Macartismo caboclo

Ministros do Supremo criticam atitude de senadores na CPI

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24 de agosto de 2005, 20h59

O comportamento dos senadores durante a reunião de terça-feira (24/8) da CPI dos Bingos causou indignação aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Durante o depoimento do ex-secretário nacional de Comunicação do PT Marcelo Sereno, o advogado Roberto Podval se envolveu num bate-boca com os senadores. Na tentativa de impedir o advogado de falar, os parlamentares o insultaram e o ameaçaram de expulsão da sala e de prisão.

Um dos ministros da mais alta corte do país lembrou aos colegas que o direito do advogado falar e o tratamento digno ao depoente foram respeitados até mesmo nas reuniões da Comissão de Atividades Anti-Americanas, a entidade do Congresso dos Estados Unidos, presidida pelo senador Joseph McCarthy, encarregada da caça aos comunistas nos anos 50. Milhares de intelectuais, artistas e líderes políticos foram perseguidos pelo movimento que ficou conhecido como macartismo.

Nas conversas entre os ministros do Supremo, foi manifestada a perplexidade com o comportamento inquisitorial dos parlamentares, que tratam depoentes como se estes já estivessem condenados e não como suspeitos. Foi lembrada ainda decisão do ministro Celso de Mello durante a CPI do Narcotráfico, em 1999, reconhecendo os direitos do depoente e as prerrogativas dos advogados diante dos parlamentares investidos do poder de investigação. Mello, que havia dado um voto de nove páginas a favor do advogado, redigiu um novo voto de 18 páginas para rejeitar o pedido de reconsideração apresentado pelos parlamentares(leia a íntegra nesta página).

O presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-SP, Mário de Oliveira Filho, afirmou nesta quarta-feira (24/8) que o Estatuto da Advocacia deve ser respeitado nas CPIs, assim como fora delas. “É uma lei federal que vale perante a Polícia, o Ministério Público e a Justiça. A função da CPI é equivalente à do Judiciário e o advogado pode pedir ‘pela ordem’ para se manifestar em defesa dos direitos de seu cliente”, explicou. A presença dos advogados nas CPIs é regulamentada pela lei 10.679, de maio de 2003. Apesar de deixar claro que os profissionais podem acompanhar seus clientes inclusive durante sessões secretas, a lei não especifica quais são os limites da atuação durante os depoimentos.

Para Oliveira, o comportamento dos parlamentares durante as CPIs em funcionamento atualmente no Congresso é abusivo. “Alguns deles desconhecem sua função e se sentem no direito de ofender quem está sendo ouvido e criticar as estratégias dos advogados. Não é imaginável que um magistrado diga algo parecido durante um julgamento”, criticou. O advogado acompanhou na CPMI dos Correios o ex-presidente da Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato.

Nesta quarta-feira (24/8), o presidente em exercício da OAB, Aristoteles Atheniense, divulgou nota de apoio a Podval. Logo após a discussão, sem conhecer detalhes sobre o ocorrido, Atheniense afirmou que os advogados não deveriam falar durante depoimentos a CPIs. E citou exemplos de outros criminalistas que permaneceram calados durante as oitivas. “As restrições feitas ao advogado pelos senadores são descabidas”, destacou, agora, em sua nota.

Atheniense negou que a OAB esteja sendo omissa na defesa das prerrogativas dos advogados que acompanham seus clientes às CPIs e criticou o comportamento dos senadores. “O tratamento dispensado ao advogado pela CPI foi realmente absurdo, conforme vim a constatar pelo diálogo ocorrido entre parlamentares e advogados. O direito à atuação do profissional perante a CPI não pode ser apenas simulado, mas efetivo, pois do contrário não haveria justificativa alguma em sua presença junto ao cliente a quem estiver assistindo”, afirmou.

Podval e Beatriz Rizzo, sócia do criminalista que também foi atacada pelos senadores, divulgaram uma nota dirigida ao presidente interino da OAB, em que reafirmam o direito de se manifestarem durante o depoimento à comissão. “Não se pode confundir o direito de se comunicar livremente com o cliente, com a impossibilidade de interferir no mérito das respostas do cliente, ou de responder pelo cliente; o direito de pedir a palavra pela ordem e o direito de formular requerimento verbal para exigir o cumprimento de preceito normativo, com outras espécies de manifestação oral do advogado, em procedimentos de natureza contraditória, como, por exemplo, o direito à sustentação oral”, explicaram.

