Queda de braço

Supremo suspende aumento de repasse de verbas ao TJ paulista

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3 de fevereiro de 2005, 17h22

O aumento do repasse, de 3% para 21%, das custas e emolumentos dos cartórios para o Tribunal de Justiça de São Paulo está suspenso. O Plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu liminar pedida pelo governador paulista, Geraldo Alckmin, contra a resolução do TJ que estabeleceu a nova alíquota.

O relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ministro Gilmar Mendes, acolheu os argumentos apresentados pelo governo paulista. Para Alckmin, a decisão do TJ violou o artigo 167 da Constituição, ao remanejar recursos de um órgão para outro sem prévia autorização legislativa e ao instituir fundo, também sem a devida autorização.

Para aumentar o repasse, o TJ-SP se baseou na Emenda Constitucional 45 (Reforma do Judiciário), que estabelece: “As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça”.

Mas o STF entendeu que o dispositivo que permitiria o aumento do repasse não é auto-aplicável. “Assim, nesse juízo liminar, tenho como plausível a tese do requerente (governo de São Paulo), no sentido de que o Tribunal de Justiça de São Paulo teria, indevidamente, invadido esfera reservada à lei”, afirmou Gilmar Mendes.

O governo paulista também alegou que a entrada em vigor da resolução, prevista para o dia 10 de fevereiro, traria prejuízos à Fazenda estadual. “Não tenho dúvida da conveniência política da suspensão do ato, tendo em vista o conteúdo desagregador da medida adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo com a imediata repercussão na relação entre os poderes daquele estado”, afirmou o ministro.

A Procuradoria-Geral do Estado afirmou que se a resolução entrasse em vigor provocaria o desvio anual de cerca de R$ 400 milhões dos cofres públicos estaduais — verba destinada, na maior parte, ao custeio da assistência judiciária. “A conseqüência imediata seria a paralisação de todos os processos penais de réus que não têm condições de pagar um advogado”, sustentou o procurador do Estado, Elival da Silva Ramos.

O governador paulista sustentou, ainda, que as verbas são extrajudiciais. Por isso, não se enquadram no dispositivo constitucional citado pelos desembargadores e devem ser destinadas ao poder público estadual. A liminar foi deferida por maioria, com votos vencidos dos ministros Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso.

ADI 3.401

Leia o voto do ministro Gilmar Mendes

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): O Governador do Estado de São Paulo ajuiza a presente ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar de suspensão da vigência, em face da Resolução nº 196, de 19.1.2005, editada pelo órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

A referida Resolução nº 196/2005 dispôs, em seu artigo 1º, que o “recolhimento dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registros, dirigido ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, passa de 3,289473% para 21,52633%”. Com isto, segundo o requerente, estaria o Poder Judiciário absorvendo “parcela de 17,763160% que, nos termos reconhecidos na motivação mesma do ato ora impugnado, constitui receita do Estado – vale dizer, Poder Executivo – à luz de legislação local”.

Nos termos da inicial, “tal comando, segundo se lê logo a princípio na sobredita Resolução, visaria a dar cumprimento ao disposto no § 2º, do artigo 98, da Constituição da República (com a redação que vem de lhe ser dada pela Emenda nº 45, de 8.12.2004), segundo o qual as ‘custas e emolumentos serão destinados ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça’.”

E ainda, continua o requerente, “em seu artigo 2º, […] dispôs a Resolução em mira que o ‘recolhimento da taxa judiciária, anteriormente (sic) procedida na Guia de Arrecadação Estadual – GARE, doravante será efetuado em GUIA DE RECOLHIMENTO própria do FUNDO ESPECIAL DE DESPESA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (…). observando-se os novos códigos de receita” (destacado no original) em seguida especificados”.

A motivação do ato normativo, nesse art. 2º, segundo o requerente, seria a seguinte:

“Cuida-se, segundo se lê no quinto parágrafo de seus considerando, de absorver, em detrimento da Fazenda do Estado, 60% do montante arrecadado do aludido tributo, atualmente destinado ao Poder Executivo nos ternos de legislação local.”

