Mudanças no Judiciário

Justiça funciona como órgão financiador de caloteiros

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4 de dezembro de 2005, 10h16

Pierpaolo Bottini - por SpaccaSpacca" data-GUID="pierpaolo_bottini.png">Ele tem 29 anos de idade, apenas seis de diploma, comanda uma secretaria de nome efêmero, mas tem uma das missões mais espinhosas do governo federal. Como titular da Secretaria da Reforma do Judiciário, o advogado paulista Pierpaolo Cruz Bottini é o encarregado de traçar as políticas públicas do Executivo para o Judiciário. Numa época de crise política e conflito entre os poderes, Bottini tem sido muito bem sucedido.

Na primeira fase da reforma, a constitucional, que resultou na Emenda 45, publicada no último dia de 2004, Bottini era o segundo homem da Secretaria. O chefe, então, era Sérgio Renault, que pouco depois deixaria o cargo para assumir a subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência. Bottini assumiu o posto com a missão de levar adiante a reforma processual, a parte mais efetiva e trabalhosa do processo de reformulação do sistema judiciário.

A partir de um pacote de 26 projetos de lei, a fase infraconstitucional da reforma já começa a provocar mudanças que interessam diretamente e pragmaticamente aos operadores e clientes da Justiça. Já passou pelo Congresso e virou lei o projeto dos Agravos Retidos. Em fase final de tramitação está o que unifica o processo de conhecimento e de execução judicial, um dos mais caros ao secretário.

Bottini visitou a redação da Consultor Jurídico e durante duas horas discorreu sobre as obras e os planos da Secretaria de Reforma do Judiciário. “E quando a reforma acabar, o que o senhor vai fazer?”.

O secretário responde com tranqüilidade: primeiro, que a reforma não vai acabar, é um processo permanente de busca de aperfeiçoamento do sistema. E segundo, que sua real missão é levar ao Judiciário o esforço do Executivo para que o brasileiro tenha o mais amplo acesso à melhor Justiça.

Pierpaolo Bottini formou-se me Direito pela USP, onde fez mestrado e esta fazendo doutorado. Participaram da entrevista os jornalistas Adriana Aguiar, Maria Fernanda Erdelyi, Márcio Chaer e Mauricio Cardoso.

Leia a entrevista

ConJur — É possível perceber um certo desapontamento das pessoas com os resultados da reforma do Judiciário. Essas pessoas estão erradas ou realmente dava para esperar algo que não aconteceu?

Pierpaolo Bottini — A reforma é um processo. É um equívoco dizer que ela foi enganosa, como uma advogada disse outro dia em um jornal. A Emenda Constitucional 45 criou um marco institucional muito importante. Não atingiu e nem poderia atingir realmente a população, nessa primeira fase, porque se trata de uma reforma constitucional. Ela ainda precisa ser completada. Ainda assim, já trouxe efeitos concretos. A autonomia administrativa e financeira para as Defensorias Públicas, por exemplo. Também houve a criação de um controle do Judiciário, com o Conselho Nacional de Justiça. O CNJ vai, por exemplo, padronizar o sistema de informática dos tribunais. Com isso, qualquer cidadão vai poder acompanhar o andamento do seu caso de qualquer lugar do país. Nesse ponto vai afetar a população em geral, o que nós chamamos de índice dona Maria.

ConJur — Houve um barulho enorme em relação à súmula vinculante, e até agora ela não foi utilizada.

Pierpaolo Bottini — A súmula vinculante tem que ser utilizada de forma bastante responsável. É um instrumento que tem aspectos interessantes contra algumas práticas da própria administração pública. Nos casos de entendimentos já pacificados, baixar uma súmula vinculante é uma forma de uniformizar a questão. Resolve um problema do Judiciário e do jurisdicionado. A súmula ainda não foi aplicada, até porque está se consolidando. O próprio Conselho Nacional de Justiça está se legitimando aos poucos, e está enfrentando muita resistência.

ConJur — Como funcionará a súmula impeditiva de recursos?

