Intimidade preservada

CPI pode quebrar sigilo mas não pode divulgar dados

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15 de dezembro de 2005, 20h02

Mais uma quebra de sigilos decretada por CPI foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal. Dessa vez, o ministro Cezar Peluso manteve a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico do empresário José Roberto Funaro determinada pela CPMI dos Correios, mas determinou que os dados obtidos não sejam divulgados.

Com a decisão do Supremo, o acesso aos dados fica restrito aos membros da comissão, ao próprio Funaro e ao advogado dele e só podem ser usados “em sessão reservada”.

No pedido de Mandado de Segurança, deferido em parte, José Roberto Funaro alegou que o requerimento da CPMI dos Correios pedindo a quebra de seus sigilos não se apoiou em nenhuma situação concreta capaz de legitimá-lo. Segundo ele, a quebra se prestaria a investigar assuntos particulares, sem vínculo com a administração pública, além de transpor, arbitrariamente, os limites constitucionais do objeto da criação dessa CPMI.

Os ministros do STF têm anulado quebras de sigilos decretadas pelas comissões quando não estão fundamentadas. Nesta quinta-feira (15/1), o Supremo inovou e manteve a quebra dos sigilos da Novinvest Corretora de Valores. O ministro Marco Aurélio considerou o requerimento da comissão fundamentado.

Leia a íntegra da decisão

MANDADO DE SEGURANÇA N. 25.716-4

PROCED. : DISTRITO FEDERAL

RELATOR ORIGINÁRIO: MIN. CEZAR PELUSO

IMPTE.(S) : JOSÉ ROBERTO FUNARO

ADV.(A/S) : KARLA APARECIDA DE SOUZA MOTTA

IMPDO.(A/S): PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DOS CORREIOS

DECISÃO: 1. JOSÉ ROBERTO FUNARO impetra, contra o Presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, mandado de segurança, com pedido de liminar, alegando, em suma, que a Comissão teria aprovado requerimento de quebra de seus sigilos bancário, fiscal e telefônico, com violação de seu direito líquido e certo à preservação da intimidade.

Alega, em síntese, que a fundamentação do ato não se apoiaria em nenhuma situação concreta capaz de o legitimar, porque se prestaria a investigar assuntos particulares, sem vínculo com a administração pública, além de transpor, arbitrariamente, os limites constitucionais do objeto da criação da referida Comissão, como despontaria a seu próprio Relatório Parcial, que não aditou nem ampliou aquele objeto.

Ademais, o requerimento de quebra fundar-se-ia em resultado de auditoria de empresas com as quais o impetrante não mantém relação alguma, não se justificando devassa de sua vida financeira sob pretexto de fatos sem pertinência com o objeto das investigações parlamentares. A jurisprudência desta Corte não o permitiria, sobretudo diante do risco de publicidade danosa e irreversível, donde os pedidos de imediata suspensão da quebra, ou, quando menos, de proibição de divulgação dos elementos conseqüentes a que a autoridade tenha acesso.

2. O caso é de liminar parcial.

Não se pode afirmar a priori seja injurídico ou ilegal o ato impugnado, assim porque, conquanto se lhes associe presunção de veracidade, inerente à da litigância de boa-fé, não se sabe se os documentos que instruem a inicial contêm toda a justificação do requerimento e da eventual decisão de quebra dos sigilos do impetrante, como porque, sem confronto com as informações da autoridade, não há tampouco como acolher desde logo a alegação de excesso arbitrário.

É que, como já sustentei alhures (MS nº 25.663-MC) , em consonância com a orientação assentada pelo Plenário desta Corte, não está Comissão Parlamentar de Inquérito impedida de estender seus trabalhos a fatos outros que, no curso das investigações, despontem como ilícitos, irregulares, ou passíveis de interesse ou estima do Parlamento, desde que conexos com a causa determinante da criação da CPI, nem de aditar ao seu objetivo original outros fatos inicialmente imprevistos (HC nº 71.231, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ de 31.10.1996, e HC nº 71.039, Rel. Min. PAULO BROSSARD, apud JESSÉ CLAUDIO FRANCO DE ALENCAR, “Comissões Parlamentares de Inquérito no Brasil”, RJ, Ed. Renovar, 2005, p. 49 e 50. Cf., ainda, MS nº 23.652 e nº 23.639, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 16.02.2001).

Mas a pretensão alternativa do impetrante, essa é irrespondível.

