Cadastro de Convênio

STF suspende inscrição de estados em cadastro de devedores

Autor

6 de dezembro de 2005, 20h52

O Supremo Tribunal Federal concedeu liminar em Medida Cautelar a favor de 19 estados da Federação, que contestam o dispositivo normativo que impede a transferência voluntária de recursos do governo federal para estados que estejam em dívida com a União.

A decisão do ministro Celso de Mello levou em conta, que mesmo em se tratando de procedimento administrativo, a Constituição garante ao cidadão ou a qualquer entidade a observância do devido processo legal e a prerrogativa do contraditório e da ampla defesa.

Na ação, os estados pediam a suspensão dos efeitos da inscrição dos estados no Cauc — Cadastro Único de Convênio, assegurando-lhes, as transferências de recursos federais, além daquelas transferências “decorrentes de operações de crédito, especialmente oriundas de processos de autorização de empréstimo externo”.

O Cauc, criado em 2001, é um subsistema do Siafi — Sistema Integrado de Administração Financeira, do governo federal, que registra o cumprimento pelas unidades da federação das exigências estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Estados que não cumprem a norma ficam impedidos de receber transferências voluntárias do governo federal.

O ministro Celso de Mello entendeu que os elementos expostos pelos estados e DF são suficientes para justificar a concessão da liminar. Para o ministro “ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se viabilize a possibilidade de imposição, a determinada pessoa ou entidade, de sanções ou de medidas gravosas consubstanciadoras de limitação de direitos”.

AC 1.033

MED. CAUT. EM AÇÃO CAUTELAR 1.033-1 DISTRITO FEDERAL

RELATOR

:

MIN. CELSO DE MELLO

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO AMAZONAS

ADVOGADO(A/S)

:

PGE-AM – RICARDO ANTONIO REZENDE DE JESUS

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DA BAHIA

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DA BAHIA

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO CEARÁ

ADVOGADO(A/S)

:

PGE-CE – EDUARDO MENEZES ORTEGA

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE GOIÁS

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE GOIÁS

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE MATO GROSSO

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE MATO GROSSO

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL

ADVOGADO(A/S)

:

PGE-MS – ULISSES SCHWARZ VIANA

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO PARÁ

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO PARÁ

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DA PARAÍBA

ADVOGADO(A/S)

:

RICARDO DE SÁ QUEIROGA E OUTRO(A/S)

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO PARANÁ

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO PARANÁ

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE PERNAMBUCO

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE RONDÔNIA

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE RONDÔNIA

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE SANTA CATARINA

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE SERGIPE

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE SERGIPE

REQUERENTE(S)

:

ESTADO DE TOCANTINS

ADVOGADO(A/S)

:

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE TOCANTINS

REQUERENTE(S)

DISTRITO FEDERAL

ADVOGADO(A/S)

PROCURADORIA-GERAL DO DISTRITO FEDERAL

REQUERIDO(A/S)

UNIÃO

ADVOGADO(A/S)

ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

DECISÃO: Trata-se de ação cautelar preparatória, com pedido de medida liminar, ajuizada por 18 (dezoito) Estados-membros da Federação e, também, pelo Distrito Federal, todos em formação litisconsorcial ativa, que tem por objetivo suspender os efeitos da inscrição dos autores no Cadastro Único de Convênio (CAUC), assegurando-se-lhes, ainda, as transferências de recursos federais, sem quaisquer outros obstáculos que não os fundados em lei ou na própria Constituição, além daquelas transferências “decorrentes de operações de crédito, especialmente oriundas de processos de autorização de empréstimo externo” (fls. 16).