Pierpaolo Bottini — O projeto da súmula impeditiva de recurso é fundamental, já que firma jurisprudência dominante tanto no Supremo, como no STJ ou TST, e orienta o juiz de primeiro grau. O juiz da Vara pode estar ou não de acordo com essa súmula. Se ele optar por aplicar a súmula, a pessoa não recorre mais.

ConJur — A resolução contra o nepotismo feita pelo Conselho Nacional de Justiça não é uma questão muito periférica? Não existem outros problemas muito mais importantes?

Pierpaolo Bottini — De certa forma é uma questão pequena, mas tem um fator simbólico muito grande, porque é moralizador. Bem mais importante do que resolução contra o nepotismo, e que não teve toda essa repercussão, foi a resolução que exige que as decisões sobre promoção de magistrados sejam públicas quando envolvem merecimento. Estivemos na França, há pouco tempo, discutindo o Judiciário. Eles ficaram espantados com a abertura brasileira, já que a maior parte das decisões na França, mesmo as judiciais, são secretas. Nesse campo, o Brasil está muito avançado. Essa decisão do Conselho, que foi respaldada por uma alteração constitucional feita na Emenda 45, é um passo para a transparência, com projeção internacional para o Brasil.


ConJur — Em que momento a reforma vai afetar diretamente a vida da população? Quando chegará ao que o senhor chamou de fator dona Maria?

Pierpaolo Bottini — Alguns efeitos da reforma constitucional já chegaram na população. Por exemplo, a autonomia da Defensoria Pública, que sem dúvida vai fortalecer o acesso à Justiça. Outro ponto seria a criação do Juizado Itinerante.

ConJur — Mas Juizado Itinerante nós já tínhamos muito antes.

Pierpaolo Bottini — A novidade é que temos a exigência dos tribunais itinerantes na Constituição. O Tribunal Regional Federal de São Paulo [3ª Região] já está fazendo o Tribunal Itinerante. Claro que é um projeto piloto ainda incipiente, mas já está acontecendo.

ConJur — O TJ de São Paulo teve que interromper o Juizado Itinerante, porque tiveram seguidos assaltos aos trailers e às pessoas que estavam lá dentro. Inclusive, parece que em um caso roubaram o trailer inteiro. Será que esses tribunais têm futuro?

Pierpaolo Bottini — A realidade de São Paulo é específica, que tem algumas dificuldades, mas não pode deixar de ser feito. Mas se transportamos a idéia dos tribunais itinerantes para Amazonas, Rondônia, Acre, Pará, isso vai funcionar direitinho.

ConJur — No Juizado Especial de Pinheiros [Zona Sul de São Paulo], a audiência de conciliação tem um prazo de quatro meses depois que é marcada e a audiência principal é agendada para depois de dez meses. Tem alguma solução para isso?

Pierpaolo Bottini — O problema é que o Juizado Especial também está recebendo muita demanda. Ele virou um meio muito popular, que fez sucesso. Se for comparar com a Justiça comum é muito rápido. Mas precisamos estruturar os Juizados. A secretaria está fazendo um diagnóstico junto com a Maria Teresa Sadek sobre os números dos Juizados Especiais. Nós pegamos sete estados em uma pesquisa, qualitativa e quantitativa, para entender o que está acontecendo nos Juizados. A pesquisa deve ficar pronta no dia 9 de dezembro deste ano de 2005. Vamos ter um seminário interno para avaliar os dados, e depois vamos publicar. O Juizado está saturado e tem vários projetos em tramitação para aumentar a sua competência.

ConJur — Quais outros projetos vão facilitar a vida da população?

Pierpaolo Bottini — Depois da reforma constitucional tem a reforma processual. E essa, sem dúvida, vai afetar tanto a dona Maria quanto a economia do país, que também tem sido prejudicada pela morosidade da Justiça. Existe uma série de estudos que falam que o custo do crédito no país ou a segurança para efetuar negócios levam em conta o fator jurisdicional. Então, vamos fazer uma reforma infraconstitucional, sem mexer no direito de defesa, para que a Justiça ande mais rápido. Por exemplo, o processo de execução civil é muito demorado porque pressupõe algumas irracionalidades. Tem um processo separado de conhecimento que acaba quando o juiz fala quais são os direitos do cidadão. Mas aí tem que começar um novo processo de execução civil para que ele receba.