Quanto ao cabimento da ação direta, afirma o requerente:

“2. É assente a jurisprudência dessa Suprema Corte no admitir o ingresso de ADIn contra ato normativo estadual infralegal, contrário à Constituição Federal, desde que dotado de caráter impessoal, genérico e abstrato. Confiram-se, nesse exato sentido, as ADIns. 962-1/MC (DJ de 11.2.1994) e 1.088-PI/MC (RTJ 155/430).


Especificamente no que tange à impugnação de resoluções revestidas dos atributos recém-indicados, editadas por Tribunais ou órgãos colegiados destes, é igualmente firme o entendimento desse Excelso Pretório na direção de sua admissibilidade: ADIn 870-DF (RTJ 151/423), ADIn 942-PR/MC (RTJ 151/842) e ADIn 664-SP/MC, RTJ 152/779), dentre outras.

Ora, a propósito da natureza do ato normativo aqui guerreado, não há espaço para hesitações. Cuida-se de ato administrativo editado por órgão do Poder Judiciário, contendo precisamente as características assinaladas no parágrafo precedente: o diploma não possui efeitos concretos, vale dizer, seu raio de incidência não está delimitado por um número definido de destinatários. Note-se ainda, como também já decidido pelo Plenário desse Tribunal Supremo, que ‘a determinalibilidade dos destinatários da norma não se confunde com a sua individulização que, esta sim, poderia convertê-lo em ato de efeitos concretos, embora plúrimo’ (ADIn 2.137-RJ/MC:; RU 173/490).

Não se impugna aqui, C. STF, determinada destinação de recursos, como sói ocorrer – exemplifico – em leis de diretrizes orçamentárias. Os alvos desta ação direta são, antes, dispositivos que conferem, genericamente, (i) equivocada e inconstitucional natureza a emolumentos oriundos de atividade notarial e de registro e (ii) inconstitucional transferência de recursos, porque desacompanhada de autorização legislativa.”

Em seguida, o requerente expõe os fundamentos da ação direta.

O primeiro argumento tem como foco a interpretação conferida pelo TJSP ao art. 98, § 2º, da Constituição, nos termos da Emenda 45, de 2004. Consta da inicial:

“3. Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, passou o artigo 98, § 2º., da Lei Maior a dispor […] que ‘as custas e emolumentos’ sejam ‘destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades especifícas da Justiça’.

Pois bem. Cuidando-se de artigo inserto em capítulo intitulado ‘Do Poder Judiciário’, a mais singela interpretação sistemática indica que as custas e emolumentos referidas pelo constituinte derivado são as custas processuais e os emolumentos judiciais. Estes últimos, como é bem sabido, correspondem à taxa devida pela prestação de certos serviços que, por seu turno, não emanam diretamente da prática de atos processuais. É o que sucede, por exemplo, quando da expedição de certidões (v.g., de objeto e pé), da reprodução de peças do processo, da autenticação de determinadas comunicações (ofícios requisitórios, dentre outros). A existência de emolumentos judiciais, de resto, é reconhecida repetidamente pelo legislador processual (cf., p. ex., CPC, arts. 585, V, e 1.212, parágrafo único; Lei Federal nº 6.830/80, art. 39. caput).

Ora, esses emolumentos judiciais nada, em absoluto, têm a ver com os emolumentos extrajudiciais, que por seu turno constituem, como é igualmente sabido de todos, contraprestação dos atos praticados pelos serviços notariais e de registro (Constituição da República, art. 236, § 2º). Os serviços por último referidos – não custa recordar – são exercidos em caráter privado, embora por delegação do Poder Público (CR, art. 236, caput), estando reservada ao Poder Judiciário tão-só a fiscalização desses atos (idem, § 1º.). A ninguém haverá de ocorrer, pois, que notários e registradores, ao garantirem a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia de atos jurídicos, exerçam atividade especifica da Justiça, isto é, a jurisdição. Deveria ser suficiente, aliás, atentar para o discrímen de que se serviu o constituinte originário, não incluindo os serviços notariais e de registro no Capítulo III, do Título IV, da Carta Magna.

