Coisa da natureza

Como votou Carlos Britto no caso de aborto de anencéfalo

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28 de abril de 2005, 18h47

“A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu´. O feto anencefálico não tem berço, nem brinquedo, ele não vai viver”. A afirmação é do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, ao citar trecho da canção “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque, no julgamento que admitiu a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos (ausência total ou parcial do cérebro).

O ministro já sinalizou que é favorável ao aborto. Ele seguiu o voto do relator, ministro Marco Aurélio, e admitiu que “a anencefalia é coisa da natureza”.

Votaram a favor da ADPF como instrumento processual para o caso os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Sob o argumento de que a questão deveria ser resolvida pelo Congresso Nacional, intérprete dos “valores culturais da sociedade”, o ministro Cezar Peluso votou contra a admissibilidade da ADPF. Votaram no mesmo sentido os ministros Eros Grau, Ellen Gracie e Carlos Velloso.

A ADPF foi ajuizada, em junho do ano passado, pela CNTS — Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O pedido de liminar foi concedido por Marco Aurélio. Ele concedeu às gestantes de fetos anencefálicos o direito de interromper a gravidez sem a necessidade de autorização judicial.

Agora, os ministros derrubaram a hipótese levantada pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, de que a competência para discutir o assunto seria do Congresso, já que a interrupção de gestação de anencéfalos não está prevista em lei.

Leia a íntegra do voto do ministro Carlos Ayres Britto

ADPF 54

QUESTÃO DE ORDEM

(Voto Vista)

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO. Cuida-se de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, aparelhada com requerimento de medida liminar. Argüição ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) e que me chegou às mãos em 10.11.2004, por efeito do pedido de vista que fiz no transcurso da sessão plenária do dia 20 de outubro desse mesmo ano de 2004.

2. Objeto da Argüição em si é o emprego da interpretação conforme a Constituição “ao conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput e 128, I e II do Código Penal”, cuja dicção é esta:

“Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena — detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.”

“Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante. Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.”

“Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário I — se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

3. Pois bem, é esse bloco normativo-penal que se afigura à acionante como portador de mais de um entendimento quanto ao respectivo conteúdo e alcance, sendo que um deles é tido por manifestamente contrário “ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana” e aos “direitos fundamentais à liberdade e à saúde da gestante (CF, arts. 1º, IV, 5º, II, 6º, ‘caput’ e 196)”.

4. Esse destacado entendimento que a autora saca dos dispositivos transcritos e que ela pretende afastar por inconstitucional é aquele segundo o qual a interrupção voluntária da gravidez de feto anencéfalo é constitutiva de crime contra a vida. Crime contra a vida, aclare-se, não bafejado por nenhuma das excludentes de punibilidade a que se refere o último dos textos supra-copiados (art. 128, incisos I e II).

5. Ainda no plano da caracterização do objeto do pedido, a proponente requereu, “alternativamente e por eventualidade”, que a sua pretensão fosse recebida como uma ação direta de inconstitucionalidade que teria por fim “a interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal impugnados”. Isto sob o fundamento de que “A jurisprudência tradicional do STF, relativamente ao não cabimento de ADIn em face do direito pré-constitucional, não seria de se aplicar. É que a lógica que move essa linha de entendimento é a de que lei anterior incompatível com a Constituição terá sido por ela revogada, sendo descabida a ação direta de inconstitucionalidade, que se destina a retirá-la do sistema. Esse raciocínio, naturalmente, não se aplica ao pedido de interpretação conforme, em que a norma permanece em vigor, apenas com a exclusão de uma ou mais incidências” (trecho reproduzido do memorial que traz a assinatura do advogado-constitucionalista Luis Roberto Barroso, pp. 6 e 7).

6. Vias processuais à parte, o que tenciona a autora é provocar o pronunciamento formal deste Excelso Pretório quanto à precisa configuração jurídica do ato de interromper, por vontade própria, uma gravidez do tipo anencéfalo. Isto é, gravidez de feto que se ressente da falta parcial ou total do encéfalo (cf. “Dicionário Eletrônico Houaiss”). Mais tecnicamente, feto desprovido dos “hemisférios cerebrais”, que são “a parte vital do cérebro”, consoante definição que se lê no bojo da Resolução nº 1.752/04, do Conselho Federal de Medicina, publicada no Diário Oficial da União de 13 de setembro de 2004. E sem a parte vital do cérebro, o ser em gestação não tem como escapar de uma fatal “parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto” (tal como escrito no primeiro considerandum da resolução em foco).


