Poder exclusivo

Busato propõe convocação de Assembléia Constituinte exclusiva

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8 de agosto de 2005, 20h32

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, defendeu, nesta segunda-feira (8/8), em reunião do Conselho Federal da entidade, a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, a ser eleita nas próximas eleições gerais.

A Assembléia funcionaria de forma paralela ao Congresso Nacional, sem vínculos com ele, sendo dissolvida tão logo conclua seus trabalhos. “As experiências anteriores de Congresso-Constituinte têm se mostrado nefastas ao país, pois não fundam uma nova ordem: apenas remendam a anterior, frustrando o sentimento de mudança e renovação”, defendeu Busato.

Na reunião, o presidente nacional da OAB lembrou que a Carta Magna decorrente do Congresso-Constituinte de 1987-1988 vem sendo, desde sua promulgação, severamente emendada, até chegar ao estado atual. Só hoje existem mais de 700 propostas de emenda tramitando no Congresso.

O presidente da OAB rebateu a tese dos que defendem que a convocação de uma miniconstituinte seria mais adequada ou menos traumática para a nação, tendo como missão apenas reescrever alguns capítulos da Constituição atual. “Pessoalmente, penso que se trataria de mais uma tentativa de remendo num tecido já esgarçado”.

Por essa razão, Busato defendeu que o tema seja levado à apreciação da sociedade civil, para que seja debatido e avaliado sob todos os seus aspectos. “De nossa parte, penso que o aprofundamento deste debate, que ora proponho, configura uma contribuição construtiva da sociedade civil brasileira para restabelecer a esperança e o sonho aviltados pela insensatez e a ganância de alguns”.

Leia a manifestação do presidente nacional da OAB

Senhoras e Senhores Conselheiros

O tema que trago à consideração deste eminente Conselho Federal é dos mais graves e relevantes. Vive o Brasil um dos instantes mais dramáticos e impactantes de toda a sua história, assolado por numerosas e sucessivas denúncias, que envolvem alguns de seus mais destacados dirigentes políticos.

Desconheço outro momento, em nossa trajetória republicana, com características tão desabonadoras às instituições públicas.

Instituições vitais ao Estado democrático de Direito, como os partidos políticos, o Congresso Nacional e o Poder Executivo, desmoralizam-se perante a sociedade, na esteira de múltiplas e vexatórias denúncias de corrupção.

O que se assiste é mais um strip-tease moral de nossas elites dirigentes. Construiu-se, dentro do Estado brasileiro, um sistema predatório ao patrimônio público jamais suspeitado – e jamais antes perpetrado. Não pelo menos nas dimensões atuais.

É o que a mídia vem chamando, com toda a razão, de corrupção sistêmica. Não se trata de ataques episódicos ao Erário, mas de sangria permanente, sistemática, organizada, ao estilo mais funesto das máfias.

O que se imaginava seria um governo comprometido em banir a corrupção e a elevar as práticas públicas – razões fundamentais de seu triunfo eleitoral maciço – resultou exatamente no oposto: um governo que, lamentavelmente, assimilou, potencializou e sistematizou os piores legados de seus antecessores.

A população, perplexa, acompanha os desdobramentos das três Comissões Parlamentares de Inquérito e do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados como capítulos de uma telenovela sinistra, em que não há heróis – mas em contrapartida sobram vilões. Vilões que acusam, vilões que juram inocência, vilões que silenciam.

O sistema político deteriorou-se.

As denúncias de financiamento eleitoral clandestino enfraquecem os mandatos em curso. Em sua defesa, os políticos identificados em tal prática argumentam apenas que todos agem assim – argumento espantosamente endossado pelo próprio Presidente da República, como se a prática generalizada de um delito o revogasse ou lhe reduzisse a gravidade moral.

As denúncias de Mensalão põem em xeque as recentes reformas aprovadas pelo Congresso Nacional – entre as quais, a da Previdência e a tributária, ambas vitais ao equilíbrio econômico do país.