A fiscalização exercida pelo Poder Judiciário sobre os preditos serviços não infirma, naturalmente, o que se vem de expor. A ninguém ocorrerá que os emolumentos extrajudiciais visem exclusivamente a remunerar tal atividade. Bem ao contrário, a própria Resolução impugnada indica que cerca de 79% da receita proveniente dos emolumentos em exame destina-se a remunerar os próprios serviços de notários e registradores, sendo certo que a fração restante (aproximadamente 21%) tem como destinatários o Poder Público, responsável pela delegação do serviço, e o Poder Judiciário, encarregado de sua fiscalização.

O artigo 1°. da Resolução 196/2005, editada pelo órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, perpetrou acintosa inconstitucionalidade ao se apropriar de toda a receita de emolumentos extrajudiciais devida ao Poder Público, pretextando, para tanto, o cumprimento do artigo 98, § 2º, da Lei Maior, que em verdade reserva ao Judiciário a receita (custas processuais e emolumentos judiciais) tão-só de suas próprias e específicas atividades. Essa agressão ao Texto Constitucional consiste, pois, em emprestar ao vocábulo ‘emolumentos’, quando surge no artigo 98, § 2°, extensão que este absolutamente não possui. Há mais, porém. Ao assim proceder, a Resolução vergastada transforma a atividade notarial e de registro em ‘serviços afetos à atividade específica da Justiça’ (art. e par. cit), o que contraria frontalmente o artigo 236, caput e § 1°., da Carta Política: nenhuma atividade específica da Justiça é exercida em caráter privado e nenhuma fiscalização do Poder Judiciário é capaz de metamorfosear a natureza do objeto sobre o qual incide.”


Conclui o requerente, nesse ponto:

“Peço vênia, ao arrematar este tópico, para registrar que à Resolução hostilizada não escapou inteiramente a audaciosa inconsistência de seu artigo 1º., pois, se os emolumentos contemplados pelo artigo 98, § 2º., da CF fossem efetivamente os extrajudiciais, o produto integral de sua arrecadação – e não apenas 21% dessa receita – deveria ser canalizado ao Judiciário, o que aniquilaria por completo, em escala nacional, a atividade notarial e de registro. Não foi esse, obviamente, o desiderato do constituinte derivado.”

O segundo argumento formulado na inicial refere-se à potencial invasão, pelo ato impugnado, de matéria sujeita a reserva legal. Diz o requerente:

“4. Nos termos do artigo 167, VI, da Constituição da República, são vedados ‘a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos (…) de um órgão para o outro, sem prévia autorização legislativa’. Dispõe ainda esse mesmo artigo, em seu inciso IX, ser vedada ‘a instituição de fundos de qualquer natureza, sem prévia autorização legislativa’. Tendo em mente esses parâmetros constitucionais, parece evidente que a modificação da destinação da receita auferida com a cobrança da taxa judiciária, incluindo o quantum devido a diferentes fundos, é matéria sujeita a estrita reserva legal. A Resolução impugnada reconhece expressamente, de resto, a necessidade de lei para esse fim, confirmando, no quinto parágrafo de seus consideranda, que a distribuição do montante da taxa judiciária arrecadada é hoje objeto de disciplina por parte de legislação local.

Ora, dita Resolução, em seu artigo 2°., contrariou ostensivamente a reserva legal incidente sobre a matéria ao modificar, sem prévia autorização legislativa, a destinação da receita mencionada no parágrafo precedente, suprimindo inteiramente a parcela que, por lei, cabe à Fazenda do Estado. E, também aqui, o pretexto foi o de dar cumprimento ao novel § 2º., do artigo 98, da Lei Maior, segundo o qual custas e emolumentos destinam-se a custear os serviços afetos a atividades específicas da Justiça.

Pois bem. O fim a que se destinam as sobreditas custas e emolumentos não implica, em absoluto, que devam estas ser recolhidas diretamente ao caixa do Poder Judiciário. Note-se que, mesmo após a EC 45/2004, permanece vigente, embora com nova redação, o artigo 168 da Constituição Federal, segundo o qual os recursos correspondentes às dotações orçamentárias do Poder Judiciário ser-lhe-ão entregues, até o dia 20 de cada mês, em duocédimos.

