Lavanderia financeira

Anistia para repatriar dinheiro pode ser prêmio ao crime

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28 de agosto de 2005, 10h11

Conceder anistia fiscal para aqueles que legalizarem dinheiro não declarado ao Fisco ou repatriarem recursos mantidos de forma ilegal no exterior passa a mensagem de que o crime compensa. Por mais que o resultado da medida seja benéfico aos cofres públicos em curto prazo, aplica-se uma punição aos que mantêm suas contas em dia e premia-se os que não cumprem suas obrigações.

Essa é a opinião do juiz federal Fernando Moreira Gonçalves, 36, um defensor da firme aplicação de Lei. Nesta entrevista à equipe da revista Consultor Jurídico, concedida em sua redação em São Paulo, o juiz afirma que o combate à lavagem de dinheiro só não é mais eficiente porque o Coaf — Conselho de Controle de Atividades Financeiras não é bem aparelhado. “Parece até que é proposital”, alfineta, se referindo ao descaso do governo federal com o órgão.

Gonçalves discorre sobre lavagem de dinheiro com a experiência de quem comandou o pedido de bloqueio e repatriação do dinheiro do juiz Nicolau dos Santos Neto em contas de bancos suíços e que ajudou a redigir o tratado de cooperação para a troca de informações na área penal entre o Brasil e o país dos Alpes.

Titular da 1ª Vara Federal Criminal de Campinas desde 2003, o magistrado chegou a freqüentar a Academia de Polícia (“Não gostei muito da atividade”), atuou como promotor de Justiça em São Paulo por quatro anos e há sete julga crimes contra o sistema financeiro. Formado em Direito em 1992 pela PUC de Campinas, Gonçalves acaba de chegar da Espanha, onde concluiu um mestrado em Direito Público.

Participaram da entrevista o diretor de redação da ConJur Márcio Chaer, o editor Rodrigo Haidar e os repórteres Leonardo Fuhrmann e Maria Fernanda Erdelyi.

Leia a entrevista

ConJur — Trava-se no mundo um litígio entre o crime organizado e o combate ao crime organizado. Quem está ganhando?

Fernando Gonçalves — Difícil dizer. Depois que se identifica um determinado esquema de atuação do crime organizado, são elaboradas leis e as autoridades se preparam para combater aquela forma de atuação. E essa é uma luta constante: as autoridades procurando se aperfeiçoar, conhecer como funciona o crime e, de outro lado, o crime buscando novos métodos que as autoridades ainda não conhecem.

ConJur — Isso se aplica ao combate à lavagem de dinheiro.

Fernando Gonçalves — Sim. O primeiro caso famoso de lavagem é o do Al Capone [gangster ítalo-americano que comandava o submundo do crime em Chicago e traficava bebidas alcoólicas nos Estados Unidos na época da Lei Seca]. Ele foi condenado, em 1931, a 11 anos de prisão por sonegação de impostos. Nunca foi codnenado pelos assassinatos que praticou, extorsões, entre outros crimes. Sua única condenação foi por sonegação fiscal. Isso alertou as autoridades: “Opa, o lado financeiro é o ponto frágil do crime organizado”. Não por coincidência, no ano seguinte a literatura registra a primeira operação internacional de lavagem de dinheiro. Mas, da mesma forma que as autoridades aprenderam que aquele era o caminho para pegar o crime organizado, o crime organizado viu que precisava diminuir essa fragilidade, lavar melhor o dinheiro. Desde então trava-se essa luta de estratégia entre a bandidagem e as autoridades.

ConJur — A principal preocupação do primeiro mundo nesse momento é o terrorismo?

Fernando Gonçalves — Sim. Principalmente a partir de 11 de setembro de 2001. Por parte do governo norte-americano praticamente a única preocupação. Pela força que o governo dos Estados Unidos têm nos organismos internacionais, eles acabam colocando isso como prioridade também. Tanto que os principais organismos de combate à lavagem de dinheiro passaram a incluir o combate ao terrorismo até na sua denominação.

ConJur — Essa política dos Estados Unidos afeta o Brasil?

