ADPF aceita

Conheça o voto de Joaquim Barbosa no caso anencefalia

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29 de abril de 2005, 13h00

“A ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) há de ser utilizada pelo STF como instrumento especial por meio do qual esta Corte chamará a si uma incumbência de natureza toda especial: a de conferir especial proteção a grupos minoritários, isto é, aqueles grupos sociais, políticos, econômicos que, por força de sua baixa representatividade ou da situação de quase impotência com que se apresentam no processo político-institucional regular, não dispõem de meios para fazer valer de forma eficaz os seus direitos”.

A conclusão foi do ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento que admitiu a ADPF sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos (ausência total ou parcial do cérebro).

Segundo o ministro, a controvérsia decorre do fato de que uma interrupção de gravidez em caso de anencefalia pode, em princípio, ser enquadrada como uma das hipóteses de crime previstas no Código Penal. Porém, considerou: “Estamos diante de uma legislação vetusta, concebida em priscas eras. Essa legislação permite a persecução criminal de pessoas que busquem ou levem a cabo procedimentos médicos tendentes a abreviar uma gravidez desprovida de qualquer possibilidade de êxito, constatação essa de fácil obtenção nos dias atuais — o que não era o caso na época da promulgação do Código Penal”.

Para Joaquim Barbosa, da mesma forma que o caso esbarra no Código Penal também passa pelo princípio da dignidade e autonomia privada da mulher.

Ele reconheceu a ADPF como instrumento de solução rápida e eficaz para as controvérsias.

Também votaram a favor da ADPF como instrumento processual para o caso os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Sob o argumento de que a questão deveria ser resolvida pelo Congresso Nacional, intérprete dos “valores culturais da sociedade”, o ministro Cezar Peluso votou contra a admissibilidade da ADPF. Votaram no mesmo sentido os ministros Eros Grau, Ellen Gracie e Carlos Velloso.

A ADPF foi ajuizada, em junho do ano passado, pela CNTS — Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O pedido de liminar foi concedido por Marco Aurélio. Ele concedeu às gestantes de fetos anencefálicos o direito de interromper a gravidez sem a necessidade de autorização judicial.

Os ministros derrubaram a hipótese levantada pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, de que a competência para discutir o assunto seria do Congresso, já que a interrupção de gestação de anencéfalos não está prevista em lei.

Leia a íntegra do voto do ministro Joaquim Barbosa

ADPF 54

Questão de Ordem

Senhor Presidente, trata-se de ADPF ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde — CNTS na qual se argúi a violação dos preceitos estabelecidos nos arts. 1º, IV; 5º, II; 6º, caput, e 196, todos da Constituição de 1988, pelo conjunto normativo representado pelos arts. 124; 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal Brasileiro, os quais disciplinam o crime de aborto.

Conforme ressaltado pelo ilustre ministro relator, a violação desses preceitos fundamentais decorre da “proibição de efetuar-se a antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de fetos anencefálicos, patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina”, de modo que requer a argüente seja conferida interpretação conforme a Constituição desses dispositivos legais, para que se declare inconstitucional a interpretação que impede a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo.

Senhor Presidente, por ocasião do julgamento do HC 84.025 — em que pela primeira vez a questão posta na presente ADPF chegou a esta Corte, mas que infelizmente não chegou a ser julgado –, fiz constar meu voto, pela prevalência do princípio da dignidade da mulher e de sua autonomia privada nessa hipótese.

Contudo, como se sabe, o tema não é nada simples, e, neste caso, a primeira questão que se apresenta é a referente ao cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental para os fins aqui propostos. Quanto à legitimidade da CNTS para propor a presente ADPF, entendo-a caracterizada, dado que se trata de confederação, de âmbito nacional, com legítimo interesse no provimento jurisdicional em razão das implicações criminais em que podem incorrer os profissionais de saúde que venham a realizar o procedimento de antecipação do parto em casos de bebês portadores de anencefalia. Tenho, portanto, por atendido o requisito do art. 2º, I, da Lei 9.882/1999. Uma segunda preliminar a ser enfrentada diz respeito ao próprio cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

O ilustre procurador-geral da República sustenta em seu parecer a impropriedade do uso da ADPF para efeito de obtenção de interpretação conforme a Constituição, alegando em síntese que tal utilização configuraria usurpação de função do Poder Legislativo.


Vejo a interpretação conforme como uma das várias técnicas ou mecanismos mediante os quais se procede ao exame da compatibilidade de normas com o texto constitucional.

