Prioridade para viver

Juiz diz que gravidade determina prioridade na fila de transplante

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1 de fevereiro de 2005, 11h15

Paciente que corre risco de morte por precisar urgentemente de transplante tem direito a furar fila. O juiz Eugênio Couto Terra, de Porto Alegre, determinou na madrugada do dia 31 de janeiro, a inclusão de paciente na lista de prioridade de transplante de fígado.

O doente que corre risco de morte em caso de demora no atendimento, deve ter prioridade desde que o órgão a ser transplantado tenha compatibilidade com seu grupo sangüíneo e não exista na lista outro paciente em condição de saúde igual ou pior.

Conforme relatório da equipe médica, a demora no procedimento implicaria na morte do paciente que pedia a autorização judicial. O juiz considerou o caso como muito grave, como inexistência de chance de vida caso o transplante não fosse realizado imediatamente. Para decidir, o juiz fez contato pessoal com a Central de Transplantes. A instituição confirmou que o paciente não estava na lista dos prioritários, pois “não se trata de caso de hepatite fulminante ou retransplante”.

Eugênio Couto Terra obteve também a informação de que a Central não tem condições de averiguar a existência na lista de outro paciente que apresentasse um quadro de risco semelhante ou pior.

Critérios

Para o juiz Terra, “não resta a menor dúvida que existe a necessidade de estabelecimento de critérios administrativos para a realização de transplantes”. No entanto, considera que “um critério exclusivamente temporal – cronologia de inscrição na lista de transplantes – é falsamente democrático e assegurador de igualdade entre todos os que necessitam de transplante de órgãos”.

E continua: “É sabido que já existem até modelos matemáticos desenvolvidos, que possibilitam o cruzamento de uma série de dados relevantes na aferição de critérios para estabelecimento de prioridades em listas de transplantes – muitos países europeus já não utilizam o critério exclusivo da cronologia de inscrição na lista”.

Lembra que “a falência do modelo cronológico é atestada pela situação de São Paulo, que ostenta o macabro título de local com o maior número de mortes de pacientes em lista de espera de transplantes no mundo”.

“Quando se trata do direito à vida, sem a menor dúvida, o uso de fator estandardizado é totalitário e desumano, pois desconsidera as peculiaridades individuais de cada paciente”, considerou. Por outro lado, “a humanização de critérios tem de considerar a individualidade, pois colocará no centro da decisão de quem deve ser prioritariamente transplantado a dignidade humana”, afirmou.

“Entre uma possibilidade não provada – ainda que presumível de prioridade de outro paciente em lista – e a situação concreta e provada da indispensabilidade do transplante para o autor da ação, afim de que tenha uma chance de continuar vivo, entendo ser o caso de optar pela tentativa de preservação da vida que concretamente se apresenta em risco”, concluiu.

A decisão foi remetida à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado ainda durante a noite, para cumprimento. O nome do paciente foi omitido para fins de divulgação.

Leia a íntegra da decisão

“Visto.

(O autor), com base em relatório de equipe médica que o assiste, requer a realização de transplante de fígado, em caráter de urgência, sem respeito à lista de espera, pois o transcurso do tempo implicará no óbito certo do requerente.

A pretensão vem acompanhada de relatório da equipe médica assistente, no qual está consignada a urgência máxima na realização do transplante e comprovante de entrega de pedido administrativo de inclusão do requerente como paciente prioritário para o transplante.

Houve negativa de inclusão do requerente como paciente prioritário, por não atender o mesmo os critérios em vigência para assim ser considerado. Vale dizer, não se trata de caso de hepatite fulminante ou retransplante.

O caso do requerente é realmente muito grave, com inexistência de chance de sobrevida sem a realização do transplante imediatamente.

Fiz contato telefônico com a Central de Transplantes, mantendo contato com o Dr. Nilo, médico plantonista, que confirmou a negativa de inclusão como paciente prioritário, em face do não atendimento dos critérios já acima explicitados.

Também obtive a informação que a Central de Transplantes não tem condições de averiguar a existência de outro paciente em lista – colocado em posição que antecede o requerente – que apresente mesmo risco ou risco de vida superior ao que se encontra o autor. Tais informações, conforme informado pelo médico plantonista, só chegam à Central por força de dados passados pelas equipes médicas que assistem os pacientes.

Em suma, essa é a situação fática que se descortina.

O direito à vida – e a uma vida digna – é princípio basilar de todo nosso ordenamento jurídico, permeando todo o sistema desde a Carta Constitucional.


Não resta a menor dúvida que existe a necessidade de estabelecimento de critérios administrativos para a realização de transplantes. Ocorre que um critério exclusivamente temporal – cronologia de inscrição na lista de transplantes – é falsamente democrático e assegurador de igualdade entre todos os que necessitam de transplante de órgãos. Leva em linha de conta uma única variável, quando vários são os fatores que devem ser considerados (por exemplo: risco de morte em caso de não realização em tempo hábil do transplante; expectativa de vida após o transplante; estágio da doença que obrigou à inclusão na lista dos serem transplantados; etc.).

É sabido que já existem até modelos matemáticos desenvolvidos, que possibilitam o cruzamento de uma série de dados relevantes na aferição de critérios para estabelecimento de prioridades em lista de transplantes. Muitos países europeus já não utilizam o critério exclusivo da cronologia de inscrição na lista.

A falência do modelo cronológico é atestada pela situação de São Paulo, que ostenta o macabro título de local com o maior número de mortes de pacientes em lista de espera de transplantes no mundo !!

Aliás, não é de hoje que se discute no Brasil a modernização dos critérios de estabelecimento de prioridade para transplantes, inclusive com a realização de audiências públicas para avaliação da questão.

