Maldade tributária

A Lei 4.482 do estado do Rio é flagrantemente inconstitucional

Autor

  • Rodrigo Gonzalez

    é advogado tributário pós-graduado em administração de empresas pela FGV e coordenador da área tributária do escritório Fadel e Giordano Advogados

3 de fevereiro de 2005, 11h10

Dentre as tradições brasileiras de fim de ano, além do peru natalino e o salto triplo de ondinhas, temos também o pacote de maldades tributárias com que somos presenteados anualmente pouco antes do início da contagem regressiva para os fogos do reveillon.

Ano passado, não bastasse a Medida Provisória 232, enfiada goela abaixo dos contribuintes como se guloseima fosse, o empresariado fluminense foi premiado ainda pela versão estadual do indigesto presente. Se em matéria de sadismo a Lei Estadual n.º 4482, de 28 de dezembro de 2004, iguala-se ao pacote de medidas federais, sem dúvida alguma a este superou no quesito teatral, em muito lembrando os atos que sucederam sua apresentação aos de uma Ópera Bufa.

Como é de conhecimento geral, a referida lei estadual “condicionou” o aproveitamento dos créditos oriundos da aquisição de insumos utilizados para a fabricação de mercadorias exportadas ao reconhecimento, pela autoridade fazendária competente, da “legitimidade dos valores a serem aproveitados pelo contribuinte” bem com ao “recebimento, pelo Estado, dos recursos que lhe são devidos pela União”.

Traduzindo para aqueles não iniciados nos meandros da administração estadual, igual efeito às condições impostas seria o da simples vedação ao aproveitamento dos créditos, mas essa não traria a carga de escárnio e cinismo dispensado aos contribuintes presente na malfadada lei.

A prática da administração estadual é, e sempre foi, de recusar, negar e obstruir o exercício de qualquer direito que represente eventual diminuição imediata de sua receita financeira. Sempre que a lei condicionou à sua aprovação o exercício de qualquer direito creditício, a administração estadual demonstrou sua míope motivação imediatista.

Para corroborar o afirmado, basta lembrar o calvário a que são submetidos os contribuintes que tentam a aprovação para a utilização de saldos credores de ICMS acumulados em decorrência de operações internas. A utilização de referidos saldos, conforme dispôs o artigo 25, parágrafo 2º da Lei Kandir (LC 87/96), combinado com o artigo 38, parágrafo 1º, da Lei 2.657/96, ficou condicionada à “autorização do Poder Executivo Estadual”; desde então raríssimas são as operações autorizadas para a utilização de referidos créditos. Isso para não adentrar o fértil terreno para todos os tipos de negociatas e arranjos espúrios propiciado pela absurda discricionariedade de se autorizar a utilização dos créditos a partir de condições diferenciadas criadas individualmente para cada contribuinte.

No entanto, dessa vez não se trata apenas de cinismo e escárnio, mas ainda da flagrante, gritante e evidente inconstitucionalidade que também macula a Lei Estadual 4.482. Ao transplantar a discricionariedade, antes aplicável apenas aos créditos de operação interna, para sua aplicação também aos saldos acumulados decorrentes de exportações, a Lei Estadual 4.482 colide frontalmente com o disposto pelo artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a” da Constituição Federal.

Não se trata de nenhum malabarismo ou esforço interpretativo; referido dispositivo constitucional dispõe expressamente que fica assegurado nas operações de exportação “a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”. Se não bastasse, a Lei Estadual 4.482 também ofende a mencionada Lei Kandir – esta de âmbito federal – que em nenhum instante deixa qualquer brecha para a seleção discricionária de felizardos destinatários das benesses do poder público.

O analista desavisado poderia indagar se tamanho descompasso advém de mero desconhecimento jurídico por parte do Governo do Estado, mas não, não se trata disso. A vinculação da autorização para a utilização dos créditos ao repasse dos recursos devidos pela União Federal que “compensariam” o Estado por essa “perda” de arrecadação revela que, na verdade, está o contribuinte sendo utilizado pelo governo estadual como bucha de canhão em sua queda de braço com a União Federal.

Se o Estado tem um direito a ser reconhecido pela União, deve socorrer-se ao Judiciário que, mal ou bem, aí está para isso, pois não tem o infeliz do contribuinte nada a ver com suas escaramuças políticas. Mas não, a solução por essas bandas é sempre pela galhofa, pela encenação; afinal mais fácil e certo contar com o coro dos descontentes do que se rebaixar à lide nos tribunais; mais fácil baixar o porrete no convalido que se submeter ao jogo democrático.

E assim vai, nesse roteiro tragicômico, se desenrolando a Ópera Bufa palaciana. Em seu ápice, a governadora Rosinha afirma, com toda a autoridade que o cargo requer: “se a lei se mostrar prejudicial, serei a primeira a tomar a iniciativa de propor a sua revogação, pois tenho dado provas de que amo o nosso Estado”. A platéia franze a testa: Como assim? Alguém tem dúvida de seus efeitos? Acho que não entenderam a piada.

O STF pelo visto também não, e quarta-feira, dia 19 de janeiro, o Ministro Nelson Jobim resolveu suspender os efeitos da Lei Estadual 4.482. Bom, como se trata de uma ópera cômica, e este é o país da esperança, quem sabe não teremos um final feliz.

Rodrigo Gonzalez

Advogado tributário, pós-graduado em administração de empresas pela FGV, é coordenador da área tributária do escritório Fadel e Giordano Advogados.

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