O artigo 98, § 2°., da Carta Política não comporta pois interpretação isolada, a expensas do que dispõe o mesmo Texto em seus artigos 167, VI e IX, e 168. A instituição e modificação de fundo, assim como a transposição, o remanejamento ou transferência de recursos, é matéria sujeita a reserva legal, sendo irrelevante, para esse fim, que a Lei Maior tenha agora disposto, expressamente, que a receita da taxa judiciária pertence ao Judiciário. Não se controverte a este último respeito, naturalmente. Todavia, os recursos obtidos com a arrecadação desse tributo integram o conjunto de receitas do Judiciário, já constantes da peça orçamentária aprovada para o exercício de 2005, que lhe devem ser entregues em duodécimos, na forma do artigo 168 da Carla Magna.”

O requerente assim conclui esse ponto:

“Sob este último aspecto, cabe ainda uma derradeira ponderação.

A Emenda Constitucional nº 45 foi publicada, como é notório, a 31 de dezembro transato, quando já ultrapassadas todas as etapas atinentes à tramitação das leis (i) orçamentária e (ii) de diretrizes orçamentárias. Os Poderes Executivo e Judiciário já tinham pois, em 31.12.2004, prevista sua receita e fixada sua despesa, e isto por força de lei. É absolutamente óbvio, assim, que somente por força de lei nova poderia haver modificação na receita desses Poderes, diploma esse que também haveria de apontar a respectiva anulação de despesas. Vê-se, em síntese, que pretendeu o E. Tribunal de Justiça, em pleno curso do exercício financeiro, modificar – vale dizer, majorar – sua dotação orçamentária, considerando despicienda a prévia aprovação legislativa. Daí a inconstitucionalidade aqui argüida.

Por todo o exposto, o artigo 2°. da Resolução sempre aludida contrariou o artigo 167, VI e IX, da Constituição da República impondo-se sua extirpação do ordenamento jurídico.”

Especificamente quanto aos requisitos para a concessão da cautelar, o requerente faz as seguintes considerações:

“5. A Resolução impugnada, prevista para entrar em vigor em 10 de fevereiro próximo, produzirá, caso mantida sua eficácia, efeitos verdadeiramente devastadores no Estado de São Paulo. E não há demasia nessa assertiva. Vejamos.

A parcela de cerca de 17,73% referida no artigo 1° da Resolução citada, que confessadamente constitui receita do Estado por força de legislação local; destina-se majoritariamente (74%) ao Fundo de Assistência Judiciária do Estado. Este montante de recursos, correspondente a cerca de R$ 200 milhões ao ano (doc. 2), é empregado para a remuneração dos serviços prestados por aproximadamente 42 mil advogados, conveniados pelo Estado para o fim de que trata o artigo 5°., LXXIV, da Constituição da República. Se se considerar que no Estado de São Paulo, com assento no artigo 10 do ADCTE, as atividades da Defensoria Pública vêm sendo exercidas pela Procuradoria de Assistência Judiciária e pelos 42 mil advogados recém-citados, não há alarmismo ao se afirmar que o ato guerreado (i) desorganiza inteiramente essa função essencial à Justiça, deixando à mingua a orientação jurídica e a defesa dos necessitados, bem como (ii) extingue de pronto a fonte de sustento de dezenas de milhares de operadores do Direito.


De outro lado, os recursos que, nos termos do artigo 2° da Resolução em comento, não mais seriam arrecadados pelo Tesouro do Estado ascendem a cerca de R$ 400 milhões ao ano (doc. 3). Se se considerar que tal quinhão seria acrescido à receita orçamentária já atribuída por lei ao Judiciário para o exercício de 2005, não é dificil entrever a desordem das finanças públicas daí decorrente, com irracional exuberância de recursos em um dos Poderes do Estado, ao lado de sensível redução noutro. Cuida-se de expressiva parcela da receita do Estado a ser desviada em proveito de um único Poder, comprometendo serviços públicos essenciais a cargo do Executivo, como segurança, educação e saúde.

Desse modo, estão dados os pressupostos para a concessão da liminar suspensiva da Resolução censurada, independentemente de oitiva dos órgãos e autoridades previstas no art. 10, § 3°, da Lei federal n° 9.868/99: (a) o fumus boni iuris emergente da transgressão ao texto da Lei Maior e (b) o agudo periculum in mora decorrente dos danos que a eficácia de Resolução nitidamente conflitante com o Estatuto Supremo impõe à sociedade em geral e, em especial, aos hipossuficientes, seus advogados e à administração pública, que se verá compelida a agir em desconformidade com o modelo constitucional em vigor.”