ConJur — O ministro Humberto Gomes de Barros do STJ insiste muito na idéia de um único processo no caso de execução civil. Esse projeto acabaria com a fase de execução em todos os campos do direito?

Pierpaolo Bottini — São dois projetos, um que mexe com judiciais e um que mexe com os extra-judiciais, mas os dois no mesmo sentido de racionalizar esse trâmite. O de execução judicial já foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.

ConJur — A reforma do Judiciário tem quantos projetos?

Pierpaolo Bottini — São 26 projetos. Sete de processo civil que foram apresentados pelo governo. Desses, cinco já foram aprovados na Câmara. Depois são seis que modificam o processo trabalhista: um deles já foi aprovado na Comissão de Trabalho na Câmara. Também tem três de processo penal e outros sete que não foram apresentados pelo Executivo, mas que foram apontados como importantes. Também tem um de execução judicial que foi aprovado na CCJ do Senado, outro de execução extrajudicial. Por último, há um de mediação.

ConJur — Em relação a resultados, em quais projetos o senhor deposita mais esperança?

Pierpaolo Bottini — O projeto de execução de títulos judiciais e extrajudiciais tem uma grande importância. Talvez seja o maior de todos os projetos. Vai haver uma fase de liquidação, em que o devedor é intimado a pagar a dívida, no mesmo processo de conhecimento. Sobre o valor que o devedor não pagar, porque não houve acordo, deve incidir uma multa que fica retida para que haja a continuação do processo. Caso o devedor ganhe a causa, o valor da multa é devolvido. Isso impede que o devedor fique protelando o pagamento.


ConJur — Existe um projeto que pretende modificar o funcionamento dos leilões. Como seria?

Pierpaolo Bottini — O projeto, se aprovado, dará mais segurança a quem arrematou o bem, que será entregue assim que o leilão for finalizado. Hoje o devedor pode entrar com recursos para impedir a entrega do bem, que só é liberado após o julgamento.

ConJur — A penhora on-line é uma experiência relativamente nova. Mas pode induzir a pessoa a não manter uma grande quantidade de dinheiro em conta. O Ministério da Justiça tem algum levantamento nesse campo?

Pierpaolo Bottini — O levantamento informal é muito positivo. O procedimento é usado muitas vezes contra empresas que têm uma alta quantia em conta. A penhora on-line é falsamente polêmica, porque a única coisa que ela faz é transformar o expediente que era feito via correio para via Internet. Não há absolutamente nenhuma mudança além disso. Inclusive é um exemplo de alteração que pode ser feita para agilizar sem mudar a lei. Existem coisas que precisam ser ajustadas na penhora on-line, mas é uma experiência fantástica. A nossa idéia é expandir esse procedimento para a penhora on-line de veículos e de imóveis.

ConJur — Como seria a aplicação da penhora on-line para veículos e imóveis?

Pierpaolo Bottini — No caso da penhora on-line de imóveis, houve um encontro com a Anoreg [Associação dos Notários e Registradores do Brasil] e eles já têm um programa para fazer esse procedimento. A idéia é permitir a comunicação digital entre o juiz e o cartório de imóveis. O juiz vai poder mandar por e-mail a ordem de que determinado imóvel tem que ficar gravado. A pessoa interessada em comprar já fica sabendo que existe um problema envolvendo o imóvel. No caso de veículos, o processo seria no Denatran, que também tem o cadastro de todos os veículos. Estamos trabalhando com esses órgãos para desenvolver o sistema.

ConJur — Pessoas respeitáveis têm dito que a Justiça hoje é o melhor esconderijo para os devedores. O senhor acha que a reforma pode mudar essa situação?

Pierpaolo Bottini — Não é nem um ótimo esconderijo, é um ótimo órgão de financiamento. Se uma pessoa deve R$ 300 mil e, em vez de pagar a dívida, aplica o dinheiro no banco enquanto o processo corre na Justiça, vai ganhar dinheiro até sair uma decisão. Se a Justiça não funciona, é porque esse tipo de situação interessa a alguém. Por isso se enfrenta tanta dificuldade para aprovar uma reforma para valer. Mas se passarem os projetos de execução, de efeito suspensivo da operação, da súmula de recurso, além do projeto de agravos que já passou, haverá uma boa racionalização da tramitação dos processos.