Fernando Gonçalves — Para se ter uma idéia de como afeta, o Brasil assinou em 1988 a Convenção de Viena de combate ao tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, que entrou em vigor aqui no país por um decreto de 1992. Mas até 1998 nós ainda não tínhamos criado nossa lei de combate à lavagem de dinheiro. Foi fundamental para a elaboração dessa lei a pressão internacional feita pelo fato de o Brasil ser signatário de um tratado no qual ele se comprometia a criar essa legislação. A falta dessa lei começava a criar um constrangimento internacional para o Brasil.

ConJur — Como está a nossa legislação em relação à de outros países?

Fernando Gonçalves — Nossa lei é muito boa, incorporou em nosso ordenamento jurídico o que havia de mais moderno na época. Em alguns pontos a decisão era política, como na questão dos crimes antecedentes. A lei lista alguns crimes que são antecedentes ao da lavagem. Ou seja, se o dinheiro lavado foi produto de um crime que não está na lista, não será considerado crime de lavagem. E isso foi uma opção política do legislador na época. A grande crítica que se faz nesse sentido é a questão dos crimes tributários. Ocultar hoje, no Brasil, dinheiro produto de sonegação fiscal não é crime de lavagem porque o crime de sonegação não está entre os crimes antecedentes.


ConJur — Você acha que deve ser incluído?

Fernando Gonçalves — Sim, deve ser incluído.

ConJur — Já existem projetos de lei no Congresso Nacional que aumentam esse leque de crimes antecedentes.

Fernando Gonçalves — Existe uma tendência de se fazer como fez a Argentina, que adotou a regra de que ocultar dinheiro produto de qualquer delito é crime de lavagem de dinheiro. Mas, na época que a nossa lei foi aprovada, me parece que a opção do legislador foi correta. Havia uma preocupação de não banalizar o crime de lavagem de dinheiro, para que a lei fosse aplicada realmente nos crimes mais graves.

ConJur — Diante do quadro atual, a lei não deveria ser revista?

Fernando Gonçalves — O Brasil tem progredido no combate à lavagem, mas ainda temos deficiências estruturais sérias, principalmente no Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], que é um órgão que tem papel fundamental. No caso do Marcos Valério, por exemplo, o Coaf foi o primeiro órgão a demonstrar o gigantismo das operações que esse empresário tinha feito. O papel da inteligência financeira é justamente identificar essas grandes operações suspeitas. Mas o Coaf é, hoje, um órgão que trabalha à míngua de recursos materiais. Não tem servidores próprios, trabalha com pessoal emprestado de outros órgãos e sofre todo tipo de carência material. Isso é uma coisa que me leva a pensar até que…

ConJur — …que não há vontade política para fazer com que o Coaf funcione pra valer.

Fernando Gonçalves — Que é proposital, que não há interesse deste governo — como não houve dos que o antecederam — de dotar o Coaf de uma estrutura que seja realmente eficiente, apta a identificar e dar respostas a essas questões da lavagem de dinheiro.

ConJur — Então o fato de não se detectar antes as movimentações do Marcos Valério não significa incompetência do Coaf.

Fernando Gonçalves — Não conheço o caso concreto. Os bancos, por exemplo, podem ter deixado de cumprir seu papel de comunicar ao Coaf essas operações. Se houve isso, os funcionários responsáveis por essa comunicação nos bancos respondem criminalmente pela omissão. Agora, se houve a comunicação e o Coaf deixou, por qualquer razão, inclusive falta de estrutura, de tomar as providências que eram cabíveis, aí deve ser apurada a responsabilidade do Coaf.

ConJur — Até porque há a suspeita de que uma parte do Estado e dos bancos participou dessas operações. Órgão nenhum consegue atuar numa situação dessa, não é?

Fernando Gonçalves — Fica difícil porque um dos principais delitos que se procura coibir com o combate à lavagem de dinheiro é o crime de corrupção, que no Brasil é apontado como principal delito que gera recursos que, depois, são lavados.

ConJur — Qual é a definição jurídica de corrupção nesse contexto?

Fernando Gonçalves — Corrupção do ponto de vista de quem exerce a função pública é o recebimento da vantagem indevida. E da parte de quem não é funcionário público é o pagamento dessa vantagem.