Há, deveras, risco elevado de divulgação que, sem nenhum proveito às atividades investigativas e ao presuntivo interesse público que as informaria, pode importar danos gravíssimos à intimidade, à fama e aos negócios privados do ora impetrante. A imprensa – e é fato notório – tem, em datas muito recentes, denunciado revelações abusivas e ilícitas de dados sigilosos colhidos no seio de Comissões Parlamentares de Inquérito, com seqüelas pessoais gravosas e incontornáveis. Sobre serem de todo em todo hostis ao ordenamento jurídico, tais inconfidências nem se mostram compatíveis com os cuidados necessários à condução frutífera das investigações, que com elas só têm a perder, não apenas em termos de resultados práticos, mas também no plano do prestígio público dos órgãos responsáveis e das respectivas instituições. As CPIs não precisam dessas demasias. E nem lhes é lícito permiti-las, como também creio já tê-lo demonstrado noutro caso (MS nº 24.882-MC) .


As Comissões Parlamentares de Inquérito “terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (art. 58, § 3o, da Constituição Federal) e, como tais, estão sujeitas aos mesmos limites impostos às atividades judiciárias, designadamente aos princípios da legalidade, respeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, moralidade, motivação das decisões, proporcionalidade, etc..

Os atos do Poder Judiciário são, de regra, públicos – o que não quer dizer que se lhes dê publicidade no sentido de serem divulgados pelos meios de comunicação, senão apenas de que são acessíveis ao público. Excepcionalmente, porém, o caráter público desses atos pode ser restringido por obra de superior interesse público ou social. É o que se tira claro aos arts. 5º, LX, e 93, IX, da Constituição da República:

Art. 5º, LX:

“a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Art. 93, IX:

“todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

Toando com esses ofuscantes cânones constitucionais, dispõe, por exemplo, o Código de Processo Penal, aliás aplicável também aos processos conduzidos pelas Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 6º da Lei federal nº 1.579, de 18 de março de 1952), que:

“Art. 792. …

§ 1o. Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes.”

Uma das hipóteses exemplares de interesse público ou social, capaz de justificar, quando menos por inconveniência perceptivelmente grave, limitação ou atenuação do caráter público dos atos do Poder Judiciário, está na exigência de resguardo de direitos e garantias individuais, tutelados pela mesma Constituição da República.

Daí vem que, como expressões típicas de interesse público ou social transcendente, a inviolabilidade constitucional da intimidade, da vida privada e das comunicações do impetrante (art. 5o, X e XII, da Constituição da República) – a qual só cede a fato excepcional, em nome doutro interesse público, quando não haja meios alternativos de investigação, mas observadas sempre as regras legais e na estrita medida da necessidade concreta (proporcionalidade de expediente restritivo de direito fundamental) – se propõe como barreira intransponível aos poderes de investigação e à publicidade dos atos judiciais e, conseqüentemente, das Comissões Parlamentares de Inquérito, por força do disposto no artigo 58, § 3o, c.c. artigo 93, IX, da Constituição Federal.

Isso significa que a quebra dos sigilos bancário, telefônico e fiscal são medidas excepcionais, autorizadas pelo ordenamento jurídico nos exatos limites da necessidade de esclarecimento dos fatos investigados, de modo que à autoridade que a decrete pesa conspícuo dever jurídico de manter íntegros os mesmos sigilos, em relação às pessoas destituídas de interesse jurídico no teor dos dados e no desenvolvimento da investigação ou do processo, como é de manifestíssima imposição legal:

Lei Complementar nº 105/2001:

“Art. 3º. Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários de pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide” (grifei);

Art. 10. A quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.”;

“Art. 11. O servidor público que utilizar ou viabilizar a utilização de qualquer informação obtida em decorrência da quebra de sigilo de que trata esta Lei Complementar responde pessoal e diretamente pelos danos decorrentes, sem prejuízo da responsabilidade objetiva da entidade pública, quando comprovado que o servidor agiu de acordo com orientação oficial.”

Lei nº 9.296/96:

“Art. 1o. A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para a prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação penal, sob segredo de justiça” (grifei);


“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) ano, e multa” (grifei).

Código Penal:

“Art. 325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.”