Os criminalistas destacaram que deviam ser punidos não pelo que disseram aos senadores, mas caso permitissem abusos contra o cliente e o direito de defesa. “O advogado tem direito de falar em CPI. Tem, aliás, o dever de falar em CPI. O que o advogado não tem é o direito de se omitir e de silenciar diante de abusos, ilegalidades e arbitrariedades”, destacaram. O criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, ex-presidente da OAB-SP, enviou uma carta de solidariedade a Podval e sugeriu a Atheniense um ato de desagravo ao criminalista. “Orgulhoso de ser seu amigo, declaro estar ao seu lado agora e sempre para lutarmos contra a mesquinhez e o obscurantismo dos que não respeitam a liberdade e a dignidade do homem”, afirmou.


Leia a decisão do ministro Celso de Mello

MANDADO DE SEGURANÇA 23.576-4 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE: CARLOS DE ARAÚJO PIMENTEL NETO

ADVOGADO: CARLOS DE ARAÚJO PIMENTEL NETO

ASSISTENTE: CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

IMPETRADO: PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CPI DO NARCOTRÁFICO)

EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. ATUAÇÃO ABUSIVA. INADMISSIBILIDADE. SUBMISSÃO INCONDICIONAL DA CPI À AUTORIDADE DA CONSTITUIÇÃO E DAS LEIS DA REPÚBLICA. EXIGÊNCIA INERENTE AO ESTADO DE DIREITO FUNDADO EM BASES DEMOCRÁTICAS. DIREITOS DO CIDADÃO E PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS DO ADVOGADO. LEGITIMIDADE. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO INDEFERIDO.

– O respeito incondicional aos valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.

A autoridade da Constituição e a força das leis não se detêm no limiar das Comissões Parlamentares de Inquérito, como se estas, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado, paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República.

Se é certo que não há direitos absolutos, também é inquestionável que não existem poderes ilimitados em qualquer estrutura institucional fundada em bases democráticas.

A investigação parlamentar, por mais graves que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se dos limites traçados pela Constituição e nem transgredir as garantias, que, decorrentes do sistema normativo, foram atribuídas à generalidade das pessoas.

Não se pode tergiversar na defesa dos postulados do Estado Democrático de Direito e na sustentação da autoridade normativa da Constituição da República, eis que nada pode justificar o desprezo pelos princípios que regem, em nosso sistema político, as relações entre o poder do Estado e os direitos do cidadão – de qualquer cidadão.

– A unilateralidade do procedimento de investigação parlamentar não confere à CPI o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais.

No contexto do sistema constitucional brasileiro, a unilateralidade da investigação parlamentar – à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial – não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública, poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.

– O Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

O exercício do poder de fiscalizar eventuais abusos cometidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito contra aquele que por ela foi convocado para depor traduz prerrogativa indisponível do Advogado, no desempenho de sua atividade profissional, não podendo, por isso mesmo, ser ele cerceado, injustamente, na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele que lhe outorgou o pertinente mandato.

O Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão.


A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra e nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.

O ordenamento positivo brasileiro garante ao cidadão, qualquer que seja a instância de Poder que o tenha convocado, o direito de fazer-se assistir, tecnicamente, por Advogado, a quem incumbe, com apoio no Estatuto da Advocacia, comparecer às reuniões da CPI, nelas podendo, dentre outras prerrogativas de ordem profissional, comunicar-se, pessoal e diretamente, com o seu cliente, para adverti-lo de que tem o direito de permanecer em silêncio (direito este fundado no privilégio constitucional contra a auto-incriminação), sendo-lhe lícito, ainda, reclamar, verbalmente ou por escrito, contra a inobservância de preceitos constitucionais, legais ou regimentais, notadamente quando o comportamento arbitrário do órgão de investigação parlamentar lesar as garantias básicas daquele – indiciado ou testemunha – que constituiu esse profissional do Direito.

– A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos e nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência e nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.

Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitarem os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.

DECISÃO: Trata-se de pedido de reconsideração, que, formulado pelo Senhor Presidente da CPI/Narcotráfico, visa à reforma de decisão por mim proferida no âmbito de processo mandamental instaurado contra abusos alegadamente cometidos por esse órgão de investigação legislativa, que teria, injusta e arbitrariamente, impedido o exercício, por Advogado, das prerrogativas jurídicas inerentes ao desempenho de sua atividade profissional.

A decisão que se pretende modificar foi por mim assim ementada (fls. 45):

“COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. ADVOGADO. DIREITO DE VER RESPEITADAS AS PRERROGATIVAS DE ORDEM PROFISSIONAL INSTITUÍDAS PELA LEI Nº 8.906/94. MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA.

A Comissão Parlamentar de Inquérito, como qualquer outro órgão do Estado, não pode, sob pena de grave transgressão à Constituição e às leis da República, impedir, dificultar ou frustrar o exercício, pelo Advogado, das prerrogativas de ordem profissional que lhe foram outorgadas pela Lei nº 8.906/94.

O desrespeito às prerrogativas – que asseguram, ao Advogado, o exercício livre e independente de sua atividade profissional – constitui inaceitável ofensa ao estatuto jurídico da Advocacia, pois representa, na perspectiva de nosso sistema normativo, um ato de inadmissível afronta ao próprio texto constitucional e ao regime das liberdades públicas nele consagrado. Medida liminar deferida.”

A ilustre autoridade apontada como coatora – depois de enfatizar que sempre respeitou todas as prerrogativas profissionais “necessárias ao bom exercício” da Advocacia e que apenas negou, ao ora impetrante, “prerrogativas que nem a Constituição, nem a Lei, nem o Regimento Interno da Câmara dos Deputados lhe conferem” (fls. 62) – assim resumiu a sua visão em torno dos fatos que motivaram a impetração do presente mandado de segurança (fls. 62):

“Para evitar que seu cliente depusesse sobre fatos que lhe eram desfavoráveis, mas sobre os quais se dispunha a discorrer, o Impetrante quis se manifestar utilizando a palavra, como se Deputado fosse. Impedido de fazê-lo, começou a vociferar e recusou-se a retornar a seu lugar, sendo retirado da sala pelos policiais que faziam as vezes de seguranças da Câmara dos Deputados naquela sessão, na cidade de Campinas. O ato do advogado enquadrou-se, em tese, no crime contra as CPIs previsto no art. 4º, I da Lei 1.579/52, porquanto daquela maneira, com assuadas, tentou impedir o regular funcionamento da Comissão. Não foi preso em flagrante justamente porque a CPI respeita os profissionais do direito.” (grifei)

O Senhor Presidente da CPI/Narcotráfico, com alegado apoio no princípio da separação de poderes, sustenta que não se há de conceder ao Advogado, que atua perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de tribuna, eis que essa faculdade – consistente na prerrogativa da manifestação oral ou do uso da palavra – assiste, unicamente, no âmbito da instituição legislativa, ao membro do Congresso Nacional, de tal modo que ao Advogado somente caberá – sempre observada a peculiaridade de que inexiste contraditório na esfera do inquérito parlamentar – a possibilidade de meramente protestar, quando for o caso, “por escrito” (fls. 67).

Passo a apreciar o pedido de reconsideração formulado pela Presidência da CPI/Narcotráfico.

A presente causa – motivada por grave denúncia resultante de alegados abusos que teriam sido praticados pela CPI/Narcotráfico contra o exercício, por Advogado, do direito de dar assistência técnica e de prestar orientação jurídica àquele que o constituiu – suscita reflexões necessárias em torno das relações que se estabelecem, no âmbito de uma sociedade democrática, entre o Direito e o Poder.

O regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.

Na realidade, o respeito incondicional aos valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.

A autoridade da Constituição e a força das leis, por isso mesmo, não se detêm no limiar das Comissões Parlamentares de Inquérito, como se estas, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República.

Se é certo que não há direitos absolutos, também é inquestionável que não existem poderes ilimitados em qualquer estrutura institucional fundada em bases democráticas.