ConJur — O dinheiro lavado produto da corrupção ganha do tráfico de drogas?

Fernando Gonçalves — Esse é o dado que tem sido apontado pelo ministro Gilson Dipp [do Superior Tribunal de Justiça], que é o principal especialista hoje no assunto. O ministro reuniu uma comissão no STJ em 2001, com representantes de diversos órgãos, e deu importantes sugestões para aperfeiçoar o combate à lavagem. Disso surgiu a Encla [Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro], que é a idéia do ministro Dipp encampada pelo Ministério da Justiça.

ConJur — Para atuar sem amarras, não seria o caso de os órgãos de fiscalização como o Coaf estarem ligados ao Ministério Público em vez de subalternos a quem ocupa cargo eletivo?

Fernando Gonçalves — Sem dúvidas. Na América do Sul, a Colômbia, com o apoio dos Estados Unidos, criou uma estrutura que é a que produziu os melhores resultados em termos de quantidade de casos identificados, de processos judiciais e pessoas condenadas. E o ponto fundamental para o progresso no combate a esse crime foi o trabalho conjunto da unidade de inteligência financeira com o Ministério Público.

ConJur — Quando o Coaf identifica uma movimentação financeira suspeita encaminha diretamente para o Ministério Público? Qual é o caminho?

Fernando Gonçalves — A comunicação não é automática porque o critério para definir uma operação financeira suspeita não é objetivo. É uma conclusão a que se chega a partir da análise de um conjunto de dados. Uma transferência de milhões de reais feita por uma grande empresa ou por um cliente do banco que tem um perfil compatível com aquela operação, em princípio não tem nada de mais. Mas se for verificado que, em determinado caso, uma operação feita por uma pessoa que não tem renda declarada, não tem recursos suficientes para fazer a movimentação, isso começa a chamar a atenção. Aí cabe o comunicado.


ConJur — Mas como a estrutura é falha deve passar muita coisa.

Fernando Gonçalves — Passa, sem dúvida nenhuma.

ConJur — Nosso sistema financeiro é frágil?

Fernando Gonçalves — O sistema financeiro do Brasil conta com uma regulamentação muito boa, que foi se aperfeiçoando na década passada. Hoje, eu diria que dos meios que podem ser utilizados para a lavagem de dinheiro, o sistema financeiro é o que está mais protegido por meio de regulamentação.

ConJur — Como explicar, então, a grande saída de dinheiro do país, como a vista em recentes episódios políticos?

Fernando Gonçalves — A maior parte do dinheiro sai em nome de laranjas, por doleiros que operam à margem do sistema financeiro regulamentado. A regulamentação tem funcionado e a prova disso é que o crime organizado busca alternativas. Ou seja, dentro do sistema financeiro hoje é muito mais difícil lavar, a não ser que exista a conivência de funcionários de bancos.

ConJur — É possível combater a lavagem que é feita via offshore com a utilização de laranjas?

Fernando Gonçalves — Só há uma forma: intensificar a cooperação internacional. Fica difícil combater a lavagem se existem países com sigilo fiscal muito rígido. Por meio da cooperação nós podemos identificar uma operação suspeita e pedir ao país onde está sediada a offshore que informe ao Brasil quem é o dono do dinheiro. Dentro do devido processo legal, precisamos demonstrar que existem fortes indícios de que aquele dinheiro é produto de crime.

ConJur — Há avanços na cooperação?

Fernando Gonçalves — País nenhum hoje se interessa em receber depósito de dinheiro que vem de tráfico de drogas ou de terrorismo. O Gafi [Grupo de Ação Financeira] reúne as unidades de inteligência financeira do mundo todo e tem um papel importante. Em 1992, as Ilhas Seychelles anunciaram que concederiam imunidade diplomática para quem estivesse disposto a depositar recursos lá, desde que o dinheiro não fosse produto de crime de sangue cometido nas Ilhas. Ou seja, ofereceram imunidade diplomática para todo tipo de criminoso que se dispusesse a depositar o dinheiro ali. A pressão internacional do Gafi fez as autoridades de lá recuarem.