ConJur — Qual projeto afetaria mais o cotidiano a população?

Pierpaolo Bottini — Tem um projeto que prevê que o divórcio consensual e o processo de inventário poderão ser feitos em cartório. Não faz sentido ter que ir até o juiz se o marido e a mulher querem se separar e estão de acordo quanto a isso.

ConJur — Se a separação consensual puder ser feita no cartório, não há o risco de um marido forçar a mulher a firmar um acordo contra sua vontade, sem que haja a fiscalização do Ministério Público?

Pierpaolo Bottini — Para evitar esse tipo de situação, o projeto exige a presença de um advogado subscrevendo. Se for constatada alguma irregularidade, o advogado responde por ela.

ConJur — Estatisticamente, qual vai ser o efeito disso?

Pierpaolo Bottini — O Conselho Nacional de Justiça está trabalhando nisso, mais ainda não há estatísticas. É um problema sério. De acordo com a experiência, podemos perceber que o número de divórcios consensuais é bastante significativo. No caso de partilha também. Esse projeto ainda não passou pela Câmara, mas pode facilitar muito, já que vai tirar da Justiça processos que nunca deveriam ou precisariam ter ido para a Justiça.

ConJur — Na área trabalhista, quais são os projetos mais interessantes?

Pierpaolo Bottini — Um deles permite que a autenticação de cópias seja feita pelo advogado. Ele mesmo se responsabiliza pela veracidade do documento. Este já foi aprovado na Câmara dos Deputados e está no Senado. É um projeto que facilita a vida do advogado, diminui a burocracia. Tem outro que exige depósito prévio para apresentação de ação rescisória na Justiça Trabalhista, e um outro que reduz a possibilidade de Recurso de Revista.

ConJur — O senhor diria que as mudanças mais importantes para reformar o Judiciário estão no campo das formalidades ou no campo da mentalidade?

Pierpaolo Bottini — As duas mudanças têm que acontecer ao mesmo tempo. Não há uma mudança na cultura por si só. Ela tem que vir acompanhada por alguma alteração legislativa. Mas só a alteração legislativa não basta, precisa vir acompanhada de uma tomada de consciência crítica.


ConJur — O Estado tem uma participação importante na morosidade da Justiça, já que contribui com uma enorme quantidade de processos.

Pierpaolo Bottini — Realmente há muitas ações envolvendo o Estado. Para tentar melhorar isso, nós da Secretaria de Reforma do Judiciário, o INSS e a Justiça Federal fizemos uma reunião informal e tiramos oito medidas consensuais que poderiam racionalizar a atuação do Poder Público em juízo. Dentre elas, algumas súmulas administrativas. Assinamos esse documento e entregamos ao Conselho da Justiça Federal, que já encaminhou para o Conselho Nacional de Justiça e para o ministro da Previdência. Ou seja, é uma contribuição que os próprios envolvidos no problema estão oferecendo.

ConJur — O Tribunal de Justiça está soterrado por 550 mil recursos. Com a distribuição automática, a criação de câmaras temáticas e o mutirão, que teve até a participação de juízes de primeira instância, imaginava-se que esse número fosse abaixar. Não só não abaixou, mas aumentou. Qual sua opinião sobre isso?

Pierpaolo Bottini — A maior parte desses 550 mil processos é de Agravo de Instrumento. Com a nova Lei de Agravos Retidos deve haver uma diminuição considerável. Uma outra parte do estoque de processos em atraso é de Embargos de Execução. Já temos também um projeto de lei para que os embargos não dêem efeito suspensivo. Se for aprovado, vai evitar que exista o embargo do embargo, que será permitido apenas uma vez. Se não houver resposta, a discussão continua no tribunal superior. Pode haver a apelação, mas a execução continua. Então, esse conjunto de projetos vai poder contribuir para a diminuição desse número no TJ de São Paulo.

