Limites da pena

STJ dá progressão de regime a condenado por crime hediondo

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21 de dezembro de 2005, 13h25

A Lei dos Crimes Hediondos foi um passo atrás na história do Direito Penal brasileiro. A norma terminou por ignorar importantes princípios como o da igualdade de todos perante a lei, o da individualização da pena e o da reabilitação do condenado.

Com esse entendimento, por maioria de votos, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu Habeas Corpus que garante o direito de progressão de regime prisional ao chileno Maurício Hernandez Norambuena. Ele é acusado de ser o líder do seqüestro do publicitário Washington Olivetto.

Norambuena foi condenado a 30 anos de reclusão, por extorsão mediante seqüestro, tortura e formação de quadrilha ou bando. Com base na Lei dos Crimes Hediondos, a Justiça havia determinado que a pena fosse cumprida integralmente em regime fechado.

A decisão do STJ foi estendida a outros três seqüestradores: ao chileno Alfredo Augusto Caneles Moreno e às argentinas Karina Germano Lopez e Maite Analia Bellon. O STJ acatou recurso que reclamava do regime imposto.

Para a defesa, o regime integralmente fechado seria incompatível com os princípios da humanidade da punição, da individualização e da função ressocializadora da pena.

Segundo a decisão dos ministros da 6ª Turma do STJ, as penas devem visar à reeducação. A história da humanidade teve, tem e terá compromisso com a reeducação e com a reinserção social do condenado. Se fosse de outro modo, a pena estatal estaria fadada ao fracasso. Votaram os ministro Hélio Quaglia Barbosa (relator), Nilson Naves, Paulo Gallotti e Paulo Medina. O relator foi voto vencido. A maioria seguiu a tese do ministro Nilson Naves.

“De tão ilegítima, de tão ilegal, de tão insensata, de tão chocante e de tão inconstitucional que é em algumas de suas disposições, a Lei 8.072, quando escapa da incompatibilidade entre normas infraconstitucionais e constitucionais, é um diploma que só pode ser visto como aqueles de interpretação estrita, tal como são de interpretação estrita, na feliz lembrança de Maximiliano, as disposições que restringem a liberdade humana”, afirmou em seu voto o ministro Nilson Naves.

Da decisão do STJ, cabe recurso ao Supremo Tribunal Federal. A competência deixaria de ser do Ministério Público de São Paulo e passaria para o Ministério Público Federal. Se a decisão for mantida, os presos poderão conseguir, no caso de bom comportamento, o benefício da liberdade parcial entre o final de 2006 e o início de 2007.

A Lei de Crimes Hediondos veta a concessão de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória para os casos de crimes graves — entre eles extorsão mediante seqüestro e tortura — e a progressão de regime prisional. Ou seja, de acordo com a lei, Norambuena e os demais acusados teriam que cumprir os 30 anos em regime fechado.

“Há maus momentos legislativos aqui e ali, um desses foi o da lei que dispõe sobre os denominados crimes hediondos, lei proveniente de um desses tristes momentos da dogmática penal”, afirmou o ministro Nilson Naves. Para ele, a Lei dos Crimes Hediondos é um diploma de interpretação estrita.

“Já há muito tempo o ordenamento jurídico brasileiro consagrou princípios como o da igualdade de todos perante a lei e o da individualização da pena”, completou o ministro para justificar a concessão do HC.

O publicitário Washington Olivetto foi seqüestrado em dezembro de 2001 e ficou 53 dias no cativeiro. Quatro homens e duas mulheres — todos estrangeiros — foram presos e condenados a 30 anos por seqüestro, tortura e formação de quadrilha. O seqüestro é crime hediondo e a tortura delito equiparado aos crimes graves.

Segundo o voto do ministro Nilson Naves, a Lei de Crimes Hediondos fere a Constituição Federal porque adota critérios diferentes na aplicação da pena — a lei prevê mais rigor nos crimes hediondos do que nos delitos comuns — e também não permite a reeducação e a ressocialização dos condenados.

“Em bom momento e em louvável procedimento, o legislador de 1984 editou proposição segunda a qual a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva e com a transferência para regime menos rigoroso”, justificou o ministro.

A extensão do benefício ao chileno Alfredo Augusto Caneles Moreno e às argentinas Karina Germano Lopez e Maite Analia Bellon (que se identificou como Marta Ligia Mejia) foi concedida no último dia 13. No caso, a defesa não pleiteou a concessão para dois outros condenados: os chilenos Marco Rodolfo Rodrigues Ortega e Willian Gaona Becerra.

É controversa a concessão de benefícios nos casos de crimes hediondos. A lei, em vigor desde 1990, hoje é alvo de contestações nos tribunais superiores. O direito à progressão da pena nesses crimes é motivo de pedido de Habeas Corpus no Supremo, que ainda não foi julgado.