Já há quem pense em questioná-las no Judiciário, o que, não obstante a fundamentação jurídica, traria consideráveis complicações adicionais à conjuntura crítica que vivemos. E aí está mais um ingrediente a tensionar a crise.

Diante de tantas e tão delicadas questões, que se agravam a cada dia, a sociedade civil brasileira, busca – e ainda não vê – saídas. Saídas que permitam restabelecer a credibilidade nas instituições públicas, a confiança e auto-estima do país. Sem credibilidade, como supor a sustentação do Estado democrático de Direito?

A Ordem dos Advogados do Brasil tem sido, ao longo de seus 75 anos de existência, sentinela vigilante da sociedade civil brasileira. Nos momentos de crise mais aguda, somos chamados a nos manifestar a respeito dos rumos político-institucionais do país. A assumir responsabilidades.


Não será desta vez que deixaremos de fazê-lo. A Ordem jamais deixou de atender às convocações da cidadania.

Foi assim na Constituinte de 1934, estuário das transformações decorrentes da Revolução de 1930; na luta contra o Estado Novo, a partir de 1937; na redemocratização e convocação da Constituinte de 1946; na luta contra a ditadura militar pós-64 – sobretudo após 1968, com o seu recrudescimento, decorrente da edição do Ato Institucional n° 5.

Tivemos papel fundamental na reconstrução democrática, a partir do projeto de distensão iniciado no Governo Geisel. Raimundo Faoro, que então presidia este Conselho, ao lado de Prudente de Moraes Neto, que presidia a ABI, exerceu o delicado e decisivo papel de articulador político da sociedade civil, tendo como interlocutor do regime militar o então presidente do Senado, Petrônio Portella. Todos sob as bênçãos e o aval moral e espiritual da CNBB.

Os frutos daquele paciente trabalho de engenharia política seriam colhidos com a redemocratização, a partir de 1984, final do governo do general Figueiredo, em que também tivemos presença decisiva, sobretudo nas articulações que resultaram na anistia, na sucessão civil e, dentro dela, no fim da censura, no restabelecimento de eleições presidenciais diretas e na convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, concluída em 1988.

De lá para cá, lá se vão 17 anos, período de amplas e vertiginosas transformações em todo o planeta.

O colapso dos regimes socialistas e o processo de globalização impuseram àquela Carta Magna uma seqüência ininterrupta de emendas, que a desfiguraram.

Cada governo que se sucede, desde a campanha eleitoral, compromete-se não em cumprir, mas em reformar a Constituição. Já aí há uma intolerável distorção. Não são os programas de governo que se adaptam à ordem constitucional, mas esta, que deve pairar soberana, é que precisa se adaptar aos programas partidários.

Tudo isso vem gradualmente conduzindo a uma falência da ordem constitucional, esgarçando-a. Nossa Constituição, que chegou a ser batizada de “cidadã”, pretendeu absorver e expressar todas as conquistas contemporâneas relativas à cidadania.

O seu Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais – extenso e minucioso – é tido até hoje como dos mais completos do gênero, o que, não obstante, não aumentou a taxa de cidadania em nosso país.

Isso prova que não basta colocar na Constituição um direito para torná-lo efetivo. Seria simples se assim fosse. Mas infelizmente não é. É preciso que aquele direito expresse a consciência moral daquela sociedade – de suas elites dirigentes e de seu povo.

E não é – infelizmente – o caso brasileiro. Basta ver o que acontece entre nós com o salário mínimo.

A Constituição determina que atenda às necessidades básicas do trabalhador – e, no entanto, não atende. Jamais atendeu. O que dizer então da taxa de juros, limitada na Constituição a no máximo 12% ao ano, mas, na prática, bem mais elevada – aliás, a mais alta do mundo?

Foi por essa razão que afirmei algumas vezes, provocando incompreensão em alguns setores, que o Brasil é um país inconstitucional. Nem tudo o que está capitulado na Constituição – sobretudo no que se refere à cidadania – tem vigência real na vida do cidadão.