ConJur — Há um empenho do Judiciário para que a questão da morosidade se resolva?

Pierpaolo Bottini — Sim, os membros do Judiciário têm todo o interesse. É o que o Nelson Jobim costuma falar: não adianta ter um Ayrton Senna dirigindo no trânsito de São Paulo, porque ele não vai conseguir correr. No caso do Judiciário, é a mesma coisa. Não adianta ter um juiz muito bom, qualificado, se o sistema não ajuda. Por mais que a culpa da morosidade não seja do juiz, ele vai ser sempre o responsável. Estamos tendo uma rara articulação de forças.

ConJur — No caso de São Paulo, são essas medidas que podem acelerar as coisas? Não precisa muito mais que isso?

Pierpaolo Bottini — Não sabemos como vai ser o impacto desses projetos porque eles foram feitos com base em constatações empíricas. Neste sentido, o papel do Conselho vai ser extremamente importante para fornecer números. É obrigação constitucional do CNJ de apresentar o relatório estatístico do Judiciário a cada semestre. No começo do ano que vem deve sair um novo relatório e a tendência é que, com o passar do tempo, estes relatórios fiquem cada vez mais minuciosos.

ConJur —Se existem processos demais, se os processos demoram demais para ter uma decisão, a conclusão automática é que tem juiz de menos. Nós temos um número adequado de juízes?

Pierpaolo Bottini — Temos muitos juízes. O problema é a quantidade dos processos. No Brasil são 7,7 juízes por 100 mil habitantes. É um índice acima do considerado razoável pela ONU. O Brasil gasta 3,66% do orçamento público com o sistema judicial. É um gasto muito alto até para padrões internacionais, um dos maiores do mundo. O problema todo está no índice muito grande de pessoas que entram com uma ação judicial: um em cada dez habitantes recorre à Justiça para resolver litígios. Por isso, o juiz brasileiro trabalha muito. Ele dá, em média, quatro sentenças por dia.

ConJur — A ONU fez uma pesquisa em que compara o número de juízes dos países mais miseráveis com o da Suíça. Uma pesquisa assim pode ser considerada correta?

Pierpaolo Bottini — Não é correto. Mas a ampla litigiosidade não vem da relação desigual, mas do governo e das grandes empresas. Tanto que os estados com maior IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] são os que mais litigam. Em São Paulo, temos uma ação para cada seis habitantes. No Pará, temos uma ação para 50 habitantes. A litigiosidade acompanha o desenvolvimento, e não o contrário.

ConJur — Se a reforma do Judiciário fizer a Justiça funcionar bem e rápido, essa demanda represada que todos nós sabemos que existe não vai entupir os encanamentos novamente?

Pierpaolo Bottini — A lei que prevê a instalação de 2 mil pontos de inclusão digital e de internet para que qualquer cidadão possa fazer a petição eletrônica, elaborada pelo Conselho de Justiça Federal em convênio com o Ministério das Comunicações e o Ministério da Justiça, sofreu esse tipo de resistência para ser aprovada. Aliás, o projeto piloto de inclusão digital está acontecendo aqui em São Paulo, em Francisco Mourato [na Região Metropolitana de São Paulo]. Nós não podemos pensar que não devemos agilizar a Justiça porque mais pessoas vão querer usá-la. O que precisamos é mudar a cultura da população e oferecer outros meios para solucionar os conflitos, como a mediação. Temos um projeto de lei que torna obrigatória a tentativa de mediação em todas as ações civis. Se o mediador não conseguir solucionar, aí o processo continua no Judiciário. Na área penal, por exemplo, temos a Justiça restaurativa.


ConJur — O que é a Justiça restaurativa?

Pierpaolo Bottini — É uma mediação penal. Na legislação brasileira só se pode fazer mediação em crime de menor potencial ofensivo. Para tentar solucionar o conflito, que geralmente envolve lesão corporal, são reunidos a vítima, o ofensor, algumas pessoas da comunidade e um mediador. O Brasil tem três projetos pilotos de Justiça Restaurativa: em São Caetano (SP), Porto Alegre (RS) e Taguatinga (DF). A experiência já funciona em outros países e está sendo aceita no Brasil, principalmente em São Caetano.