Os litisconsortes ativos também postulam seja-lhes respeitada a garantia do contraditório e da ampla defesa, a ser exercida, previamente, no que se refere a qualquer inscrição no CAUC, em relação a eventual pendência própria, na forma preconizada pelo § 2º da Lei nº 10.522/02” (fls. 17), além de se assegurar, aos autores, “a observância das causas suspensivas da exigibilidade de crédito, a teor do contido no art. 151 do CTN e do art. 7º da Lei nº 10.522/02 e, alfim, que as irregularidades eventuais dos entes autônomos, indevidamente imputadas aos Autores, e eventual pendência com outro ente, que não o transferidor dos recursos, não constituam óbices à regularidade obrigacional dos Autores” (fls. 17).

Os autores esclarecem que, em 17/10/2005, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) editou a Instrução Normativa nº 1 (fls. 21/23), com o objetivo de disciplinar o cumprimento das exigências para transferências voluntárias, previstas na Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Consoante informam os autores, a referida Instrução Normativa estabeleceu novo disciplinamento jurídico ao Cadastro Único de Convênio (CAUC), originalmente criado por meio da Instrução Normativa nº 01, de 04/05/2001 (fls. 25/28).

Alegam, os litisconsortes ativos, que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece requisitos a serem observados pelos entes da Federação, para fins de efetivação das transferências voluntárias. Tais exigências impõemque o ente beneficiário dos recursos esteja em dia com o pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor” (fls. 03).

Segundo alegam os autores, com o advento da Instrução Normativa nº 1, em 17/10/2005, o Cadastro Único de Convênio (CAUC) passou a incluir registros de débitos próprios do Poder Executivo dos Estados-membros e demais unidades federadas, além daqueles concernentes aos entes integrantes das respectivas administrações indiretas: “(…) essa nova ‘repaginação’ legislativa conferida ao CAUC, pela IN STN nº 1/05, inovou no plano normativo para fazer constar, de forma sumária, sem o resguardo do contraditório e da ampla defesa, registro de débitos próprios do Poder Executivo do ente federativo e dos entes autônomos a eles vinculados – Autarquias, fundações, estatais e paraestatais” (fls. 05).

A pretensão de direito material ora deduzida pelos litisconsortes ativos apóia-se, essencialmente, nos seguintes fundamentos: (a) ofensa à Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 25, § 1º, IV, “a”); (b) desrespeito ao princípio da legalidade; (c) “violação à intranscendência subjetiva das relações obrigacionais e das sanções jurídicas correlatas” (fls. 08); (d) transgressão aos postulados do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa; e (e) inobservância do princípio da programação orçamentária.

Em despacho exarado a fls. 369/370 dos autos, determinei a citação da União, para oferecer contestação (CPC, art. 802, “caput”).

Posteriormente a esse despacho, o Estado de Alagoas formulou pedido de ingresso, como litisconsorte ativo, na presente relação processual (fls. 373).

Os autores, tendo tomado ciência do despacho que ordenou a citação, deduziram pedido de reconsideração, objetivando a imediata apreciação do pedido de medida liminar, considerada a efetiva concretização, na espécie, de situação configuradora do “periculum in mora” (fls. 375/378):

Os requerentes, pois, pedem ‘venia’ a Vossa Excelência para retornar nos autos pleiteando reconsideração dessa decisão, tendo em vista que o aguardo da resposta da União inviabilizará diversos programas dos Estados requerentes, causando-lhes prejuízos sociais, políticos, financeiros e econômicos, além de impossibilitar a análise da liminar antes do recesso forense.

A título de exemplo dos danos de difícil reparação que podem surgir diante da não-concessão da medida pleiteada na inicial, cita-se o caso do Estado do Amazonas, que concluiu tratativas com o Banco Interamericano de Desenvolvimento para um empréstimo externo no valor total de US$ 200 milhões de dólares americanos.