Por fim, postula o requerente, além da concessão da cautelar, seja a ação julgada procedente, com a declaração de inconstitucionalidade da Resolução n° 196/2005, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Entendo presentes os requisitos para dispensar a oitiva do órgão responsável pela edição do ato, tendo em vista a urgência da matéria.

E não vejo qualquer obstáculo ao conhecimento desta ação direta. O ato impugnado enquadra-se na definição da alínea “a” do inciso I do art. 102 da Constituição. Trata-se de ato normativo estadual de caráter “impessoal, genérico e abstrato”, tal como afirma o requerente.

Passo a analisar as questões relativas ao mérito, considerando, todavia, os limites desse juízo cautelar.

O primeiro argumento desenvolvido pelo requerente refere-se basicamente à inconsistência da interpretação adotada pelo TJSP em relação ao novo § 2º do art. 98 da Constituição, tendo em vista a apropriação, pelo Judiciário paulista, de toda a receita oriunda dos emolumentos extrajudiciais atualmente destinados ao Poder Público.

As objeções formuladas pelo requerente possuem plausibilidade jurídica. Da leitura do referido § 2º fica difícil extrair uma norma absoluta, no sentido de que a totalidade dos emolumentos destinados ao Poder Público deva ser dirigida exclusivamente ao Poder Judiciário.

Nessa primeira alegação de inconstitucionalidade, impressiona o seguinte argumento trazido pelo requerente. Caso se entendesse que o § 2º do art. 98 abrange os emolumentos extrajudiciais, a conseqüência seria a de que o produto integral de sua arrecadação deveria ser canalizado para o Poder Judiciário, o que parece absurdo.

O outro argumento, trazido pelo requerente, refere-se ao potencial vício formal, uma vez que a resolução impugnada teria invadido campo reservado à lei.

Esse segundo argumento também impressiona.

O art. 167, VI, da Constituição, veda “a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa”.

De fato, em termos práticos, as normas impugnadas implicam remanejamento de verbas do Executivo para o Judiciário.

Quando tratamos de verbas destinadas ao Poder Público por certo não podemos ignorar essa realidade orçamentária. E as verbas destinadas ao Judiciário não fogem a essa regra, conforme fica explícito da leitura do art. 168 da Constituição, ao dispor sobre o mecanismo de repasse das dotações orçamentárias destinadas aos Poderes Legislativo, Judiciário e ao Ministério Público.

Apenas para argumentar, ainda que chegássemos à conclusão de que os emolumentos a que se refere a resolução impugnada destinam-se tão-somente ao Judiciário, penso que seria difícil, sob o prisma constitucional, excluir tais recursos do ritual legislativo que caracteriza o orçamento público.

Nessa perspectiva orçamentária também impressiona o seguinte argumento, formulado pelo requerente. A Emenda 45 foi publicada em 31 de dezembro de 2004, após a elaboração da lei orçamentária e da lei de diretrizes orçamentárias do Estado de São Paulo. Ou seja, quando da publicação da Emenda 45, os poderes Executivo e Judiciário do Estado de São Paulo já estavam sujeitas, por meio de lei formal, às regras do orçamento de 2005.

Assim, nesse juízo liminar, tenho como plausível a tese do requerente, no sentido de que o Tribunal de Justiça de São Paulo teria, indevidamente, invadido esfera reservada à lei.


Para fins de apreciação dessa cautelar, também considero relevantes os fatos expostos pelo requerente.

Com o início da vigência da resolução impugnada, estará de imediato prejudicada a atuação da Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado de São Paulo, fato que possuirá uma repercussão social significativa, tanto em relação aos aproximadamente 42 mil advogados conveniados pelo Estado, quanto em relação à população carente que utiliza tais serviços.

Considero, portanto, presentes os requisitos para a concessão da cautelar.

Vejo o sinal do bom direito, tendo em vista especialmente o potencial vício formal da Resolução 196/2005, do TJSP.