E é simples entender: cidadania pressupõe consciência de deveres e direitos, nível mínimo de alfabetização, politização e participação efetiva dos diversos segmentos da população na vida do país.

Sem esses pressupostos, o Direito tende a ser letra morta, abstração. Some-se a isso o comportamento nefasto de parte de nossas elites dirigentes, expresso de maneira chocante na presente crise, e temos um quadro institucional perigoso.

Foi em função desse quadro, hoje bem mais deteriorado pela crise do Mensalão, que, ano passado, a OAB celebrou o 15 de novembro com uma Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia.

Idealizada pelo eminente advogado e jurista Fábio Konder Comparato, a campanha propunha-se de certa forma a refundar a República, dando-lhe conteúdo efetivamente popular, a partir do envio ao Congresso Nacional de projeto de lei reguladora do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular legislativa.

Trata-se de fortalecer a cidadania – torná-la ativa e participante – e de resgatar na sua essência o compromisso republicano.

Sem povo, não há República e muito menos democracia. E é esta a contradição com que lidamos desde nossos primórdios como nação: somos um país em que, nas palavras de Alceu Amoroso Lima, o Estado precedeu a Nação. E o resultado é um Estado sem povo, uma democracia formal, mas de escasso ou mesmo nenhum conteúdo social.

Não nos iludamos: tudo isto está chegando ao limite!

No meu discurso de posse, já advertia para esta situação, que parecia atenuada pelas esperanças despertadas com a eleição de Lula. A idéia de que alguém do povo chegava ao Poder máximo da nação, sustentado por um partido político forte, com programa consistente, a bordo de um discurso de defesa da ética, da cidadania e dos valores republicanos, fazia crer que, enfim, daríamos conteúdo social à nossa democracia.


Tal, porém, tragicamente, não aconteceu.

Como disse no início, houve descaminhos, desvios de rota, que distanciaram o atual governo dos compromissos que o levaram ao triunfo eleitoral. Sem credibilidade e incompatibilizado com a maioria do Congresso Nacional, como poderá o governo processar as reformas necessárias, sobretudo a reforma política? E o Congresso, terá força moral?

O Congresso transformou-se em delegacia de polícia. Neste momento, seus trabalhos resumem-se a três CPIs e ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados.

Especula-se que a lista de cassações deverá reunir algumas dezenas de punidos – e mesmo assim não refletirá em toda a sua abrangência o universo dos que delinqüiram.

É uma situação gravíssima. O presidente da República vê seu principal colaborador nestes dois anos e meio de mandato – o ex-ministro José Dirceu – no banco dos réus, acusado de faltas gravíssimas. Suas faltas são as do governo que encarnava na plenitude.

Como o presidente da República não vem a público tratar com clareza dos fatos que estão sendo denunciados – e prefere portar-se como vítima em palanques populares -, passa a ser visto também como suspeito.

Não é casual que já haja dois pedidos de impeachment encaminhados à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados por cidadãos brasileiros – coincidentemente advogados.

Não desejamos e temos a esperança de que não será preciso chegar a tal extremo. Mas, se for o caso, repito, não deixaremos de exercer nosso papel. Não fugiremos ao cumprimento do dever. Não fugimos antes, não fugiremos agora.

Mais que nunca, precisamos salvar as instituições republicanas, reproclamar a República. O beco-sem-saída em que se encontram nos preocupa – e preocupa a sociedade. A economia tem sabido resistir aos embates da crise. Mas até quando? E a que preço? Há muitas perguntas a respeito do futuro – e até aqui poucas ou mesmo nenhuma resposta efetiva.

Em circunstâncias como esta, os olhos da sociedade voltam-se para nossa instituição, a OAB, que a tem representado com determinação ao longo das últimas sete décadas e meia.

A responsabilidade que temos, em face de nosso compromisso estatutário de defender a ordem constitucional do Estado democrático de Direito, nos obriga a ir além do simples diagnóstico da crise.