7. Prossigo neste breve retrospecto para informar que o pedido de medida cautelar foi acolhido por uma longa e bem fundamentada decisão monocrática do ministro Marco Aurélio. Decisão, todavia, cassada por maioria de votos deste Excelso Tribunal, em acatamento a proposta do ministro Eros Roberto Grau (conforme sessão plenária do mencionado dia 20 do mês de outubro do ano passado).

8. A seu turno, a Procuradoria-Geral da República, presentada pelo prof. Cláudio Fonteles, houve por bem levantar a questão preliminar da inadequação da via processual eleita pela CNTS. Isto, não por considerar a ADPF uma via processual inapta para o manejo da “interpretação conforme a Constituição”. Mas por não ser o caso de aplicabilidade dessa técnica de controle de constitucionalidade, uma vez que os dispositivos penais questionados pela parte autora não rendem ensejo a mais de uma interpretação lógica. No próprio linguajar do culto e digno Procurador Geral, os textos normativos apresentados pela autora (…) não ensejam a interpretação conforme”. É dizer, os dispositivos do Código Penal versantes sobre as diversas modalidades do crime de aborto “Bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam”.

9. Referida preliminar foi suscitada em questão de ordem, o que me levou a pedir vista dos autos para melhor análise das teses jurídicas em confronto.

10. Este o exame retrospectivo do processo, com a síntese possível.

11. Antes, porém, do voto que me cabe proferir, permito-me dizer o que sempre tenho dito a respeito da natureza jurídica da ADPF. Ela ostenta uma multifuncionalidade legal que me parece de duvidosa constitucionalidade. Entretanto, como se encontra pendente de julgamento a ADIN nº 2.231-DF, manejada, especificamente, contra a lei instituidora dela própria, ADPF (lei 9.982/99), e tomando em linha de conta o fato de que há decisões plenárias a prestigiar os desígnios da mesma lei 9.882/92(1), que tenho feito? Tenho me rendido ao princípio constitucional da presunção de validade dos atos legislativos, de sorte a momentaneamente acatar o instituto da ADPF tal como positivamente gizado. Logo, a ADPF enquanto mecanismo processual apto a ensejar tanto a abertura do processo de controle concentrado de constitucionalidade quanto a instauração do processo de controle desconcentrado (comumente designado por “difuso” e em caráter “incidental”), ambos de índole jurisdicional. Alcançando, no mesmo tom, assim os atos do Poder Público editados anteriormente à Constituição como os de edição a ela posterior. Mais ainda, (2)quer os atos procedentes da União e dos Estados, quer os originários dos Municípios brasileiros. E com a força ambivalente, enfim, de reparar ou até mesmo prevenir lesão ao tipo de enunciado normativo-constitucional a que ela, ADPF, se destina salvaguardar.

17. Por esta forma, então, o que me incumbe agora é remarcar o fato de que o exame da presente ADPF passa pelo antecipado enfrentamento da questão de ordem que a douta Procuradoria-Geral da República suscitou. Que é a questão de saber se procede ou não procede a alegação preliminar de que a ADPF sub judice carece do pressuposto lógico da existência de um conjunto normativo-penal suscetível de “interpretação conforme”. Devido a que os arts. 124, 126 e 128 do Código Penal se caracterizam, justamente, pela sua univocidade de conteúdo e alcance. E essa univocidade traduz-se na criminalização e apenamento de toda prática abortiva que não as expressamente ressalvadas pelos incisos I e II do art. 128 do Código Penal (gravidez que venha a colocar a gestante em sério risco de vida, ou que seja resultante de estupro).