Noutras palavras, a interpretação conforme — ou, para usar uma variante terminológica, a declaração de constitucionalidade sob reserva de interpretação — é uma entre as várias conformações que podem ser dadas ao pronunciamento do órgão incumbido do controle de constitucionalidade sobre um conflito entre normas de hierarquias distintas. Nesse sentido, entendo que a discussão suscitada pelo ilustre procurador-geral há de ser encetada mais adiante, caso se avance ao exame de mérito.

Neste momento, o que importa é examinar se estão presentes os pressupostos específicos da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

O art. 1º da Lei 9.882/1999 dispõe ser cabível a argüição de preceito fundamental perante esta Corte, para o fim de “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público”.

O primeiro pressuposto consiste, pois, em saber se os fatos ou situações descritas na inicial são qualificáveis como lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental da Constituição.

Não tenho dúvidas de que centenas de mulheres espalhadas pelo País vêm sendo ou correm risco potencial de ser molestadas, ameaçadas, constrangidas por atos do poder público, caso venham a tomar a decisão, de profundo conteúdo autonômico, de interromper a gestação, se constatado, por atos médicos apropriados, que o feto de que são gestantes tem a deformação congênita denominada anencefalia. O risco de lesão a um direito fundamental da mulher parece-me evidente, e quanto a isso não deixa dúvida alguma a manifestação da mais alta autoridade de persecução criminal da República, no parecer lançado neste processo.

Eu próprio tive a oportunidade de trazer ao Plenário do Supremo Tribunal Federal um caso — o HC 84.025 — que ilustrava o calvário a que foi submetida uma jovem e pobre gestante do estado do Rio de Janeiro que se dirigiu ao Poder Judiciário em busca de autorização para interromper a gravidez e se viu submetida a todo tipo de manipulação, chicanas e arbitrariedades, inclusive de representantes do poder público.

É evidente que todas essas controvérsias e tergiversações decorrem do fato de que uma eventual interrupção de gravidez em caso de anencefalia pode, em princípio, ser enquadrada como uma das hipóteses de crime previstas no Código Penal. Isso ficou claro, aliás, no voto da ministra relatora que examinou aquele writ no Superior Tribunal de Justiça.

Ora, sem querer adentrar o mérito, creio que não há como contornar os dados do problema. Estamos diante de uma legislação vetusta, concebida em priscas eras. Essa legislação permite a persecução criminal de pessoas que busquem ou levem a cabo procedimentos médicos tendentes a abreviar uma gravidez desprovida de qualquer possibilidade de êxito, constatação essa de fácil obtenção nos dias atuais – o que não era o caso na época da promulgação do Código Penal.

A existência, pois, de uma controvérsia judicial relevante acerca do tema parece-me prescindir de mais demonstrações. Com efeito, a bibliografia especializada no assunto dá notícia de que milhares de autorizações judiciais de interrupção de gravidez em casos de anencefalia já foram concedidas no país nos últimos anos. Mas, para cada autorização concedida, várias outras são negadas, criando-se assim uma incerteza, uma insegurança jurídica inadmissível num domínio em que o ordenamento jurídico tem de oferecer a mais firme e segura proteção ao cidadão. Esse fato, por si só, está a indicar a relevância da controvérsia constitucional a que a ADPF se prestaria a dar solução rápida e eficaz (1).

Manejada com prudência, a ADPF serviria a que o Supremo Tribunal Federal se antecipasse, debruçando-se sobre um tema constitucional da mais alta relevância, pondo cobro, assim, à situação de ameaça que paira sobre aquelas mulheres que não logram a tal autorização, ameaça cujo conteúdo e potencial de lesividade nenhum membro desta Corte há de ignorar.

Por outro lado, é evidente que um ato judicial de interpretação do Código Penal, nos casos em que são negadas essas autorizações e, portanto, ressurge com toda força a ameaça de persecução criminal, é ato apto, pelo menos em tese, a violar a dignidade e a capacidade de disposição autonômica da mulher.

Tenho, pois, como presente o requisito da ameaça de lesão, levada a efeito por ato do poder público. O segundo requisito da ação a ser observado é o chamado princípio da subsidiariedade, inscrito no parágrafo único do art. 4º da Lei 9.882/1999. Diz o dispositivo: “Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.