ConJur — Não tem nenhum projeto da reforma que considera a arbitragem?

Pierpaolo Bottini — Por enquanto não, mas estamos fazendo discussões sobre isso. A arbitragem é uma instituição fantástica, está resolvendo muita coisa, e somos a favor do seu fortalecimento. O problema é que tem órgãos cometendo práticas abusivas e claramente ilegais. Tem algumas instituições que se auto-intitulam Tribunal Superior de Justiça Arbitral e são completamente fraudulentos. Isso está começando a afetar a imagem das instituições sérias, das Câmaras de Arbitragem, das Câmaras de Comércio. Por isso, estamos reunindo um grupo seleto de entidades sérias de arbitragem para discutir como enfrentar essa situação.

ConJur —As pessoas pensam que esses órgãos ilegais de arbitragem têm algum vínculo com o Judiciário?

Pierpaolo Bottini — O problema é que como o público alvo da arbitragem é a pessoa física, isso pode levar a engano. Temos relatos de pessoas que moram na periferia e recebem uma intimação arbitral de um oficial de Justiça arbitral e acham que é uma intimação da Justiça. Muitas vezes, essa pessoa foi a uma loja qualquer, comprou alguma coisa, e a loja carimba atrás do cheque uma cláusula arbitral. Então o sujeito assina, passa por todo um procedimento arbitral e acha que esteve no Judiciário. Na verdade é um estelionato. O nome Justiça Arbitral induz a erro e queremos fazer uma campanha educativa sobre isso.

ConJur — Esses procedimentos irregulares acontecem porque não há uma regulamentação sobre arbitragem?

Pierpaolo Bottini — A lei não faz nenhuma espécie de regulamentação. Para que a arbitragem funcione bem basta que as partes escolham uma pessoa idônea para mediador. O problema é que isso facilita a ação ilegal. Temos que pensar uma forma de coibir, mas sem regulamentar de forma excessiva para não desestabilizar a prática. Com uma vasta discussão sobre o assunto é possível encontrar um ponto de equilíbrio.

ConJur — A arbitragem vai sair do feudo dos grandes negócios e enveredar para a classe média?

Pierpaolo Bottini — A arbitragem resolve alguns problemas, mas não todos. Quando é feita a clausula arbitral, tem de ter pelo menos as duas partes acordando. Talvez isso se incorpore paulatinamente. É um instrumento muito interessante, que vai ter que se desenvolver cada vez mais, porque a PPP [Parceria Público-Privada] prevê arbitragem do Poder Público.

ConJur — Existem casos como o do Pimenta Neves, que matou a Sandra Gomide há mais de cinco anos, em que existe o corpo, a confissão, a testemunha, a arma do crime, mas o cidadão até hoje não foi julgado. A defesa enfática do direito de defesa não acaba beneficiando o criminoso?

Pierpaolo Bottini — A lei é muito clara ao estabelecer em que casos são cabíveis a prisão preventiva. Ela não é decretada por causa da gravidade do crime ou a quase certeza do crime. Só pode ser utilizada quando sujeito ameaça a testemunha ou alguma coisa do gênero. Porém, o maior problema não é a prisão preventiva, mas o processo do júri. É um processo penal muito peculiar em que quase todo o procedimento é repetido duas vezes. Tem a fase preliminar e a fase de plenário, o que contribui, e muito, para a morosidade. Um dos três projetos apresentados para a área criminal, que não é nem desse Ministério da Justiça, nem desse governo, mas que achamos importante incorporar, visa justamente unificar o processo do júri. O projeto diminui a fase preparatória. Outro projeto na área criminal, pretende que todos os depoimentos sejam tomados em uma única audiência. Hoje temos uma audiência para testemunha de acusação, uma para testemunha de defesa e uma para ouvir o réu. A idéia é racionalizar o processo. Projetos desse tipo são mais efetivos do que cortar a possibilidade de recursos. Não é o prazo de 15 dias do recurso que vai fazer diferença num processo de seis anos.