É, portanto, manifesto que se devassa o sigilo bancário, fiscal e de comunicações, em caráter excepcional, apenas para a autoridade requerente e para todos os demais parlamentares jurídica e diretamente responsáveis pela investigação, nos estritos limites da necessidade e da proporcionalidade, donde o específico e correlato dever de o guardarem todos eles quanto a terceiros, enfim ao público.

Noutras palavras, somente têm direito de acesso aos dados sigilosos recolhidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito, neste caso, a autoridade, os senhores parlamentares membros da Comissão, o ora impetrante e seu defensor, tocando àqueles o inarredável dever jurídico-constitucional de a todo custo preservar-lhes o sigilo relativamente a outras pessoas.

É o que não escapa à doutrina:

“Na prática, o sigilo não é transferido, já que os dados permanecem também com a instituição financeira repassadora, que continua com a obrigação de manter segredo. Destarte, prefere-se as expressões co-guarda ou co-proteção do sigilo (substantivo com o prefixo), significando o dever de manutenção do segredo por parte de todo aquele que tenha acesso a dados protegidos, inclusive de parlamentares integrantes de CPI, que devem respeitar e preservar o sigilo dos dados que lhes foram transferidos. A revelação de documentos e do conteúdo de debates ou deliberações sobre os quais a lei imponha sigilo ou a Comissão haja resolvido ser secretos, por parlamentares, acarreta-lhes a aplicação de pena de responsabilidade, por falta de decoro parlamentar, nos termos do regimento interno da respectiva Casa Legislativa. Na Câmara dos Deputados, a hipótese é de perda temporária do exercício do mandato, nos termos do artigo 246, inciso III do RICD” (JOSÉ VANDERLEY BEZERRA ALVES, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, PA, Sergio A. Fabris Ed., 2004, p. 392, nº 3.1).

“Resumindo, a determinação proveniente de comissão parlamentar de inquérito permite a quebra do sigilo bancário (art. 58, § 3º, c/c o art. 38, § 1º, da Lei n. 4.596/64), pressupondo: 1º) que o uso dos dados obtidos seja somente para a investigação que lhe deu causa; 2º) que haja, obrigatoriamente, manutenção do sigilo em relação às pessoas estranhas ao fato determinado que se está investigando” (UADI LAMMÊGO BULOS, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, SP, Ed. Saraiva, 2001, p. 270. No mesmo sentido, cf. OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, “CPI ao Pé da Letra”, Campinas, Millennium Ed., 2001, p. 120, nº 85).

E é o que já decidiu o Plenário desta Corte:

“A Comissão Parlamentar de Inquérito, embora disponha, ex propria autoritate, de competência para ter acesso a dados reservados, não pode, agindo arbitrariamente, conferir indevida publicidade a registros sobre os quais incide a cláusula de reserva derivada do sigilo bancário, do sigilo fiscal e do sigilo telefônico.

Com a transmissão das informações pertinentes aos dados reservados, transmite-se à Comissão Parlamentar de Inquérito – enquanto depositária desses elementos informativos –, a nota de confidencialidade relativa aos registros sigilosos.

Constitui conduta altamente censurável – com todas as conseqüências jurídicas (inclusive aquelas de ordem penal) que dela possam resultar – a transgressão, por qualquer membro de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, do dever jurídico de respeitar e de preservar o sigilo concernente aos dados a ela transmitidos” (MS nº 23.452-RJ, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 17.04.2000. Grifos do original).

Em resumo, como depositária legal dos dados sigilosos, a Comissão não os pode desvelar nem revelar a outrem, de modo direto nem indireto, violando-lhes o segredo, que remanesce para todas as demais pessoas estranhas aos fatos objeto da investigação, mas pode, como é óbvio, segundo seu elevado aviso, deles usar e dispor sem restrições, em sessão reservada, cuja presença seja limitada a seus membros, ou, em caso de audiência do ora impetrante, também a este e a seu defensor.

3. Do exposto, defiro, em parte, a liminar, para, nos exatos termos requeridos, proibir a divulgação de todo e qualquer dado ou elemento a que a Comissão teve ou tenha acesso por conta da quebra dos sigilos do ora impetrante, ficando vedada sua reprodução em qualquer documento público ou que se destine a divulgação pública, tudo até decisão final deste mandado de segurança.

Comunique-se, imediatamente, o inteiro teor desta à autoridade, solicitando-lhe que preste as informações que entenda devidas.

Publique-se.

Brasília, 12 de dezembro de 2005.

Ministro CEZAR PELUSO

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