Como a argüição de descumprimento de preceito fundamental figura entre os procedimentos de cunho objetivo do nosso complexo sistema de jurisdição constitucional, creio que o teste da subsidiariedade há de ser aferido entre os demais processos objetivos desse sistema, especialmente num caso como este, em que as ameaças de lesão a preceito fundamental se repetem dia a dia e podem assumir contornos irreversíveis com o passar do tempo. Dentro do leque de opções oferecidas pelo texto constitucional, a ação direta de inconstitucionalidade seria a única ação suscetível em tese de criar obstáculo ao conhecimento da ADPF. Mas, como se sabe, por força de jurisprudência desta Corte, a ação direta não é cabível para se promover o confronto de norma pré-constitucional com a Constituição vigente.

Quanto aos outros meios processuais, não creio que se revistam da eficácia exigida para situações da espécie. Por outro lado, é preciso ter presente que esses outros meios processuais ordinários, em razão das aleas processuais a que não raro se submetem, e também por força de sua natureza subjetiva, podem muitas vezes viabilizar a intromissão de terceiros em questões que dizem respeito exclusivamente à mulher, impondo-lhe constrangimentos indevidos. A dramaticidade dos fatos e os inúmeros incidentes relatados no caso do HC 84.025 estão aí como demonstração irrefutável da imprestabilidade dos instrumentos processuais ordinários para coibir esse tipo de lesão.

Por fim, Senhor Presidente, de lege ferenda vislumbro um aspecto utilitário na adoção de uma postura menos rígida em matéria de admissibilidade da ADPF. É que essa ação constitucional não deve ser concebida como apenas mais um mecanismo de controle concentrado da constitucionalidade das leis, com mais ou menos os mesmos ritos, os mesmos atores e visando a atingir os mesmos objetivos. Essa ação constitucional deve ser vista, a meu sentir, como instrumento de alargamento da ação protetiva dos direitos fundamentais, que é a missão primordial da jurisdição constitucional.

Vale dizer, se as demais ações de natureza objetiva já cumprem razoavelmente seus objetivos de salvaguarda da Constituição, de preservação dos equilíbrios políticos, administrativos, funcionais, territoriais e até mesmo de uma certa racionalidade em matéria econômico-tributária, a ADPF há de ser utilizada pelo STF como instrumento especial por meio do qual esta Corte chamará a si uma incumbência de natureza toda especial: a de conferir especial proteção a grupos minoritários, isto é, aqueles grupos sociais, políticos, econômicos que, por força de sua baixa representatividade ou da situação de quase impotência com que se apresentam no processo político-institucional regular, não dispõem de meios para fazer valer de forma eficaz os seus direitos.

A hipótese dos autos me parece uma ocasião magna para que o Supremo Tribunal Federal assuma essa nova postura. Conheço, portanto, da ação, Senhor Presidente.

Notas de rodapé:

1. Dados da Organização Mundial da Saúde-OMS revelam que o Brasil é o quarto colocado no ranking de nascimento de fetos com anencefalia. Para cada 10 mil crianças brasileiras nascidas vivas, há o registro de 8,6 fetos anencéfalos, o que coloca o País atrás apenas do México, Chile e Paraguai. Por ano, a média brasileira é de 615 mortes em decorrência dessa doença.

“A estatística mundial mostra que uma em cada 1 mil mulheres dá à luz um anencéfalo. No Brasil, esse número é maior ainda, maior do que o número de crianças que nascem com síndrome de Down. Desde 1989, duas a três mil autorizações da justiças foram concedidas para interrupção da gravidez. Sem contar ainda, as mulheres que fizeram o aborto sem a autorização e aquelas que foram proibidas de fazê-lo. De 60% a 70% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero.” (Débora Diniz, em entrevista à UnB)

Em abril de 2001, foi publicado artigo na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, em que foram “analisados e estudados 263 pedidos de alvarás judiciais para a interrupção seletiva da gravidez. Os requerentes eram na maior parte, casados (60,9% – 112/184) e a idade das gestantes, em média, era de 26,7 anos. Para 57,4% (151/263) delas, o diagnóstico da anomalia fetal foi realizado em um serviço público. A anencefalia foi o diagnóstico mais comum (39,5% dos pedidos) como razão da incompatibilidade com a vida. Em 47 casos (17,9%) o juiz autorizou o aborto, apesar de um parecer contrário do Ministério Público. Em média, a espera pela sentença judicial foi de 6 dias. Pode-se concluir que as decisões judiciais, no Brasil, são rápidas quando há urgência. Parte do Judiciário é sensível aos problemas enfrentados pelos casais”. A pesquisa foi realizada nos anos de 1996 a 1999. (Aspectos Bioéticos e Jurídicos do Abortamento Seletivo no Brasil. Autores: Marcos Valentin Frigério, Ivan Salzo, Silvia Pimentel e Thomaz Rafael Gollop).

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