ConJur — O Brasil tem tratados de cooperação internacional com muitos países? Qual o tamanho dessa rede?

Fernando Gonçalves — O número de tratados não é o mais importante. Até me preocupa quando eu vejo o Ministério da Justiça anunciar que vai celebrar tratados com 60 países ou alguma coisa assim. Não existe um volume de pedidos de cooperação com tantos países que justifique dispensar energias para sair celebrando acordos mundo afora. Se for analisada a quantidade de países com os quais nós temos interesse, onde existe realmente dinheiro de brasileiros, o número é pequeno. Eu diria que chega a dez. O caminho é estreitar relações com os países que interessam.

ConJur — O número de países é pequeno, mas o volume de recursos é grande. Tem mais dinheiro lá fora ou aqui dentro?

Fernando Gonçalves — Essa questão é complicada porque se trata de dinheiro obtido de forma clandestina, não entra em contabilidade. Estimativas do governo americano dão conta de que é lavado US$ 1 trilhão anualmente no mundo. Mas o problema das estatísticas é justamente contar dinheiro clandestino, do qual não se tem conhecimento dos valores.

ConJur — É impossível saber qual o volume de dinheiro de brasileiros que se encontra irregularmente no exterior. Não se faz nem idéia?

Fernando Gonçalves — Eu já ouvi falar de US$ 200 bilhões, mas trata-se de estimativas.

ConJur — No ano passado foi fechado um tratado de cooperação com a Suíça para acelerar a troca de informações na área penal.

Fernando Gonçalves — A Suíça foi um país que no passado recebeu muito dinheiro de origem suspeita. Mas hoje é um exemplo de cooperação internacional. Tanto que no caso do TRT [desvio de dinheiro na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo] os suíços identificaram essas operações suspeitas e bloquearam os recursos que estavam lá. No caso do [ex-prefeito de São Paulo, Paulo] Maluf não havia mais dinheiro nos bancos suíços. Com isso, a Suíça deixou claro que o interesse do país é cooperar.

ConJur — No caso do Maluf o dinheiro não estava mais na Suíça, mas eles identificaram o montante que passou por ali. No caso do juiz aposentado Nicolau [dos Santos Neto, condenado pelos desvios de recursos da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo] ainda há uma parte do dinheiro que não é devolvido porque a Justiça suíça exige uma condenação definitiva dele no Brasil. Dada a lentidão da Justiça brasileira, corre-se o risco de o crime prescrever e esse dinheiro ser devolvido para a conta do juiz Nicolau?

Fernando Gonçalves — Se o Nicolau for absolvido ou não chegar a ter uma condenação definitiva aqui no Brasil essa possibilidade existe. E isso será um vexame para o Brasil, causado única e exclusivamente pela nossa legislação e pela demora da nossa própria Justiça. As autoridades suíças fizeram o que estava ao alcance delas.


ConJur — O senhor atuou diretamente no caso.

Fernando Gonçalves — Eu pedi o bloqueio e a repatriação do dinheiro do Nicolau em janeiro de 2000, por meio de uma carta rogatória. A Suíça aceitou de imediato o pedido de bloqueio. Já havia também um bloqueio provisório determinado pela própria Justiça suíça. Ou seja, se caísse um dos pedidos, havia o outro. Mas a devolução do dinheiro está condicionada à condenação definitiva.

ConJur — Qual a sua opinião sobre o projeto de anistia fiscal para quem repatriar dinheiro ilegal?

Fernando Gonçalves — Dar anistia é uma opção política válida. Mas minha opinião pessoal é a de que isso não é bom. O caminho correto é aplicar a lei em vigor, reforçar os mecanismos de investigação e de punição de quem descumpriu a lei. A anistia gera a sensação de que o crime compensa. A mensagem que se passa é a seguinte: fui mais esperto, soneguei tributos, escondi meu dinheiro produto de crime e agora posso utilizar ele aqui no Brasil.

ConJur — Num país onde grande parte do dinheiro dos impostos vai para o custeio da folha de pagamento de funcionários públicos e onde as pessoas estão desencantadas com serviços públicos em geral, o Estado não deveria ser um pouco mais condescendente com quem, por exemplo, não paga impostos para poder manter a empresa, e não por vocação criminosa?