A investigação parlamentar, por mais graves que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se dos limites traçados pela Constituição e nem transgredir as garantias, que, decorrentes do sistema normativo, foram atribuídas à generalidade das pessoas.

Nesse contexto, não se pode tergiversar na defesa dos postulados do Estado Democrático de Direito e na sustentação da autoridade normativa da Constituição da República, eis que nada pode justificar o desprezo pelos princípios que regem, em nosso sistema político, as relações entre o poder do Estado e os direitos do cidadão – de qualquer cidadão.

Não se questiona a asserção de que a investigação parlamentar reveste-se de caráter unilateral, à semelhança do que ocorre no âmbito da investigação penal realizada pela Polícia Judiciária. Inexiste qualquer dúvida, também, de que a natureza do inquérito parlamentar – tanto quanto se verifica com o próprio inquérito policial – revela-se incompatível com a prática do contraditório.

A decisão concessiva da medida liminar, cuja reconsideração é ora postulada, não desconsiderou, em momento algum, o sentido de unilateralidade e o caráter inquisitivo do procedimento de investigação parlamentar.

Cabe advertir, no entanto, como já proclamou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sob a égide da vigente Constituição, a propósito do inquérito policial (que também é conduzido de maneira unilateral, sem observância da garantia do contraditório, tal como ocorre com a investigação parlamentar), que a unilateralidade desse procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais:

“INQUÉRITO POLICIAL – UNILATERALIDADE – A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO.

– O inquérito policial, que constitui instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado a subsidiar a atuação persecutória do Ministério Público, que é – enquanto dominus litis – o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária.

A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.

O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.”

(RTJ 168/896, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Torna-se evidente, portanto, que a unilateralidade da investigação parlamentar – à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial – não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública, poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.

É por essa razão – como pude enfatizar na decisão concessiva da medida liminar (fls. 51) – que, embora amplos, os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito não são ilimitados e nem absolutos, daí resultando, consoante estabeleceu a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, que esses órgãos de investigação parlamentar não podem formular acusações e nem punir delitos (RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD), nem desrespeitar o privilégio contra a auto-incriminação que assiste a qualquer indiciado ou testemunha (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), nem decretar a prisão de qualquer pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância (RDA 196/195, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD).

Na realidade, tendo-se presente esse contexto, assiste ao Advogado a prerrogativa – que lhe é dada por força e autoridade da lei – de velar pela intangibilidade dos direitos daquele que o constituiu como patrono de sua defesa técnica, competindo-lhe, por isso mesmo, para o fiel desempenho do munus de que se acha incumbido esse profissional do Direito, o exercício dos meios legais vocacionados à plena realização de seu legítimo mandato profissional.

O Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa que deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental.

Precedentes.

Ninguém pode ser tratado como culpado, independentemente da natureza do ilícito penal que lhe possa ser atribuído, sem que exista decisão judicial condenatória transitada em julgado.

O princípio constitucional da não-culpabilidade consagra, em nosso sistema jurídico, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.”

(HC 79.812-SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Vê-se, portanto, que nenhuma autoridade pública, não importando o domínio institucional a que esteja vinculada, pode constranger qualquer pessoa – indiciado ou testemunha – a depor sobre fatos cuja resposta possa gerar situação de grave dano ao depoente, expondo-o ao risco de auto-incriminação.

Cabe enfatizar, por necessário, que o privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito (NELSON DE SOUZA SAMPAIO, “Do Inquérito Parlamentar”, p. 47/48 e 58/59, 1964, Fundação Getúlio Vargas; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, p. 65 e 73, 1999, Ícone Editora; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 3, p. 126-127, 1992, Saraiva, v.g.) – traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, assegurado a qualquer pessoa, consoante tem proclamado a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 78.814-PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g. ).

Em nada altera essa asserção o fato de, muitas vezes, a Comissão Parlamentar de Inquérito qualificar, formalmente, como testemunha, quem, na verdade, se acha sob investigação.

É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu o privilégio contra a auto-incriminação também em favor de quem presta depoimento na condição de testemunha, advertindo, então, que Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la” (RTJ 163/626, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei).