A operação visa a dar continuidade ao PROGRAMA SOCIAL E AMBIENTAL DOS IGARAPÉS DE MANAUS – PROSAMIM, que tem por objeto a recuperação ambiental e a requalificação urbanística dos igarapés de Manaus, Bittencourt, Mestre Chico e do Quarenta, que circundam a Capital do Estado, programa este incluído na Lei Estadual n° 2.870, de 29 de dezembro de 2003, que dispõe sobre o Plano Plurianual para o período de 2004 a 2007, e que depende da verba externa para a reurbanização de várias áreas na capital amazonense, contemplando o reassentamento habitacional de população em outra área da cidade de Manaus, a recuperação e saneamento dos cursos d’água que cortam a cidade, trazendo benefícios ambientais, inclusive, o combate e prevenção de doenças que ameaçam se tornar epidemia em época de vazante acentuada dos rios da bacia amazônica.

Mas tal operação depende ainda de autorização do Senado Federal, nos termos do art. 52 da Constituição da República, sendo que o respectivo processo administrativo se encontra precisamente na STN, que não o encaminhará ao Senado sem que as exigências do CAUC sejam observadas. Isso está em vias de inviabilizar o PROSAMIM e afetar toda uma programação financeira lançada no Plano Plurianual em curso.

Já demonstrado na inicial o ‘fumus boni iuris’, é patente também, neste caso específico, o ‘periculum in mora’, uma vez que o recesso parlamentar tem início em 15 de dezembro próximo, após o que a autorização para o empréstimo externo, pleiteado pelo Estado do Amazonas, somente será examinada no exercício vindouro, com prejuízos de ordem social à população, e de ordem administrativa, no que diz respeito ao cronograma do referido programa.

Como o Estado do Amazonas, cada um dos autores está na iminência de sofrer prejuízos incalculáveis caso não seja deferida a liminar pleiteada.” (grifei)

Passo a analisar, desse modo, a postulação cautelar ora reiterada pelos litisconsortes ativos.

Os elementos produzidos até o presente momento, nesta sede processual, notadamente aqueles expostos a fls. 375/378, revelam-se suficientes para justificar, na espécie, o integral acolhimento da pretensão cautelar ora deduzida pelos Estados-membros e pelo Distrito Federal, litisconsortes ativos na presente relação processual, eis que concorrem os requisitos autorizadores da concessão da medida liminar ora pleiteada.

A plausibilidade jurídica da pretensão cautelar formulada na presente causa resulta, dentre outros fundamentos invocados pelos autores, da aparente violação ao princípio da intranscendência (ou da personalidade) das sanções e das medidas restritivas de ordem jurídica, eis que as conseqüências gravosas resultantes do ato de inscrição no Cadastro Único de Convênio (CAUC) – por configurarem limitação de direitos – não podem ultrapassar a esfera individual das empresas governamentais ou das entidades paraestatais alegadamente devedoras, para atingir as próprias pessoas políticas (que nada devem), e de que os entes supostamente devedores constituem meras instrumentalidades administrativas.

Essa orientação – é importante assinalar – mereceu o beneplácito do Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando do exame de matéria virtualmente idêntica à que ora se analisa nesta sede processual:

CADIN (LEI Nº 10.522/2002) – INCLUSÃO, NESSE CADASTRO FEDERAL, DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA ESTADUAL, POR EFEITO DE DÉBITOS ALEGADAMENTE NÃO-QUITADOS E CUJA EXIGIBILIDADE FOI POR ELA CONTESTADA – INCIDÊNCIA, SOBRE O ESTADO-MEMBRO, DE LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA, EM DECORRÊNCIA DA VINCULAÇÃO ADMINISTRATIVA, A ELE, ENQUANTO ENTE POLÍTICO MAIOR, DA EMPRESA ESTATAL DEVEDORA – PRETENSÃO CAUTELAR FUNDADA NAS ALEGAÇÕES DE TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO ‘DUE PROCESS OF LAW’ E DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS – MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA – DECISÃO REFERENDADA.

INSCRIÇÃO NO CADIN (LEI Nº 10.522/2002) E ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS.