Fernando Gonçalves — Aí existem duas questões. Em primeiro lugar, realmente a carga tributária é muito alta comparada com a de países com mesmo grau de desenvolvimento do Brasil. Mas é uma idéia equivocada dizer que a maior parte do orçamento da União é gasta com pagamento de salários. A maior parte vai hoje para pagamento de juros.

ConJur — Sim, mas a questão principal é: o Estado pode ser tão rigoroso com o contribuinte quando não tem rigor nenhum consigo próprio?

Fernando Gonçalves — Novamente entramos em dois pontos diferentes. O Estado tem sim que ser rigoroso no cumprimento da lei, pois a lei tem de ser igual para todos. Me chama a atenção quando a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] se manifesta contra a operação da Polícia Federal na Daslu, mas não se preocupa com a concorrência desleal que a sonegação fiscal gera. Não deve haver nenhum tipo de afrouxamento ou abrandamento com a justificativa de que a carga tributária é pesada. Por outro lado, tem de haver mais cobrança da sociedade. Quem paga todos seus tributos em dia tem força moral para cobrar que o Estado gaste melhor e menos, para que a carga tributária seja reduzida.

ConJur — O Poder Público tem compartilhado com a sociedade a responsabilidade de combater o crime organizado. Bancos, corretoras, imobiliárias, joalherias, têm que informar às autoridades operações e transações estranhas ou incomuns. Alguns tentam, inclusive, estender essa obrigação aos advogados. Está dando certo essa nova forma de dar poderes, quase que de polícia ou de fiscalização, à iniciativa privada?

Fernando Gonçalves — Na verdade não existe outra opção, porque são atividades econômicas vulneráveis, que estão sujeitas a serem utilizadas na lavagem de dinheiro. Veja o exemplo dos bancos. Se você tem dentro dessa atividade um agente que se dispõe a trabalhar com dinheiro ilícito, ele também vai atuar no mercado numa condição de vantagem, até de concorrência desleal com os que não aceitam esse tipo de atuação. Por isso o Estado, por meio da lei, estabelece que as pessoas que atuam nesses ramos vulneráveis, sujeitos à lavagem de dinheiro, têm obrigação de comunicar operações suspeitas. A lei prevê punição para o caso de descumprimento dessa obrigação de comunicar. É loucura imaginar, por exemplo, que o Banco Central teria condições de acompanhar todas as movimentações que são feitas no país. Só quem tem condições de acompanhar isso é o gerente da agência, que conhece o cliente e sabe se aquele cliente tem ou não condições de realizar aquelas movimentações.

ConJur — Quem tem conhecimento de uma operação ilícita dentro da iniciativa privada e não comunica às autoridades deve responder junto com o acusado como cúmplice?

Fernando Gonçalves — Não. Deve responder pelo descumprimento específico da obrigação de comunicar.

ConJur — Se não houve comunicação no caso dos saques de empresas do Marcos Valério, o banco terá de responder.

Fernando Gonçalves — Sem dúvida nenhuma. Por exemplo, se ocorreram saques acima dos valores que o banco é obrigado a comunicar, mas não comunicou, o funcionário do banco que deixou de cumprir essa obrigação vai ter que responder criminalmente por isso.

ConJur — Falamos da precariedade do Coaf, da falta de comunicação entre os órgãos. As instituições brasileiras estão funcionando?

Fernando Gonçalves — Acredito que sim, embora a situação hoje não seja perfeita. Mas quando olhamos para trás, vemos que os progressos são evidentes. No âmbito da Justiça Federal, o principal progresso foi a implantação das varas especializadas em combate à lavagem de dinheiro.


ConJur — Críticos dizem que na prática essas varas mudaram apenas de denominação.

