pra ele já em consideração a isso…

CASEM – Ah, tá

CÉSAR – Porque é uma coisa trabalhosa, ele já tinha sido acharcado aí por um monte de… de… de…

CASEM – Exatamente!

CÉSAR – …de picareta. Então falei aqui não tem isso, tá, ajudamo, ajudamo. Levantei o carro do cara, o endereço do cara, os dados do cara todinho, tá, o telefone que o cara falava com ela, provei que ela falava com o cara, levantei que o telefone é do cara, então isso aí já tá tudo levantado, tá? Agora eu tô tentando ver se eu consigo pegar a conta do cara ligando pra ela.

CASEM – ah… tá.

CÉSAR – tá, aí o cara tem um convite mesmo próprio…

CASEM – é… alô, alô, alô.

CÉSAR – entendeu?

CASEM – celular é uma bosta … alô, alô, alô (CAI A LIGAÇÃO).” (fls. 45-47)

Ao final, arremata a exordial:

“Ilegalmente, o juiz federal criminal CASEM MAZLOUM intercedeu junto a seus ‘colaboradores’, em especial o co-acusado CÉSAR HERMAN, para providenciar a interceptação telefônica ilícita, em conduta que caracteriza o crime previsto no artigo 10 da Lei nº 9.296/96. No caso do magistrado, incidem ainda as agravantes do artigo 61, II, alíneas a, c e g, bem como o artigo 62, inciso I, ambos do Código Penal.” (fl. 50)

Dispõe o referido art. 10 da Lei nº 9.296/96:

“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.”

Ao analisar as condutas típicas previstas nesse preceito, assevera Damásio de Jesus:

“De acordo com norma incriminadora, configura delito o fato de quem, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei, realiza interceptação de comunicação telefônica, de informática ou telemática, ou quebra de segredo de justiça referente à diligência (arts. 1º, caput, e 8º, caput, da Lei).

Realizar a interceptação significa ouvir a conversação ou gravá-la. Cuidando-se de mensagem transmitida via Modem ou Internet, quer dizer dela tomar conhecimento, lê-la, vê-la (desenho) ou captá-la.” (JESUS, Damásio E. “Crime de Interceptação de comunicações telefônicas. Notas ao art. 10 da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996.” Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 8, n. 4, out./dez. 1996, p. 185-188, p. 187)

Relativamente ao momento consumativo do crime, esclarece Damásio:

“Ocorre no instante em que o sujeito está iniciando a gravação da conversação ou começa a ouvi-la. Tratando-se de mensagem ou documentos transmitidos via Modem ou Internet, quando principia a captá-los ou dele tomar conhecimento.” (JESUS, op. cit., fl. 188)

Sobre esse aspecto, leciona Vicente Greco Filho:

“(…) O crime consuma-se com o ato de interceptar, ou seja, intervir, imiscuir-se, ingressar em, independentemente de a conversa vir a ser gravada. Em tese admite-se a tentativa.” (GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 42)

E, é ainda, Vicente Greco que adverte:

“O crime se consuma com a interceptação, ou seja, com a escuta realizada por terceiro da conversa entre outros interlocutores, qualquer que seja o meio técnico utilizado e independente da revelação da comunicação a outrem. A divulgação da comunicação é mero exaurimento do delito. O crime comporta tentativa como, por exemplo, se o agente é interrompido no ato de implantar o instrumento para a interceptação.” (GRECO FILHO, op. cit., p. 43)


Para que se examine a aptidão da denúncia, resta se fazer a leitura do disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, verbis:

“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”

Sobre a denúncia ensina o clássico João Mendes de Almeida Júnior, verbis:

“É uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincomac, 1. III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunhas e informantes.” (ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro, v. II. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 183)

São lições que devem ser sempre relembradas!

Observa-se da leitura da denúncia oferecida contra o paciente, em especial das fls. 40-50, que não se demonstra na descrição dos fatos, a configuração dos elementos do tipo, a caracterizar qualquer das condutas nele contempladas, seja na forma tentada, seja na consumada, do art. 10 da Lei nº 9.296/96.

A denúncia limita-se a transcrever conversas telefônicas, sem a observância dos requisitos mínimos à persecução criminal.

A decisão de recebimento da denúncia também não é esclarecedora quanto às alegações, verbis:

“No que concerne ao delito tipificado no art. 10 da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, significativas as conversações voltadas à efetivação de escuta telefônica clandestina.