As conseqüências gravosas resultantes do ato de inscrição no CADIN (Lei nº 10.522/2002), por configurarem limitação de direitos, não podem ultrapassar a esfera individual das empresas governamentais ou das entidades paraestatais alegadamente devedoras, que nesse cadastro federal tenham sido incluídas, sob pena de violação ao princípio da intranscendência (ou da personalidade) das sanções e das medidas restritivas de ordem jurídica. Conseqüente impossibilidade de o Estado-membro sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas pela só circunstância de, a ele, enquanto ente político maior, acharem-se administrativamente vinculadas as entidades paraestatais, as empresas governamentais ou as sociedades sujeitas ao seu poder de controle. Precedentes.

LIMITAÇÃO DE DIREITOS E NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA DO POSTULADO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

– A imposição estatal de restrições de ordem jurídica, quer se concretize na esfera judicial, quer se efetive no âmbito estritamente administrativo, para legitimar-se em face do ordenamento constitucional, supõe o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do ‘due process of law’, assegurada à generalidade das pessoas pela Constituição da República (art. 5º, LIV), eis que o Estado, em tema de limitação de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira arbitrária. Precedentes. Alegação, pelo Estado-membro, de que a inscrição no CADIN, essencialmente limitadora de direitos, desrespeitou, no processo de sua efetivação, o prazo legal a que se refere o art. 2º, § 2º, da Lei nº 10.522/2002.

(AC 266-QO/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Disso resulta, considerado o princípio em questão, a conseqüente impossibilidade de o Estado-membro (ou o Distrito Federal) sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas pela só circunstância de, a ele, enquanto ente político maior, acharem-se administrativamente vinculadas as entidades paraestatais, as empresas governamentais ou as sociedades sujeitas ao seu poder de controle (AC 39-MC/PR, Rel. Min. ELLEN GRACIEAC 235-MC/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE).

Demais disso, cumpre reconhecer que a imposição estatal de restrições de ordem jurídica, quer se concretize na esfera judicial, quer se efetive no âmbito estritamente administrativo, para legitimar-se em face do ordenamento constitucional, supõe o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do “due process of law”, assegurada à generalidade das pessoas pela Constituição da República (art. 5º, LIV), eis que o Estado, em tema de limitação de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira arbitrária.

Cumpre ter presente, bem por isso, que o Estado, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer pessoa, física ou jurídica, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida imposta pelo Poder Público – de que resultem, como no caso, conseqüências gravosas no plano dos direitos e garantias (mesmo aqueles titularizados por pessoas estatais) – exige a fiel observância do princípio constitucional do devido processo legal (CF, art. 5º, LV).

A jurisprudência dos Tribunais, notadamente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade (pública ou privada), rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo (RDA 97/110 – RDA 114/142 – RDA 118/99 – RTJ 163/790, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 306.626/MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in Informativo/STF nº 253/2002 – RE 140.195/SC, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 191.480/SC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 199.800/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.):

RESTRIÇÃO DE DIREITOS E GARANTIA DO ‘DUE PROCESS OF LAW’.

O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal – que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos – exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina.

(RTJ 183/371-372, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Isso significa, portanto, que assiste, ao cidadão e a qualquer entidade (pública ou privada), mesmo em procedimentos de índole administrativa, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, consoante prescreve, em caráter mandatório, o art. 5º, inciso LV, da Constituição da República, tal como tem advertido, esta Suprema Corte, em sucessivas decisões, na linha da orientação jurisprudencial acima mencionada:

Mandado de Segurança. (…). 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. (…). Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. (…). Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. (…). Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV).

(RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES, Plenogrifei)

O respeito efetivo à garantia constitucional do “due process of law”, ainda que se trate de procedimento administrativo – como a inscrição no Cadastro Único de Convênio (CAUC), que não pode processar-se sem prévia audiência dos entes diretamente afetados -, condiciona, de modo estrito, o exercício dos poderes de que se acha investida a Pública Administração, sob pena de descaracterizar-se, com grave ofensa aos postulados que informam a própria concepção do Estado democrático de Direito, a legitimidade jurídica dos atos e resoluções emanados do Estado.