Fernando Gonçalves — Não é verdade. Em São Paulo, por exemplo, nós temos duas varas que cuidam só de lavagem de dinheiro e de crimes contra o sistema financeiro. E elas estão sobrecarregadas. A vantagem da criação dessas varas é a especialização das pessoas que ali atuam. De funcionários a procuradores e juízes. A resposta do Judiciário também se torna mais rápida. Facilita a comunicação entre os órgãos. Por exemplo, o Banco Central tem uma operação suspeita de remessa de recursos para o exterior. Com as varas especializadas, os técnicos do BC já sabem para onde se dirigir se for o caso de pedir o bloqueio dessa remessa. Porque depois que o dinheiro sai, é um trabalho muito grande trazê-lo de volta.

ConJur — O que o senhor acha da proposta de deixar que o Ministério Público Estadual também denuncie crimes de lavagem e evasão internacional quando o crime antecedente acontece na esfera estadual?

Fernando Gonçalves — Evasão de divisas é algo de interesse da União. Logo, a competência é da Justiça Federal. Mas eu não vejo problema algum na atuação conjunta das esferas estadual e federal do Ministério Público quando é necessário. No caso Maluf me parece que houve essa parceria e o resultado foi bom. O que não pode é haver disputa, porque isso atrapalha as investigações.

ConJur — Já que estamos falando de competência, o que o senhor acha da federalização, aprovada na reforma do Judiciário e tão discutida no caso do assassinato da freira Dorothy Stang no Pará?

Fernando Gonçalves — Quero ressaltar que a Justiça Federal não é melhor nem pior que a Justiça Estadual. A federalização não pode ser banalizada e deve ser aplicada aos casos em que autoridades locais podem estar envolvidas nos crimes. O filme Mississipi em Chamas é um bom exemplo de como isso pode funcionar. Três jovens defensores dos direitos humanos são assassinados no estado do Mississipi e as pessoas suspeitas daquele assassinato eram muito ligadas com a comunidade local. Submetidos a um júri local, eles foram absolvidos. Mas, tempos depois, foram condenados em um processo movido na Justiça Federal norte-americana por crime de violação aos direitos humanos. Ou seja, levado o julgamento para a esfera federal, distante daquela comunidade, houve a possibilidade de se fazer um julgamento mais isento.

ConJur — O senhor pode citar exemplos de casos que deveriam ser federalizados no Brasil?

Fernando Gonçalves — No caso de Eldorado dos Carajás [assassinato de 21 integrantes do MST no Pará, em 1996, por policiais militares], por exemplo, havia não só envolvimento de comandantes da polícia local, mas também suspeitas de responsabilidade até mesmo do secretário de Segurança Pública. Nesse caso, até para a imagem do Poder Judiciário, seria melhor a atuação de autoridades não vinculadas àqueles órgãos estaduais. Outro caso é o do [presídio do] Carandiru [assassinato de 111 presos, em 1992, em São Paulo, numa operação da Polícia Militar para controlar uma rebelião]. Não se sabia até que ponto o episódio poderia evoluir já que havia até a possibilidade de envolvimento do governador.

ConJur — Ou seja, o requisito para a federalização seria a suspeita de envolvimento ou responsabilidade de alguma autoridade estadual.

Fernando Gonçalves — Acredito que sim. Ou nos casos em que fique demonstrado que as autoridades estaduais não têm vontade política ou não tem interesse em apurar determinado delito. Porque, depois, quem responde por isso no âmbito internacional é a União.

ConJur — Como o senhor avalia a atuação dos Juizados Especiais Federais?

Fernando Gonçalves — A criação dos juizados ajudou muito a agilizar a Justiça. Em São Paulo, por exemplo, existe mais de um milhão de ações apenas de causas previdenciárias. Isso na Justiça tradicional levaria tempo demais para ser julgado, comparado ao tempo de espera nos juizados. Primeiro, foi feito investimento muito importante em informatização. Em segundo lugar, acabaram os privilégios da fazenda pública, como o prazo em dobro para recursos. No âmbito dos juizados não existem mais os precatórios. O processo termina, emite-se uma ordem e a pessoa pega o valor que lhe é devido no caixa do banco.

ConJur — Como está a movimentação criminal na Justiça Federal hoje? Que crime é o campeão de denúncias?

Fernando Gonçalves — Na minha vara, em Campinas [segunda maior cidade de São Paulo, a 100 quilômetros da capital], a maioria dos processos é de empresários que não conseguem recolher a contribuição previdenciária descontada dos salários dos empregados. Como esse dinheiro foi descontado do salário dos empregados e depois não é recolhido, isso é considerado crime de apropriação indébita.