O fato irrecusável é um só: o direito ao silêncio constitui prerrogativa individual que não pode ser transgredida por qualquer dos Poderes da República, eis que – repita-se – ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 68.742-DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g. ).

Mais do que isso, nenhuma conclusão desfavorável ou qualquer restrição de ordem jurídica pode ser imposta à pessoa que, de modo inteiramente legítimo, exerce o direito de permanecer em silêncio. Nesse sentido, orienta-se autorizado magistério doutrinário exposto em obras de eminentes Professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro” , p. 396, 1993, Saraiva; ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal” , p. 113, item n. 7, nota de rodapé n. 67, 1997, RT).

Se, não obstante essa realidade normativa que emerge do sistema jurídico brasileiro, a Comissão Parlamentar de Inquérito – ou qualquer outro órgão posicionado na estrutura institucional do Estado – desrespeitar tais direitos que assistem à generalidade das pessoas, justificar-se-á, em tal específica situação, a intervenção do Advogado para fazer cessar o ato arbitrário ou, então, para impedir que aquele que o constituiu culmine por auto-incriminar-se.

O exercício do poder de fiscalizar eventuais abusos cometidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito contra aquele que por ela foi convocado para depor traduz prerrogativa indisponível do Advogado, no desempenho de sua atividade profissional, não podendo, por isso mesmo, ser cerceado, injustamente, na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele que lhe outorgou o pertinente mandato.

A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos e nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência e nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.

Os fins o justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitarem os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.

Mesmo o indiciado, portanto, quando submetido a procedimento inquisitivo, de caráter unilateral, em cujo âmbito não incide a regra do contraditório (é o caso do inquérito parlamentar e do inquérito policial), não se despoja de sua condição de sujeito de determinados direitos e de senhor de garantias indisponíveis, cujo desrespeito põe em evidência a censurável face arbitrária do Estado cujos poderes devem necessariamente conformar-se ao que impõe o ordenamento positivo da República.

Esse entendimento – que reflete a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, construída sob a égide da vigente Constituição – encontra apoio na lição de autores eminentes, que, não desconhecendo que o exercício do poder não autoriza a prática do arbítrio, ainda que se cuide de mera investigação conduzida sem a garantia do contraditório, enfatizam que, em tal procedimento inquisitivo, há direitos titularizados pelo indiciado que não podem ser ignorados pelo Estado. Nesse sentido, cabe referir o magistério de FAUZI HASSAN CHOUKE ( “Garantias Constitucionais na Investigação Criminal” , p. 74, item n. 4.2, 1995, RT); ADA PELLEGRINI GRINOVER ( “A Polícia Civil e as Garantias Constitucionais de Liberdade” , in “A Polícia à Luz do Direito”, p. 17, 1991, RT); ROGÉRIO LAURIA TUCCI ( “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro” , p. 383, 1993, Saraiva); ROBERTO MAURÍCIO GENOFRE ( “O Indiciado: de Objeto de Investigações a Sujeito de Direitos” , in “Justiça e Democracia”, vol. 1/181, item n. 4, 1996, RT); PAULO FERNANDO SILVEIRA ( “Devido Processo Legal – Due Process of Law” , p. 101, 1996, Del Rey); ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR ( “Inquérito Policial e Ação Penal” , p. 60-61, item n. 48, 7ª ed., 1998, Saraiva); LUIZ CARLOS ROCHA ( “Investigação Policial – Teoria e Prática” , p. 109, item n. 2, 1998, Saraiva), v.g. .

Assume inquestionável valor, presente o contexto ora em análise (direitos do indiciado e do Advogado perante a CPI), a lição de ODACIR KLEIN ( “Comissões Parlamentares de Inquérito – A Sociedade e o Cidadão” , p. 48-49, item n. 4, 1999, Sergio Antonio Fabris Editor), que tanta expressão deu, quando membro do Congresso Nacional, à atividade legislativa:

“O texto constitucional consagra o princípio de que ninguém é obrigado a se auto-incriminar.

Dessa forma, estará agindo no mínimo autoritariamente quem, participando de uma CPI, negar o direito ao silêncio à pessoa que possa ser responsabilizada ao final da investigação.