Esse entendimento – que valoriza a perspectiva constitucional que deve orientar o exame do tema em causa – tem o beneplácito de autorizado magistério doutrinário (ADA PELLEGRINI GRINOVER, “O Processo em Evolução”, p. 82/85, itens ns. 1.3, 1.4, 2.1 e 2.2, 1996, Forense Universitária; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1/68-69, 1990, Saraiva; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/176 e 180, 1989, Saraiva; JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR, “O Direito à Defesa na Constituição de 1988, p. 71/73, item n. 17, 1991, Renovar; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, “O Direito à Defesa na Constituição”, p. 47/49, 1994, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/268-269, 1989, Saraiva; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Direito Administrativo”, p. 401/402, 5ª ed., 1995, Atlas; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 290 e 293/294, 2ª ed., 1995, Malheiros; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 588, 17ª ed., 1992, Malheiros, v.g.).

Não se pode perder de perspectiva, portanto, considerada a essencialidade da garantia constitucional da plenitude de defesa e do contraditório, que a Constituição da República estabelece, em seu art. 5º, incisos LIV e LV, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se viabilize a possibilidade de imposição, a determinada pessoa ou entidade, de sanções ou de medidas gravosas consubstanciadoras de limitação de direitos.

A maneira como as inscrições no CADASTRO ÚNICO DE CONVÊNIO (CAUC) foram realizadas parece indicar possível ocorrência de violação ao postulado constitucional do devido processo legal (também aplicável aos procedimentos de caráter administrativo), pondo em evidência um dado extremamente relevante, eis que não teria sido facultada, na espécie, aos autores, a possibilidade de se defenderem, antes que se tornasse efetiva, com todas as suas conseqüências jurídicas lesivas, a questionada inscrição no mencionado cadastro, sequer precedida de notificação dirigida aos entes estatais atingidos.

, ainda, um outro aspecto que parece conferir densidade jurídica à pretensão cautelar ora deduzida pelos litisconsortes ativos.

Refiro-me à alegação de que a Secretaria do Tesouro Nacional, ao editar a Resolução nº 1, de 17/10/2005, teria ofendido o princípio constitucional da reserva de lei em sentido formal, como procuraram demonstrar os autores (fls. 07/08).

Não se desconhece que as resoluções administrativas – enquanto atos juridicamente subordinados à autoridade normativa da lei – não podem disciplinar matéria que foi posta, quanto ao seu regramento, sob a égide do postulado constitucional da reserva de lei em sentido formal.

Na realidade, como se sabe, o princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, mesmo quando fundada na própria Constituição – como sucede, p. ex., com o poder regulamentar do Presidente da República (CF, art. 84, incisos IV, “in fine”, e VI) ou do Ministro de Estado (CF, art. 87, parágrafo único, II) – não se reveste de idoneidade jurídica para restringir direitos ou para criar obrigações.

Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações, sob pena de incidir em matéria constitucionalmente reservada ao domínio normativo da lei formal.

O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atuacontra legemoupraeter legem”, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permitesustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…)” (grifei).

É preciso por em relevo, neste ponto, ante a sua inquestionável atualidade, o magistério de JOSÉ ANTÔNIO PIMENTA BUENO, Marquês de São Vicente (“Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, p. 232/234, itens ns. 324 a 327, 1858, reedição do Ministério da Justiça/Serviço de Documentação, 1958), cuja advertência vale rememorar, especialmente se se tiver presente a censura que esse eminente jurisconsulto do Império já fazia a propósito do abuso do poder regulamentar pelo Executivo e de suas graves implicações no plano jurídico-constitucional:

(…) Do que temos exposto, e do princípio, também incontestável, que o poder executivo tem por atribuição executar, e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se evidentemente que êle cometeria grave abuso em qualquer das hipóteses seguintes:

) Em criar direitos, ou obrigações novas, não estabelecidos pela lei, porquanto seria uma inovação exorbitante de suas atribuições, uma usurpação do poder legislativo, que só poderá ser tolerada por câmaras desmoralizadas (…).