18. Minha resposta não se faz por esperar. O conjunto normativo que apõe na voluntária interrupção da gravidez a tarja da delitividade, sob duas específicas excludentes de apenação, exprime um querer legislado que se me afigura um ato do Poder Público: a) de base significativa plural; b) teoricamente apto – pelo menos enquanto não sobrevier o julgamento de mérito desta ADPF – a fundamentar decisões judiciais eventualmente contrárias à defesa dos valores constitucionais que a autora teve em mira preservar; regulador de matéria permanentemente aberta aos mais acirrados conflitos de opinião (conflitos tanto jurídicopenais e constitucionais quanto filosóficos e religiosos), por modo a atrair a incidência do inciso I do parágrafo único da Lei Federal 9.882/99, assim redigido: “Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I — quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive os anteriores à Constituição”.

19. Atendo-me ao que mais interessa – que é a polissemia dos dispositivos penais em causa -, pelo menos três acepções ou representações mentais ou conteúdos semânticos tenho como passíveis de extração dos signos lingüísticos em que se vaza o discurso legal. Três defensáveis significações ressaídas, torno a falar, dos próprios textos normativos em causa; ou seja, ressaídas tão só da estrutura de linguagem de cada qual dos enunciados interpretados, segundo os combinados métodos de compreensibilidade que são próprios da Hermenêutica do Direito: a) os métodos filológico, lógico, teleológico e histórico, todos eles a incidir sobre o dispositivo-objeto em si mesmo (isoladamente, portanto); b) o método sistemático, que já opera pela inserção do texto-alvo no conjunto da lei ou do segmento legal de que ele faça parte (panoramicamente, então).


20. Essas três compreensões de um mesmo grupo de dispositivos legais partem, no entanto, de um consenso quanto à definição prosaica do aborto como realidade do mundo do ser: expulsão provocada ou consentida do produto da concepção, com o propósito de obstar que ele venha a ter qualquer possibilidade de vida extra-uterina (conferir verbete constante da “Enciclopédia e Dicionário Koogan/Houaiss, p. 4, ano de 1994, Editora Guanabara Koogan, Rio de Janeiro). E dando por assentado esse prosaico entendimento do aborto enquanto empírico fazer ou agir é que dedico os próximos segmentos deste voto à exposição das três mencionadas interpretações jurídicas.

21. A primeira dessas interpretações é a de que a antecipação terapêutica do feto anencéfalo é crime. Basta o fato em si da intencional cessação da gravidez, com o fito de destroçar o ser que lhe serve de objeto, para que a regra legal da apenação passe a incidir. Noutros termos, suficiente para a produção dos específicos efeitos da lei de criminalização do aborto é a conduta provocada ou consentida com o intuito de impedir que um embrião venha a se tornar feto, ou que um feto venha a concluir todo o ciclo da humana formação. O que implica reconhecer que a lei penal proíbe a intencional contramarcha nos processos intra-uterinos que fazem do fruto da concepção um ser em paulatino avanço para um momento de vida já ocorrente do lado de fora do feminino ventre. Concepção que é a pedra de toque da questão, sob o fundamento de hospedar-se nela o próprio início de toda vida humana, embora em estado latente. Latência, enfim, que, numa ponderação de valores, passa a preponderar sobre qualquer outro interesse ou bem jurídico por acaso alegado pela gestante (sempre ressalvadas as duas mencionadas hipóteses de exclusão de punibilidade); que nem por se encontrar em estado de gravidez se torna proprietária do ser que lhe anima o ventre. Donde o recorrente apelo a dois caracterizados diplomas normativos: o Código Civil brasileiro, que para fins de sucessão hereditária põe a salvo os direitos do nascituro (art. 2º do CCb) e o Pacto de São José da Costa Rica, assim formalizado em uma de suas cláusulas: “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção” (art. 4º, nº 1, citado em candentes escritos de cunho anti-abortivo, da autoria do cardeal fluminense Eugênio Sales, publicado na edição de 4 de dezembro de 2004 do “JORNAL DO COMMERCIO”, caderno A, p. 15).