Em seu interrogatório, o indiciado terá que ser tratado sem agressividade, truculência ou deboche, por quem o interroga diante da imprensa e sob holofotes, já que a exorbitância da função de interrogar está coibida pelo

art. 5º, III, da Constituição Federal, que prevê que ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’.

Aquele que, numa CPI, ao ser interrogado, for injustamente atingido em sua honra ou imagem, poderá pleitear judicialmente indenização por danos morais ou materiais, neste último caso, se tiver sofrido prejuízo financeiro em decorrência de sua exposição pública, tudo com suporte no disposto na Constituição Federal, em seu art. 5º, X.

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Na condição de indiciado, terá direito à assistência de advogado, garantindo-se ao profissional, com suporte no art. 7º da Lei 8.906/94 – Estatuto da Advocacia e da OAB – comparecer às reuniões da CPI (VI, d), nelas podendo reclamar, verbalmente ou por escrito, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento (XI)” (grifei) .

Nem se diga, de outro lado, na perspectiva do caso em exame, que a atuação do Poder Judiciário, nas hipóteses de lesão a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, configuraria intervenção ilegítima dos juízes e Tribunais na esfera de atuação do Poder Legislativo.

Eventuais divergências na interpretação do ordenamento positivo não traduzem e nem configuram situação de conflito institucional, especialmente porque, acima de qualquer dissídio, situa-se a autoridade da Constituição e das leis da República.

Isso significa, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo – é imune à força da Constituição e ao império das leis.

Uma decisão judicial – que restaura a integridade da ordem jurídica e que torna efetivos os direitos assegurados pelas leis – não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já proclamou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em unânime decisão:

“O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

— A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.

Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.

— O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, b>desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.

Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República.” (MS 23.452-RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

O Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, há de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão.

A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra e nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.

A observância dos direitos e garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos – magistrados, administradores e legisladores.

O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.

Ainda que em seu próprio domínio institucional, nenhum órgão estatal pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e das leis da República.

O respeito efetivo pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentais outorgadas pela ordem jurídica aos cidadãos em geral representa, no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais expressivo e o indício mais veemente de que se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição da República.

A separação de poderes – consideradas as circunstâncias históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria constitucional – não pode ser jamais invocada como princípio destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o exercício do direito de protesto contra abusos que possam ser cometidos pelas instituições do Estado.

A investigação parlamentar, judicial ou administrativa de qualquer fato determinado, por mais grave que ele possa ser, não prescinde do respeito incondicional e necessário, por parte do órgão público dela incumbido, das normas, que, instituídas pelo ordenamento jurídico, visam a equacionar, no contexto do sistema constitucional, a situação de contínua tensão dialética que deriva do antagonismo histórico entre o poder do Estado (que jamais deverá revestir-se de caráter ilimitado) e os direitos da pessoa (que não poderão impor-se de forma absoluta).

É, portanto, na Constituição e nas leis – e não na busca pragmática de resultados, independentemente da adequação dos meios à disciplina imposta pela ordem jurídica – que se deverá promover a solução do justo equilíbrio entre as relações de tensão que emergem do estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade e o valor da liberdade.

A controvérsia mandamental delineada na presente causa reclama solução, que, associada às diretrizes fixadas pelo modelo constitucional, encontra fundamento no Estatuto da Advocacia, cujas prescrições conferem ao Advogado determinados direitos e prerrogativas profissionais plenamente compatíveis com o integral desempenho, pela CPI, dos poderes de investigação de que se acha investida.

O que simplesmente se revela intolerável e não tem sentido, por divorciar-se dos padrões ordinários de submissão à rule of law, é a sugestão – paradoxal, contraditória e inaceitável – de que o respeito pela autoridade da Constituição e das leis possa traduzir fator ou elemento de frustração da eficácia da investigação estatal.