RDD


Norambuena é o único dos seqüestradores que permanece no RDD — Regime Disciplinar Diferenciado. Ele está preso na Penitenciária de Presidente Bernardes, em São Paulo. O RDD é um sistema prisional mais rígido que determina cela individual, uma hora diária de sol e veta aos presos acesso a jornais, rádio e televisão.

A permanência ou não dele no RDD deve ser decidida pela Justiça paulista esta semana. No mês passado, a Vara de Execuções Criminais prorrogou por mais 30 dias a continuidade de Norambuena no regime diferenciado. O MP pediu a permanência do regime por tempo indeterminado. A decisão caberá ao juiz-corregedor dos presídios, Luiz Antônio Sales de Abreu.

As duas mulheres estão em uma penitenciária da capital paulista. Se a situação jurídica não se alterar, elas poderão sair antes porque trabalham na prisão, o que permite a remissão de pena. Os outros seqüestradores estão em penitenciárias comuns do interior.

No ano passado, o Supremo autorizou a extradição de Norambuena para o Chile. A extradição depende da Presidência da República. Pesam contra o chileno duas condenações a prisão perpétua. Uma delas pelo assassinato de um senador. A Justiça brasileira estabeleceu como condição para a extradição que o governo chileno faça cumprir a legislação brasileira, que não admite a prisão perpétua.

Leia a íntegra da decisão

HABEAS CORPUS Nº 42.802 – SP (2005/0048701-3)

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Entre nós e noutros lugares, ontem e hoje, houve, e sempre, preocupação com o aspecto da pena privativa de liberdade relativo à ressocialização do apenado, preocupação que tem a ver, claro é, com a efetividade desse aspecto. Todavia há, e já houve, maus momentos. Há maus momentos legislativos aqui e ali, um desses foi o da lei que dispõe sobre os denominados crimes hediondos, lei proveniente de um desses tristes momentos da dogmática penal.

O meu discurso não bate com as concepções legislativas, não bate porque, respeitosamente, a lei foi um passo atrás, bem atrás, e o Direito (como ciência), mormente o Penal (a moderna dogmática), está à frente, estamos bem à frente. À pergunta a propósito do sentido da pena estatal (observem isto: quais os seus limites, qual a legitimação do poder estatal) o alemão Roxin responde dizendo que não podemos nos “contentar com as respostas do passado, visto que a situação histórico-espiritual, constitucional e social do presente exige que se penetre intelectualmente num complexo com várias facetas”.

Dos fins imediatos da pena, a saber, o de intimidar, o de corrigir (o da reabilitação ou ressocialização) e, por que não, o de impossibilitar, temporariamente, a prática de outros crimes, filósofos e penalistas oitocentistas e novecentistas, entre os quais Beccaria (1738 – 1794),Carmignani (1768 – 1847) e Feuerbach (1775 – 1833), conquanto tenham liderado movimentos tendentes a humanizar o sistema penal (num momento de situações de violação, opressão e iniqüidade quanto a espécies de pena e quanto ao cumprimento), colocaram-se, entretanto, relativamente aos fins imediatos da pena, ao lado do primeiro daqueles fins, isso porque, para eles, não tinha a sanção penal outro efeito além do poder de intimidar, de coagir psicologicamente o autor do crime.

Kant (1724 – 1804) tinha a pena como imperativo categórico – exigência de justiça absoluta, retributiva, medida pelo talião (“vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, Deuteronômio 19:21). Em seu “Dicionário”, escreveu Caygill que, (I) para Kant, a punição havia de ser “infligida para um crime e não como um meio para algum outro fim” (por exemplo, desencorajar outros, ou reabilitar); (II) que a tese retributiva de Kant foi desenvolvida por Hegel; (III) que a tese kantiana foi recentemente eclipsada por argumentos “que sublinham as finalidades de dissuasão e reabilitação servidas pela punição”. Entretanto, completou Caygill, a partir da década de 80, “registrou-se um interesse renovado pelas filosofias retributivas de punição” (J. Zahar, 2000, págs. 212/213).

Todavia leia-se, ao lado de outros existentes instrumentos legislativos, a Constituição da Itália, com vigência a partir de 1948, nesta passagem do seu art. 27: “As penas não podem comportar tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem visar à reeducação do condenado.” De semelhante feitio, a Constituição da Espanha de 1978, art. 25, número 2: “Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir em trabajos forzados…” Analogicamente, o Parlamento Europeu vem recomendando, a propósito da adoção de política penal e de política de execução penal, que os Estados-Membros acolham medidas relativas à reeducação do condenado, sua instrução, reabilitação e reinserção social e profissional. Vem, ainda, recomendando maior aplicação das denominadas sanções alternativas em substituição à encarceração.


Fomos aplaudidos, ainda no Império, em virtude do Código de 1830, “obra legislativa”, escreveu Aníbal Bruno, “realmente honrosa para a cultura jurídica nacional, como expressão avançada do pensamento penalista no seu tempo”; talvez não tenhamos sido aplaudidos com o Código de 1890, mas não deixou ele, como também observou Bruno, de se apresentar “como obra de estrutura geral avançada”. Progredimos, é claro, com o Código de 1940, entre outros pontos, com a instituição da execução da pena pelo sistema progressivo: “… de modo que a pena imposta, além do seu caráter aflitivo (ou retributivo), deve ter o fim de corrigir, de readaptar o condenado” (Exposição, nº 31).