ConJur — O Brasil é um dos países com maior índice de homicídios. É exagerado dizer que a Justiça brasileira patrocina o crime?

Pierpaolo Bottini — É um problema de falta de Estado como um todo e não de falta de Judiciário. Os locais onde maior é o índice de violência são os que menos têm a presença do Estado. Falta delegacia, hospital, escola. A falta de um meio formal de resolução de conflitos pode criar meios informais de administração de Justiça. Uma coisa é um líder comunitário fazendo a mediação para resolver os litígios dos moradores. É um comportamento legítimo. Outra coisa é o líder comunitário fazer Justiça Penal. Aí fica complicado.


ConJur — Nenhum projeto a competência do Ministério Público para investigar?

Pierpaolo Bottini — Não, a questão de investigação do Ministério Público será decidida pelo Supremo, que dirá se é constitucional ou não.

ConJur — Como doutorando em Direito Penal, qual a sua posição sobre o assunto?

Pierpaolo Bottini — Eu acho que a investigação pode ser feita, mas tem de ser regulamentada.

ConJur — Segundo o procurador-geral da República, em dez anos não houve uma única punição de membros do Ministério Público no âmbito da União. O senhor acha que isso se deve ao espírito de corpo ou à lei que estabelece prazos muito curtos para a prescrição?

Pierpaolo Bottini — Nenhuma instituição é composta só de homens de bem. Não sei qual a razão de não haver punição, mas posso garantir que ao criar um órgão de controle, o Conselho Nacional do Ministério Público, que tem competências de corregedoria, este problema vai poder ser visto mais de perto. Não podemos dizer que o Judiciário foi um exemplo de punições aos seus membros. Com o fortalecimento do CNJ e do CNMP vai haver maior acompanhamento disciplinar. No Judiciário, a corregedoria funciona muito bem para a primeira instância, mas é muito difícil com a segunda instância. Quando existe fiscalização na segunda instância, é feita por dois desembargadores. Eu não diria que a regra é o corporativismo, mas quando se trata de duas pessoas da mesma hierarquia, é muito difícil uma controlar a outra.

ConJur —O Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público já disseram a que vieram?

Pierpaolo Bottini — Creio que sim. Os Conselhos estão em fase de consolidação, de legitimação e estão provocando muitos atritos, enfrentando muitas dificuldades. Mas são órgãos indispensáveis.

ConJur — O CNJ, principalmente, encontra muita resistência.

Pierpaolo Bottini — O que está causando mais polêmica nos Conselhos não é nem o controle externo, mas o conceito de Federação. Quando um órgão federal impõe regras aos Ministérios Públicos dos estados ou ao Judiciário dos estados, como aconteceu com a resolução do nepotismo, alega-se que há uma interferência na autonomia dos estados. A alegação não é mais de conflito de poderes, até porque o Conselho está dentro do Judiciário. E tem um agravante a mais, porque tem estados que já têm leis sobre nepotismo. O Rio Grande do Norte diz que o nepotismo é proibido mas só nas próximas contratações. Goiás permite que haja a contratação de até dois parentes. Então tem um problema de constitucionalidade, que é uma resolução do Conselho versus uma lei do estado. A Resolução do Conselho deve prevalecer, porque está fazendo uma interpretação da Constituição. Lei estadual não tem competência para determinar isso. Ainda vamos ver muita notícia sobre nepotismo, ações, liminares e isso só vai acabar no Supremo.

ConJur — O que ainda dá para fazer pela reforma do Judiciário nesse último ano de governo Lula?

Pierpaolo Bottini — A reforma está com a parte processual bem avançada. Ainda dá tempo de aprovar alguns projetos de lei. Também será entregue um diagnóstico do Ministério Público para se pensar em políticas públicas nessa área.

ConJur — A crise política afetou o andamento da reforma?

Pierpaolo Bottini — Não afetou porque os projetos são terminativos na CCJ [Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania] da Câmara e não precisam passar pelo Plenário. No Senado, tivemos alguns problemas na CCJ no início, mas conseguimos controlar no meio da crise política. Houve uma percepção de que são projetos técnicos, sem fundo político partidário e, por isso, conseguimos consenso de governo e oposição.

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