E o periculum in mora afigura-se manifesto, haja vista o imediato efeito da Resolução impugnada em serviço essencial à administração da Justiça, qual seja a defesa judicial da população mais necessitada. E, nesse ponto relativo ao periculum in mora, tenho como oportuno avaliar a conveniência política da suspensão de vigência do ato impugnado.

Tal como já consolidado na jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal, faz-se mister, para a concessão de medida liminar, que, ao lado da plausibilidade jurídica do pedido, possa o Tribunal fazer, igualmente, um juízo positivo sobre a conveniência da suspensão da vigência da norma questionada.

Mencionem-se, a propósito, alguns exemplos.

Na ADI 409, julgada em 6.12.90, esta Corte concedeu a liminar em face de norma constitucional estadual, que atribuía competência ao Tribunal de Justiça para o controle abstrato de atos normativos municipais confrontados com a Constituição Federal; eis a parte conclusiva do douto voto do relator, eminente Ministro CELSO DE MELLO:

“Devo salientar, ainda, que o Plenário desta Corte, para deferir o pedido de suspensão cautelar formulado no recente precedente a que já aludi (ADIN nº 347-DF), pautou-se na relevância do tema, bem assim em juízo de conveniência, ditado pela gravidade que envolve a discussão sobre a extensão da competência deste Tribunal no seu papel de guardião supremo da Constituição Federal.

Por essas mesmas razões, defiro o pedido de medida liminar ora formulado, para suspender a eficácia da expressão “e a Constituição Federal”, que integra o art. 95, inciso XII, d, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul” (Lex-Jur.STF, 148/26);

Com o mesmo sentido, norma constitucional mineira, que foi suspensa cautelarmente em 16.4.91 (ADI 508, Lex-Jur.STF, 154/97, relator o eminente Ministro Octávio Gallotti.

Na ADI 474, de 4.4.91, suspendeu-se cautelarmente lei fluminense que permitia a maiores de 16 e menores de 18 anos a habilitação para dirigir veículos automotores, havendo argumentado o relator, eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE:

“A inconstitucionalidade formal suscitada é de plausibilidade inequívoca.

De outro lado, são evidentes os riscos sociais ou individuais, de vária ordem, que a execução provisória da lei questionada gera imediatamente, na medida em que amplia a faixa de descoincidência temporal entre o termo inicial de responsabilidade penal e civil e a autorização para dirigir veículos automotores.

Defiro a suspensão cautelar: é o meu voto” (Lex-Jur. STF, 150/147);

Na ADI 532, de 1º.8.91, lei maranhense idêntica foi cautelarmente suspensa pela mesma fundamentação, como se vê do douto voto do relator, eminente Ministro OCTAVIO GALLOTTI (Lex-Jur. STF, 154/100).

Na ADI 718, de 3.8.92, relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO, DJ, de 12.2.93, Seção I, p. 1451, que cuidou de criação de municípios no Maranhão, foi lançada expressiva ementa, de que se transcreve esta parte:

“A Suprema Corte já proclamou, ainda que por deliberação majoritária, que se revela conveniente a suspensão cautelar de eficácia de leis ordinárias que, em ano de eleições, criam Municípios, em face das prováveis repercussões desse ato no processo eleitoral. Precedente: ADIN 704-PR.

A criação de novas pessoas municipais – a partir do desmembramento dos municípios que constituem as unidades matriciais – implica, ante as graves consequências que daí derivam, o comprometimento inegável da organização político-administrativa e da integridade jurídico-territorial das comunidades locais interessadas.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem considerado que a iminência da realização de plebiscito caracteriza, objetivamente, o requisito do “periculum in mora”, para efeito de concessão de medida cautelar em processo de controle normativo abstrato. Precedentes”.

Na ADI 804, de 27.11.92, DJ, de 5.2.93, Ementário nº 1690-1, concedeu-se liminar para suspender a eficácia de lei do Distrito Federal, que criara a respectiva Junta Comercial, aduzindo o relator, eminente Ministro SEPULVEDA PERTENCE:


“E, sendo relevante, a questão constitucional proposta, a petição inicial demonstrou iniludivelmente a conveniência de sustar provisoriamente a eficácia da lei questionada.

Desse modo, defiro a suspensão cautelar”.