ConJur — Essa maioria corresponde a que percentual?

Fernando Gonçalves — Cerca de 30% do total de processos é sobre apropriação indébita de contribuição previdenciária. Depois são processos de sonegação fiscal e outros tributos. Em terceiro lugar vem tráfico de drogas, crime de moeda falsa, contrabando.

ConJur — Moeda falsa é comum?

Fernando Gonçalves — Muito comum. Acho que esses são os principais delitos. Lógico que crimes contra o sistema financeiro aqui na capital de São Paulo é muito mais comum. Há também os crimes da moda. Teve uma época aqui em São Paulo que roubo contra carteiro era uma praga.

ConJur — Roubo de quê? De correspondência?

Fernando Gonçalves — Sim. Para roubar cartão de crédito ou talão de cheques que eram levados pelo carteiro.

ConJur — A União é quem mais ocupa espaço na Justiça Federal?

Fernando Gonçalves — União e INSS são os dois principais demandados ou demandantes. Depois tem Caixa Econômica Federal, nos casos de FGTS. Tirando essas três entidades, são mais raros os processos. Uma ou outra autarquia federal.

ConJur — Mas a União, como ente passivo ou ativo, que percentual da carga da Justiça Federal representa, aproximadamente?

Fernando Gonçalves — A União e o INSS ocupam, certamente, quase 90%.

ConJur — A impressão é a de que o crime de sonegação…

Fernando Gonçalves — Para alguém ser processado criminalmente por crime de sonegação fiscal, hoje em dia, tem de fazer um esforço muito grande. Foi feito de tudo nos últimos anos para que as pessoas não sejam processadas por esse crime. Principalmente depois do entendimento do Supremo Tribunal Federal, de que a ação penal só pode iniciar após o término do processo administrativo.

ConJur — Aí entra a questão da extinção da punibilidade com o pagamento do que é devido.

Fernando Gonçalves — Sim, a pessoa recorre administrativamente durante anos e, se perder, paga e fica livre da ação penal.

ConJur — Mas são comuns os casos em que se atropelam essas regras. Sempre há notícia de uma ação penal instaurada sem o fim do procedimento administrativo?

Fernando Gonçalves — Não é bem assim. Aí nós podemos entrar numa outra questão, que é a divisão de competências entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Me parece um equívoco que o STF se considere competente para revisar decisões do STJ em matéria criminal, principalmente em sede de Habeas Corpus. Todos esses entendimentos, inclusive nos crimes fiscais, são frutos de um entendimento do Supremo Tribunal Federal, digamos, mais pró-contribuinte ou pró-acusado. Não que o STJ seja pró-sociedade ou seja contra o contribuinte, mas me parece que o STJ tem uma vocação natural melhor para atuar em matéria criminal. E essa revisão que o Supremo costuma fazer em decisões do STJ, inclusive em Habeas Corpus, não me parece bom para o processo criminal. Acaba gerando insegurança. As decisões do STJ, em princípio, deveriam ser definitivas porque se trata de interpretação de lei e o último tribunal que deve dar interpretação de lei no país é o STJ, não o Supremo. Mas tenho visto vários casos em que o Supremo toma para si a competência de interpretar a aplicação de leis no âmbito criminal.

ConJur — Mas não se exige o pré-questionamento lá atrás?

Fernando Gonçalves — Em regra sim. Essa questão do pré-questionamento, da discussão de teses jurídicas se aplica bem para processos tributários, cíveis, previdenciários. Nesse ponto a questão me parece tranqüila. Mas, em matéria criminal, é um pouco mais complicado.

ConJur — O senhor pode dar um exemplo de casos em que o Supremo reformou uma decisão do STJ, na esfera criminal, que não deveria ter feito?

Fernando Gonçalves — Eu não me recordo de um determinado caso. Mas lembro de processos criminais, inclusive da minha vara, que a questão era de clara interpretação de lei. E por meio de Habeas Corpus a defesa conseguiu levar o caso até o Supremo e o Supremo modificou.

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