Se se lhe nega o caráter de correção, de readaptação do condenado, a pena estatal privativa de liberdade se desfigura, deslegitima-se até, e ao Estado, então, faltariam meios que justificassem legítima e legalmente; entre nós, por exemplo, ao que eu creio, faltam ao Estado brasileiro meios legítimos que justifiquem o discrímen relativamente ao cumprimento dessa pena, visto que, quando a lei estabelece o seu cumprimento fazendo discriminação, a essa pena se está negando o caráter de readaptação, e aí como ficam os princípios da igualdade de todos perante a lei e da individualização da pena? Princípios que conosco estão convivendo há bastante tempo (vejam que o da individualização convive conosco desde o Código de 1830).

Indo de um cabo a outro da vasta história penal, podemos verificar que, no cabo mais recente, a história geral da humanidade acabou assumindo fiel compromisso com a reeducação do condenado e com sua reinserção social (ressocialização), e a nossa história, como vimos de ver, não só seguiu os acontecimentos vindos de fora como ousou lá fora a dar exemplo, marcando a nossa presença, digamos, com o Código de 1830, digamos mais, com as recentes Leis nºs 7.209 e 7.210, ambas de 11.7.84, que estabelecem os regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade, daí rezar a Lei de Execução Penal, no seu art. 1º, que a execução “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Eis passagem da sua Exposição de Motivos: “Sem questionar profundamente a grande temática das finalidades da pena, curva-se o Projeto na esteira das concepções menos sujeitas à polêmica doutrinária, ao princípio de que as penas e as medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade.” Infelizmente, a lei sobre crimes hediondos terminou por fazer pouco caso de alguns princípios, talvez tenha mesmo o legislador procedido de caso pensado, mas, ao ver de uma plêiade de juristas, também a meu ver, tal procedimento foi de encontro a princípios benéficos que vigem desde os tempos mais remotos (igualdade de todos, individualização da pena, reabilitação, etc.). Ora, à Lei nº 8.072, de 25.7.90, só lhe faltou mesmo a criação da figura do “abominável réu”, aquela figura constante da sentença de 19.4.1792 que condenou José da Silva Xavier à forca a fim de que nela morresse (morte natural) para sempre.

De tão ilegítima, de tão ilegal, de tão insensata, de tão chocante e de tão inconstitucional que é em algumas de suas disposições, a Lei nº 8.072, quando escapa da incompatibilidade entre normas infraconstitucionais e constitucionais, é um diploma que só pode ser visto como aqueles de interpretação estrita, tal como são de interpretação estrita, na feliz lembrança de Maximiliano, “as disposições que restringem a liberdade humana”.

Apropriada, assim e portanto, a transcrição de um trecho das”Memórias da Casa dos Mortos”, de Dostoiévski. Ei-la: “O presídio e os trabalhos forçados não fazem mais do que fomentar o ódio, a sede de prazeres proibidos e uma terrível leviandade de espírito no presidiário. Estou convencido de que, com o famoso sistema celular, apenas se obtêm fins falsos, enganosos, aparentes. Esse sistema rouba ao homem a sua energia física, excita-lhe a alma, debilita-lha, intimida-lha, e depois apresenta-nos uma múmia moralmente seca, um meio louco, como obra da correção e do arrependimento.” Que espécie de correção, hein?

Dostoiévski saiu do presídio em 1854, e as “Memórias” vêm a lume em 1860; de lá para cá, é certo, presídio não mudou tanto. Essa constatação, no entanto, não nos há de desanimar, aliás, penso eu, há de levar-nos,em primeiro lugar, a pregar a sua total reforma, em segundo lugar, a reconhecer o caráter de correção da pena.

Ora, tudo isso que escrevi, eu o escrevi para o HC-34.652 (DJ de 1º.2.05), bem como para outros casos, e, ao que cuido, tem aplicação ao presente feito, guardadas algumas proporções, é verdade.

2. Juridicamente, é possível se reconheça, aqui e agora, a progressão, porquanto diz a lei própria, e bem pertinente, a Lei nº 7.210/84, que “a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso” (art. 112). Isso também é o que reza a interpretação (ou exegese) estrita – a que há de ser dada às normas dos denominados crimes hediondos. Confira-se o que dispôs a Lei nº 9.455/97 a propósito dos crimes de tortura (§ 7º do art. 1º): “O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.”

3. Voto, pois, pela concessão da ordem a fim de garantir ao paciente o que está escrito nos arts. 33, § 2º, do Cód. Penal e 112 da Lei 7.210/84. Em outras palavras, concedo a ordem a fim de assegurar ao paciente a transferência para regime menos rigoroso”.

HC 42.802

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