Não se avança, entretanto, na modificação das regras, pela falta de vontade política (implicará na necessidade de maior agilidade por parte do Poder Público na aferição de todos os casos de pacientes em lista de espera) e, também, por um demagógico argumento da cronologia ser um critério democrático e assegurador de igualdade.

Quando se trata do direito à vida, sem a menor dúvida, o uso de fator estandardizado é totalitário e desumano, pois desconsidera as peculiaridades individuais de cada paciente.

A humanização de critérios tem de considerar a individualidade, pois colocará no centro da decisão de quem deve ser prioritariamente transplantado a dignidade humana. Isso porque possibilitará que um maior número de vidas sejam salvas, pois a totalidade de cada indivíduo (ser humano) será valorada, pois os mais necessitados serão atendidos primeiro.

O argumento que o afastamento da cronologia como critério basilar para o transplante colocará o sistema em descrédito e não permitirá um melhor controle social é falacioso.

A multiplicidade de fatores a serem considerados não é subjetiva. Deve haver o estabelecimento de dados técnicos, calcada na realidade objetiva da necessidade de transplante, que além da cronologia de tempo de espera, considere os avanços da ciência médica na avaliação de riscos e benefícios do momento da realização do transplante.

Os novos parâmetros de prioridade para transplante, por óbvio, não se pode olvidar, terão base científica (a ciência médica os pode identificar) e ética (que serão estabelecidos pela discussão da sociedade).

Identificados os critérios mais justos – preservadores da igualdade do direito à vida – entre os necessitados de transplante, estabelecido o regramento legal de sua operacionalização, incumbirá ao Poder Público manter bancos de dados de todos os inscritos em lista de espera e apontar àquele que mais será beneficiado com o transplante no momento em que a intervenção cirúrgica oportunizar-se.

E como se vê do caso concreto em exame, isso atualmente não ocorre, pois a Central de Transplantes não tem condições de identificar qual paciente em lista seria o mais beneficiado com a realização de um transplante.

A ineficiência do critério cronológico impõe ao Judiciário a decisão sobre a realização imediata de um transplante que, qualquer que seja a decisão tomada, pode caracterizar-se como injusta e não asseguradora da garantia do direito à vida para todos – ou, pelo menos, de maior justiça em tal acesso para todos – que é algo essencial no Estado Democrático de Direito.

Tal risco, entretanto, não pode levar à ausência de uma decisão, pois estabelecido o dilema, incumbe perscrutar o sistema de princípios do sistema jurídico e optar pelo caminho que melhor preserve a dignidade humana no caso concreto.

A apreciação da questão não pode fugir do princípio – ou como preferem alguns, do critério – da ponderação.

Tem-se uma situação concreta e real de risco de vida iminente (atestado por equipe médica que merece credibilidade), pois a não realização imediata do transplante implicará na morte do paciente.

Esse paciente não se encontra no topo da lista de transplante de fígado e, por força dos critérios administrativos em vigência, não pode ser, em caráter excepcional, considerado como prioritário para a realização do transplante.


O sistema – leia-se Central de Transplantes – não tem condições de informar sobre a existência de outro paciente em lista de espera, posicionado antecedentemente ao requerente, que esteja em situação de risco de vida iminente. Talvez até exista, mas não há meio de identificação de tal situação, porque o critério adotado é o cronológico, tão-somente.

Valorar mais o critério legal da cronologia, sem qualquer dado adicional de necessidade de urgência na realização do transplante por outra pessoa, é não assegurar o direito à vida no caso concreto.

Entre uma possibilidade não provada – ainda que presumível de prioridade de outro paciente em lista – e a situação concreta e provada da indispensabilidade do transplante para o autor, a fim de que tenha uma chance de continuar vivo, entendo ser o caso de optar pela tentativa de preservação da vida que concretamente se apresenta em risco.

Assim faço, por entender que uma possibilidade tem, necessariamente, de ser relevada quando a única chance de vida de um ser humano, devidamente personalizado e identificado, só é possível com a realização do transplante, mesmo que com isso tenha que ser afastado o critério cronológico estabelecido pelo sistema como o único a ser considerado.

Em resumo, adotando-se o princípio da ponderação, faz-se a escolha pela possibilidade de salvar a vida de um ser humano devidamente identificado e com risco de morte, com o afastamento do critério impessoal – e, como já demonstrado, de pouca eficiência como possibilitador de salvar vidas – estabelecido no regulamento administrativo do Sistema Nacional de Transplantes.

Diante de tais considerações, deverá o autor ser colocado como paciente prioritário para a realização de transplante de fígado, desde que haja compatibilidade com seu grupo sanguíneo e não exista paciente na lista, que o anteceda em precedência, que esteja em condição de saúde igual ou pior que o requerente.

Em razão do exposto, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA POSTULADA, para determinar que a CNCDOs (Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado) inclua (o autor) como paciente prioritário na lista de pacientes aguardando transplante de fígado, desde que haja compatibilidade com seu grupo sanguíneo e não exista paciente na lista, que o anteceda em precedência, que esteja em condição de saúde igual ou pior que o requerente.

Expeça-se mandado de intimação da CNCDOs, que deverá ser remetido por fax e posteriormente, ainda nesta noite, ser cumprido pelo Oficial de Justiça Plantonista.

Oportunamente, no Juízo de destino, proceda-se a citação do Estado do RS, na pessoa do Procurador-Geral do Estado para, querendo, contestar a ação, bem como haja a intimação da decisão antecipatória da tutela deferida.

As custas deverão ser recolhidas em cinco dias.

Intimem-se, inclusive o Ministério Público.

Diligências Legais.

Porto Alegre, 30 de janeiro de 2005, às 23h30min.

Eugênio Couto Terra,

Juiz de Direito Plantonista.”

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