Extremamente oportunas, sob tal aspecto, as observações feitas pelo ilustre Advogado paulista e ex-Secretário da Justiça do Estado de São Paulo, Dr. MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA ( “As CPIs e a Advocacia” , in “O Estado de S. Paulo”, edição de 05/12/99, p. A22):

“Nem se diga, no lastimável argumento repugnante à inteligência e comprometedor do bom senso, que a presença ativa dos advogados nas sessões das CPIs frustraria os seus propósitos investigatórios. Fosse assim, tampouco chegariam a termo as averiguações policiais; ou os inquéritos civis conduzidos pelo Ministério Público; ou, ainda, as inquirições probatórias administradas pelo Judiciário. Com plena razão, magistrados, promotores e delegados jamais alegaram a Advocacia como obstáculo, bem ao contrário, nela enxergando meio útil à descoberta da verdade e à administração da Justiça.” (grifei)

Concluindo: a decisão concessiva da medida liminar limitou-se a garantir, ao Advogado impetrante, o exercício das prerrogativas jurídicas asseguradas pelo Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), notadamente aquelas que outorgam, a esse profissional, determinados direitos, tais como – além daqueles referidos a fls. 52/53 – o de “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer (…) autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento” (art. 7º, XI), ou o de “falar, sentado ou em pé, em (…) órgão (…)do Poder Legislativo” (art. 7º, XII), ou o de comunicar-se, pessoal e diretamente, com o seu cliente (sem, no entanto, poder substitui-lo, como é óbvio, no depoimento, que constitui ato personalíssimo), para adverti-lo de que lhe assiste o direito de permanecer em silêncio, fundado no privilégio jurídico contra a auto-incriminação, ou o de opor-se a qualquer ato arbitrário ou abusivo cometido, contra o seu cliente, por membros da CPI, inclusive naquelas hipóteses em que, no curso do depoimento, venha a ser exibida prova de origem ilícita (como aquela resultante de gravação de comunicações telefônicas interceptadas sem ordem judicial e fora dos casos previstos no art. 5º, XII, da Constituição Federal).

Cabe advertir, neste ponto, que a Constituição da República não tolera provas ilícitas e nem lhes empresta qualquer eficácia jurídica, pois, sendo obtidas ou produzidas com desrespeito ao ordenamento positivo, revelam-se imprestáveis, írritas e destituídas de qualquer validade formal e/ou material, não produzindo, por isso mesmo, quaisquer conseqüências no plano do Direito.

Se, por absurdo, qualquer membro da CPI valer-se, eventualmente, de prova ilícita contra aquele que constituiu o ora impetrante como seu Advogado, a este assistirá o direito de impugnar tal elemento probatório, em ordem a impedir que um órgão do Estado pratique ato eivado de ilegitimidade constitucional e destituído de qualquer validade jurídica.

Atos dessa natureza, além de inaceitáveis, culminariam por introduzir, no âmbito da investigação parlamentar, um preocupante dado revelador de inconcebível desprezo, por parte do Poder Público, de uma garantia fundamental consagrada no texto da Constituição da República.

A presença do Advogado, nesse contexto, reveste-se de alta significação, pois, no desempenho de seu ministério privado, incumbe-lhe promover a intransigente defesa da ordem jurídica sobre a qual se estrutura o Estado democrático de direito.

A medida liminar em causa – além de não impedir o pleno exercício, pela CPI/Narcotráfico, de todas as funções investigatórias que lhe são inerentes, pois nenhum obstáculo lhe foi imposto pelo ato judicial (exceto se se considerar que o efetivo respeito à Constituição e às leis traduziria, surpreendentemente, inaceitável obstáculo ao poder de investigação parlamentar !!!) – também não faz instaurar, por inadmissível, a prática do contraditório, eis que, como precedentemente já enfatizado, a decisão em referência restringiu-se, no plano de sua eficácia, a preservar a integridade jurídica de direitos que o ordenamento normativo do Estado assegura aos Advogados em geral, qualquer que seja a natureza do procedimento estatal no qual devam atuar.

Sendo assim, tendo presentes as razões expostas – e considerando, sobretudo, que a eficácia investigatória das atividades desenvolvidas pela CPI/Narcotráfico não resultará comprometida pela mera subordinação desse órgão legislativo à autoridade suprema e à força normativa da Constituição e das leis da República -, indefiro o pedido de reconsideração e, em conseqüência, mantenho a decisão que concedeu a medida liminar.

Comunique-se, com urgência.

Publique-se.

Brasília, 14 de dezembro de 1999.

Ministro CELSO DE MELLO

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