Na ADI 173, de 9.3.90, Lex-Jur.STF, 141/73, relator o eminente Ministro MOREIRA ALVES, foi suspensa exigência de lei federal quanto a prova de quitação fiscal por esta motivação:

“Ora, com a devida vênia do eminente Ministro Carlos Madeira, que indeferiu a liminar ad referendum deste Plenário, entendo que a liminar deve ser concedida, uma vez que é indubitável a relevância da fundamentação da argüição de inconstitucionalidade, além da ocorrência de periculum in mora, tais os entraves à atividade econômica que o artigo 1º da citada Lei acarreta, bem como, em decorrência disso, o impedimento ao acesso ao Judiciário, sujeito, por vezes — como em caso de mandado de segurança –, a prazos fatais. Note-se, ainda — o que corrobora, também a conveniência da concessão liminar –, que as restrições impostas pelo dispositivo legal em causa, já regulamentado e, portanto, com plena vigência, se tiverem sua aplicação suspensa, não impedirão a atuação do Estado na cobrança de seus créditos fiscais, judicial ou extrajudicialmente.

Foi igualmente o requisito da conveniência da suspensão cautelar que levou a Corte Suprema a adotar tal providência nos seguintes precedentes: ADI 417, de 20.2.91, Lex-Jur.STF, 148/27, relator o eminente Ministro PAULO BROSSARD; ADI 425, de 4.4.91, Lex-Jur.STF, 152/30, do mesmo relator; ADI 270, de 8.5.90, Lex-Jur.STF, 144/5, do mesmo relator; ADI 401, de 30.11.90, Lex-Jur.STF, 146/47, do mesmo relator; ADI 102, de 25.10.89, Lex-Jur.STF, 136/28, do mesmo relator; ADI 391, de 5.12.90, Lex-Jur.STF, 149/14, do mesmo relator; ADI 308, de 21.6.90, Lex-Jur.STF, 144/38, relator o eminente Ministro OCTáVIO GALLOTTI; ADI 467, de 3.4.91, Lex-Jur.STF, 149/23, do mesmo relator; ADI 666, de 12.3.92, Lex-Jur.STF, 167/79, relator o eminente Ministro MOREIRA ALVES; ADI 462, de 19.6.91, Lex-Jur.STF, 154/70, do mesmo relator; ADI 138, de 14.2.90, Lex-Jur.STF, 146/7, relator o eminente Ministro SYDNEY SANCHES.

Ao adotar o conceito jurídico indeterminado de conveniência política da suspensão da eficácia, procurou o Tribunal desenvolver um conceito geral que lhe outorgue maior liberdade para avaliar a necessidade ou não de suspensão cautelar da lei ou do ato normativo. É certo, por outro lado, que a utilização desse conceito permite que o Supremo Tribunal desenvolva um modelo diferenciado para o processo cautelar da ação direta de inconstitucionalidade, tanto quanto possível distinto do processo cautelar convencional.

No caso, não tenho dúvida da conveniência política da suspensão do ato, tendo em vista o conteúdo desagregador da medida adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, com imediata repercussão na relação entre os Poderes daquele Estado.

Meu voto, portanto, ressalvado melhor juízo quando da apreciação do mérito desta ação direta, é no sentido do deferimento da cautelar para o fim de suspender a vigência da Resolução 196, de 2005.

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Resolução no 196, de 19.1.2005, editada pelo órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que alterou a destinação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registros. 2. Redução de parcela destinada ao Poder Executivo. 3. Violação aos arts. 98, § 2o (com a redação da Emenda no 45, de 2004), 167, VI e IX, todos da Constitução Federal. 4. Dispensa da oitiva do órgão responsável pela edição do ato, tendo em vista a urgência da matéria. 5. Plausibilidade jurídica do pedido. 6. Alegação de equívoco na interpretação que possibilita que o § 2o do art. 98 alcance os emolumentos extrajudiciais. 7. Matéria orçamentária e reserva legal: ofensa ao art. 167, VI e IX, tendo em vista a potencial invasão, pelo ato impugnado, de matéria reservada à lei. 8. Presença de sinal de bom direito e de periculum in mora. 9. Conveniência política na suspensão do ato. 10. Liminar deferida para o fim de suspender a vigência do ato.

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