………………………………………………

O govêrno não deve por título algum falsear a divisão dos poderes políticos, exceder suas próprias atribuições, ou usurpar o poder legislativo.

Tôda e qualquer irrupção fora dêstes limites é fatal, tanto às liberdades públicas, como ao próprio poder.

………………………………………………

Desde que o regulamento excede seus limites constitucionais, desde que ofende a lei, fica certamente sem autoridade porquanto é êle mesmo quem estabelece o dilema ou de respeitar-se a autoridade legítima e soberana da lei, ou de violá-la para preferir o abuso do poder executivo.” (grifei)

Não constitui demasia observar, no que concerne à reserva de leiconsoante adverte JORGE MIRANDA (“Manual de Direito Constitucional”, tomo V/217-220, item n. 62, 2ª ed., 2000, Coimbra) – que se trata de postulado revestido de função excludente, de caráter negativo (que veda, nas matérias a ela sujeitas, como parece suceder na espécie, quaisquer intervenções, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos), e cuja incidência também reforça, positivamente, o princípio que impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos fundados em norma legal, de tal modo que, conforme acentua o ilustre Professor da Universidade de Lisboa, “quaisquer intervenções – tenham conteúdo normativo ou não normativo – de órgãos administrativos ou jurisdicionais só podem dar-se a título secundário, derivado ou executivo, nunca com critérios próprios ou autônomos de decisão” (grifei).

Vale relembrar, neste ponto, a propósito do postulado da reserva legal – que traduz limitação constitucional ao exercício da atividade estatal – decisão emanada da colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal e que se acha consubstanciada em acórdão assim ementado:

(…) A reserva de lei constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. (…).

(RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Desse modo, consoante parecem evidenciar os documentos produzidos pelos autores, as restrições resultantes do questionado ato de inscrição no CADASTRO ÚNICO DE CONVÊNIO (CAUC), ao ultrapassarem a esfera individual dos entes alegadamente devedores, culminaram por atingir e afetar terceiras pessoas (os Estados-membros e o Distrito Federal, na espécie), a quem – ao menos em princípio – não se poderia imputar, em caráter solidário, a responsabilidade pelo adimplemento de uma obrigação que não se inseria em sua esfera de responsabilidade.

Registre-se, finalmente, que os litisconsortes ativos justificaram, de maneira inteiramente adequada, as razões que caracterizam a concreta ocorrência, na espécie, da situação configuradora do “periculum in mora” (fls. 14/15 e 375/378), enfatizando, no ponto, que “(…) a ilegal e inconstitucional inclusão dos Autores no CAUC conduzirá, inexoravelmente, nos próximos dias, à paralisação das transferências de recursos para execução de ações e serviços públicos, padecendo com isso toda a sociedade” (fls. 15).

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, defiro, “ad referendumdo E. Plenário do Supremo Tribunal Federal, o pedido de medida liminar, nos exatos termos em que deduzido pelos autores (fls. 15/16, item IV, n. 4.1, i, ii e iii).

Os efeitos da presente medida cautelar prevalecerão até que, deduzida a contestação pela União Federal, torne-se possível proceder à ponderação dos direitos e interesses em situação de antagonismo.

Comunique-se, com urgência, para cumprimento imediato, o teor da presente decisão, cuja cópia deverá ser encaminhada ao Senhor Ministro da Fazenda, ao Senhor Procurador-Geral da Fazenda Nacional e ao Senhor Secretário do Tesouro Nacional.

2. Admito, na condição de litisconsorte ativo, o Estado de Alagoas (fls. 373). Proceda-se, em conseqüência, às anotações pertinentes.

Publique-se.

Brasília, 02 de dezembro de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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