Veneno do sapo

Anvisa tenta coibir consumo do “veneno do sapo” em São Paulo

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12 de dezembro de 2005, 11h01

A Anvisa — Agência Nacional de Vigilância Sanitária está buscando, cada vez com maior insistência, a conscientização da população, além da regulamentação, para evitar abusos no consumo da chamada “vacina do sapo”. Virou moda em São Paulo, ao preço de R$ 120, deixar-se inocular pelo veneno de uma rã do Acre. A pajelança é feita na presença de caciques itinerantes daquele estado. Mas já ocorre o ritual sem a presença dos silvícolas. O que torna a prática ainda mais perigosa, face à potência do veneno, chamado kambô.

Ainda não há nenhuma sentença no Brasil que trate do assunto. Esse tipo de consumo é juridicamente polêmico, em todo o mundo. Por exemplo: em 18 de abril passado, a Suprema Corte dos Estados Unidos concordou em rever a decisão que autorizou uma seita do Novo México a usar em seus serviços religiosos o chá do Santo Daime, uma poção alucinógena feita com a folha de ayahuasca, uma planta amazônica.

A questão é saber até que ponto a lei que garante a liberdade religiosa autoriza o uso de substâncias proibidas pelas leis federais de combate às drogas. O governo Bush alega que o uso do chá é ilegal e potencialmente perigoso aos seguidores da seita.

Um tribunal de apelação de Denver, no Colorado, decidiu que a seita Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, de origem brasileira, estava autorizada a importar e usar a ayahuasca. O tribunal considerou que a seita, que tem 140 membros nos Estados Unidos, demonstrou que o consumo do chá faz parte dos seus rituais religiosos, uma mistura de crenças cristãs e indígenas.

Em 1990, a Suprema Corte decidiu que o governo tinha o direito de proibir o uso do peyote, uma bebida contendo mescalina, outra substância alucinógena, usada por índios americanos em rituais religiosos. Para o juiz Antonin Scalia, não se pode permitir que um indivíduo, usando como desculpa suas crenças religiosas, assuma uma conduta proibida em lei, num assunto em que o governo tem competência para legislar.

Pessoas que têm consumido o “veneno do sapo” em São Paulo dizem que a droga, ao aproximar as verdadeiras cobaias humanas da morte, “escaneiam os males” do corpo. A revista Consultor Jurídico tomou depoimentos de seis jovens que se deixaram inocular pela droga.

Relatam que a pajelança consiste em queimar o braço, com uma pedra incandescente, em quatro pontos. Em seguida, os índios acreanos arrancam a pele dos pontos queimados e depositam, na carne viva, extratos do veneno de rã. Em seguida, relatam as cobaias humanas, vem uma sensação de entorpecimento. A garganta fecha. A pulsação some. Após cinco minutos, os índios retiram a droga da carne viva. Se for ultrapassado esse tempo, numa eventual superdosagem, o acólito pode morrer.

Em suas memórias, a escritora Zelia Gattai relata que se submeteu ao kambô, como cobaia, para ver se o tratamento poderia ser aplicado em seu então marido doente, o escritor Jorge Amado. Zelia desmaiou uma semana depois, durante uma entrevista por telefone, o que a dissuadiu de repassar o tratamento a Jorge.

Sem regulamentação

A Anvisa já determinou a suspensão de toda propaganda sobre propriedades terapêuticas e medicinais da chamada vacina do sapo. A agência considera que o paciente que consome o produto está sujeito a sérios danos à saúde. Caso veículos de comunicação, empresas e pessoas físicas descumpram a determinação, estarão sujeitos às penalidades previstas na Lei 6.437/77, como notificação, autuação e multas que variam de R$ 2 mil a 1,5 milhão.

Maria José Delgado Fagundes, gerente de monitoração da Anvisa, disse à revista Consultor Jurídico que a agência se foca no uso do veneno fora das comunidades indígenas.

“O veneno está inserido num cultura, com rituais, alimentação apropriada. Agora, o uso do veneno fora das comunidades é perigosíssimo: não há segurança comprovada, não há avaliação científica. Podem surgir doenças cancerígenas, problemas renais, nefrológicos, 20 anos depois que a pessoa tomou o veneno, e ela não vai se lembrar que consumiu aquilo. É algo típico da rotina indígena que está migrando descontroladamente para a cultura do homem branco”, explica.

Anthony Wong, tido como o maior psicofarmacólogo do Brasil, ficou abismado ao saber do uso do veneno do sapo. “Basta lembrar que foi esse tipo de veneno que levou à morte o sertanista Orlando Villas-Boas. O sapo e a rã têm esses venenos para atacar, ou para se defender. São venenos mortais, perigosíssimos”.

Da selva para a cidade

O veneno do sapo é usado pelos índios katukina, do Acre, para caçar e para tratar doenças. A substância é extraída na floresta da rã Philomedusa bicolor, o kambô.

A vacina foi levada da selva para a cidade nos anos 60 pelo seringueiro Francisco Gomes Muniz, já morto. Ele viveu com os katukinas e aprendeu com o pajé a identificar a rã, que sai da toca em noites chuvosas. Não se deve tocar nela. É preciso arrancar a casca da árvore onde está o kambô.

Em lugar seguro, é preciso atiçar a rã, que expele uma espécie de espuma. A secreção é retirada e logo se cristaliza. Como há poucas rãs, elas são devolvidas à floresta. Além de usar a substância como remédio, os índios a colocam na ponta das flechas. Quando atingem um animal, a morte é quase imediata.

O escritor e jornalista Alex Antunes, autor da obra experimental A estratégia de Lilith (Editora Conrad) foi o único entrevistado que assentiu em relatar formalmente como foi sua experiência como o veneno.

“Gosto dessas coisas de cultura indígena, aumentam a percepção de nós, homens brancos de grandes cidades. Me senti muito bem na semana após ter tomado a droga. Os índios me disseram que a droga era usada, na tribo, para atrair mulheres, e também me relataram que quando tomavam o veneno ficavam invisíveis à caça, podiam caçar melhor. Não vi nenhum problema em ter tomado isso e vou continuar o tratamento”, explica.

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