Precisamos ser propositivos, encontrar soluções – e encaminhá-las ao debate social.

Por essa razão, quero submeter à apreciação deste plenário do Conselho Federal uma tese que me parece a mais adequada para os desafios da hora presente.

Uma tese que não é nova e que já vem sendo examinada por muitos de nós e de outros formadores de opinião de nossa sociedade civil – e mesmo por atores da cena político-partidária.

Refiro-me à convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, a ser eleita nas próximas eleições gerais, para funcionar paralelamente ao Congresso Nacional, sem vínculos com ele, sendo dissolvida tão logo conclua seus trabalhos.

Os termos e tecnicalidades dessa convocação, na eventualidade de aceitação da tese, estão desde já em exame.

Friso, porém, que me parece fundamental que seja exclusiva, com poderes originários.

As experiências anteriores de Congresso-Constituinte têm se mostrado nefastas ao país, pois não fundam uma nova ordem: apenas remendam a anterior, frustrando o sentimento de mudança e renovação.

Vivemos essa realidade desde nossa origem como nação. Nossa primeira Assembléia Constituinte foi fechada pelo arbítrio do Imperador, que nos outorgou a Constituição de 1824.

Dela derivaram crises sucessivas, que resultaram na própria abdicação do outorgante, em levantes separatistas, desembocaram no Ato Adicional de 1834 (que a modificou substancialmente) – e em diversos outros processos de reforma.

A primeira Constituinte da República, a de 1891, transformou-se a seguir em Congresso ordinário, assim como a de 1934.

A de 1937 foi outorgada pelo ditador, e a de 1946 mais uma vez detentora do vício de origem, de Congresso-Constituinte.

A de 1967, além de elaborada sob ditadura, foi promulgada por um Congresso desfigurado por cassações. Em 1969, a Emenda n° 1, da Junta Militar, praticamente reescreveu a de 1967. E foi sob a égide daquela Carta da Junta Militar que foi convocado o Congresso-Constituinte de 1987-1988.

O resultado já o conhecemos. Desde sua promulgação, aquela Carta Magna vem sendo emendada, até chegar ao estado atual. Há cerca de 700 propostas de emenda no Congresso – número que em si dispensa comentários.

Há quem defenda a tese de que seria mais adequada ou menos traumática a convocação de uma miniconstituinte, com a missão de apenas reescrever alguns capítulos da atual Constituição, de modo a propiciar a reforma política, a reforma tributária e um novo pacto federativo.

Pessoalmente, penso que se trataria de mais uma tentativa de remendo num tecido já esgarçado. Mas este é um pensamento meu, pelos motivos que aqui já expus.

Considero importante que o tema seja debatido por todos nós e que possamos, em curto espaço de tempo, chegar a um consenso. O País tem pressa.

Sugiro que levemos esse tema à sociedade civil, para que seja debatido e avaliado sob todos os seus aspectos e conveniências.

Há alguns dias, sugeri ao Presidente da República que convoque o Conselho da República. É uma instituição do Estado criada para assessorar o Chefe da Nação em momentos de crise. Momentos como este.

Renovo aqui a sugestão, na expectativa de que S.Exa. deixe de exorcizar elites golpistas imaginárias e caia na real, dando à Nação as satisfações que aguarda e necessita, em face da presente crise.

Com isso, estará dando formidável contribuição para reduzi-la a níveis mais razoáveis e a encontrar soluções efetivas para vencê-la. Caso contrário, será superado pelos fatos.

De nossa parte, penso que o aprofundamento deste debate, que ora proponho, configura uma contribuição construtiva da sociedade civil brasileira para restabelecer a esperança e o sonho aviltados pela insensatez e a ganância de alguns. E este, de fato, é o dano maior dos que presentemente lesam o país: a supressão do sonho e da esperança.

Era o que tinha a dizer e submeter a consideração deste E. Conselho e a esta magnífica Instituição. Muito obrigado.

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