Em 17 de setembro de 20023, CASEM MAZLOUM pediu ao também acusado CÉSAR HERMAN que a providenciasse, para auxiliar um amigo (fl. 06).

(…)

São transcritas, ainda, conversações entre CÉSAR HERMAN e ‘Caled’ ou ‘Khaled’, ao que consta, primo de CASEM, por indicação deste. Tratam da obtenção de contas telefônicas (fls. 14/15).

Como se vê, ao contrário do que sustenta a defesa de CASEM MAZLOUM, os atos praticados não consubstanciam mera cogitação.

Importante ressaltar que o acusado CASEM em momento algum nega o pedido feito ao co-réu CÉSAR, visando à interceptação clandestina. Além de confirmá-lo, acrescentou que tal pedido foi alterado para obtenção de extratos telefônicos.

As conversações revelam que CÉSAR viabilizou uma escuta ao amigo de CASEM para confirmar se se tratava da pessoa de quem suspeitava (fl. 12). Há elementos, portanto, acerca da realização de interceptação, fora das hipóteses legais e sem autorização judicial, que se subsumem ao tipo previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/1996. Interceptação requerida por CASEM MAZLOUM, interditando os interesses de um amigo. Interceptação que contou com o auxílio de CÉSAR HERMAN.

Não se pode negar, em princípio, tenham concorrido para a infração penal, ainda que não tenham pessoalmente realizado a interceptação.” (fls. 79-81)

Como se vê, tanto na denúncia quanto na decisão de seu recebimento há um forte quid de imaginação e de ausência de elemento de realidade.

A doutrina desta Corte é bastante precisa a respeito da qualidade da denúncia.

É que denúncia imprecisa, genérica, vaga, além de traduzir persecução criminal injusta, é incompatível com o princípio da dignidade humana e com o postulado do direito à defesa e ao contraditório.

A propósito, vale transcrever trecho da ementa de acórdão de relatoria do eminente Ministro Celso de Mello:

“MINISTÉRIO PÚBLICO – APTIDÃO DA DENÚNCIA. O Ministério Público, para validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma necessária base empírica, a fim de que o exercício desse grave dever-poder não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal. O ajuizamento da ação penal condenatória supõe a existência de justa causa, que se tem por inocorrente quando o comportamento atribuído ao réu ‘nem mesmo em tese constitui crime, ou quando, configurando uma infração penal, resulta de pura criação mental da acusação’ (RF 150/393, Rel. Min. OROZIMBO NONATO). A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o pleno exercício do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta.” (HC 73.271, DJ 04.10.94)

Em outro habeas corpus, também da relatoria do Ministro Celso de Mello extrai-se o seguinte excerto:

“O processo penal de tipo acusatório repele, por ofensivas à garantia da plenitude de defesa, quaisquer imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias, omissas ou ambíguas. Existe, na perspectiva dos princípios constitucionais que regem o processo penal, um nexo de indiscutível vinculação entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta e o direito individual de que dispõe o acusado a ampla defesa. A imputação penal omissa ou deficiente, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado, qualifica-se como causa de nulidade processual absoluta. A denúncia – enquanto instrumento formalmente consubstanciador da acusação penal – constitui peça processual de indiscutível relevo jurídico. Ela, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal, define a própria res in judicio deducta. A peca acusatória deve conter a exposição do fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta.” (HC 70.763, DJ 23.09.94)

Ressalte-se que, na espécie, não se está a discutir matéria probatória – se a interceptação teria efetivamente ocorrido ou não -, pois tal exame poderia transcender os limites estreitos do habeas corpus e não há nos autos elementos suficientes para uma análise categórica a esse respeito.

Assinale-se, por inegável, que a petição, posteriormente, apresentada pelo impetrante com transcrição de depoimentos das testemunhas parece evidenciar que, efetivamente, não houve a cogitada escuta.

Não é imprescindível, porém, definir tal questão no âmbito do presente habeas corpus.

Assim, independentemente de qualquer outra consideração, afigura-se inequívoco que a denúncia, tal como posta, não preenche os requisitos para o desenrolar de uma ação penal garantidora do legítimo direito de defesa.

Nesses termos, em face da manifesta inépcia da denúncia, o meu voto é no sentido de também quanto à segunda imputação atribuída ao paciente (art. 10 da Lei nº 9.296/96) conceder a ordem de habeas corpus.

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