22. A segunda intelecção é mais discursivamente sutil: inexiste o crime de aborto naquelas específicas situações de voluntária interrupção de uma gravidez que tenha por objeto um “natimorto cerebral”. Um ser padecente de “inviabilidade vital” (expressões figurantes da mesma resolução nº 1.752/04, do Conselho Federal de Medicina, ali empregadas no plural para os casos de anencefalia fetal). Quero dizer: o crime deixa de existir se o deliberado desfazimento da gestação não é impeditivo da transformação de algo em alguém. Se o produto da concepção não se traduzir em um ser a meio caminho do humano, mas, isto sim, em um ser que de alguma forma parou a meio ciclo do humano. Incontornavelmente empacado ou “sem qualquer possibilidade de sobrevida” (ainda uma vez, locução tomada de empréstimo à mesmíssima resolução do CFM), por lhe faltar as características todas da espécie. Uma crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estádio de borboleta. O que já importa proclamar que se a gravidez “é destinada ao nada” — a figuração é do ministro Sepúlveda Pertence -, sua voluntária interrupção é penalmente atípica. Já não corresponde ao fatotipo legal, pois a conduta abortiva sobre a qual desaba a censura legal pressupõe o intuito de frustrar um destino em perspectiva ou uma vida humana in fieri. Donde a imperiosidade de um conclusivo raciocínio: se a criminalização do aborto se dá como política legislativa de proteção à vida de um ser humano em potencial, faltando essa potencialidade vital aquela vedação penal já não tem como permanecer. Equivale a dizer: o desfazimento da gravidez anencáfala só é aborto em linguagem simplesmente coloquial, assim usada como representação mental de um fato situado no mundo do ser. Não é aborto, contudo, em linguagem depuradamente jurídica, por não corresponder a um fato alojado no mundo do dever-ser em que o Direito consiste(3). O que faz o fiel da balança em que se pesam contrapostos valores pender para o lado da gestante, na acepção de que ela já não está obrigada a levar adiante uma gravidez tão-somente comprometida com o pior dos malogros, quando do culminante instante do parto.

23. Ajunte-se que essa particularizada compreensão das coisas tem a respaldá-la a própria associação que o art. 3º da lei federal 9.434/97 faz entre morte encefálica e cessação da vida humana. A primeira a servir de critério para a legitimação do transplante post-mortem de tecidos ou partes do corpo humano, como se conclui deste literal comando: “A retirada post mortem de tecidos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”. Associação conceitual, essa, que seguramente inspirou o egrégio Conselho Federal de Medicina a dispor que, “para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica” (segundo considerandum da sobredita resolução de nº 1.752/04). Isso para o mesmo fim de transplante de “órgãos e/ou tecidos do anencéfalo”, consoante a seguinte legenda: “Art. 1º. Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá realizar o transplante e/ ou tecidos do anencéfalo, após o seu nascimento”.


“Art. 2º. A vontade dos pais deve ser manifestada formalmente, no mínimo 15 dias antes da data provável do nascimento”.

24. Já a terceira das interpretações a que se prestam os arts. 124 e 126, assim como os incisos I e II do art. 128, todos do Código Penal, ela se exprime no juízo de que a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo é fato típico, sim, é aborto, sim, mas sem configurar prática penalmente punível. Pois se a razão fundamental desse tipo de despenalização reside na consideração final de que o abalo psíquico e a dor moral da gestante são bens jurídicos a tutelar para além da potencialidade vital do feto, essa mesma fundamental e definitiva razão pode se fazer presente na gestação anencéfala; aliás, pode se fazer presente com uma força ainda maior de convencimento, se considerados os aspectos de que o feto anencéfalo dificulta sobremodo a gravidez e nem sequer tem a possibilidade de viver extrauterinamente; senão para se debater nos estertores que são próprios daqueles que, já com morte cerebral comprovada, se vêem desligados dos aparelhos hospitalares que lhes davam uma aparência de vida. Donde o mais que justificado emprego do brocardo latino ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, a se traduzir na fórmula de que “onde existe a mesma razão decisiva prevalece a mesma regra de Direito”(4).

25. Noutro modo de dizer as coisas, o estupro é para a sociedade em geral e para o Direito em especial uma ação humana da maior violência contra a autonomia de vontade do ser feminino que o sofre. Uma aberração! Uma hediondez! O instante da mais aterradora experiência sexual para a mulher, projetando-se no tempo como uma carga traumática talvez nunca superável, principalmente se resultar em gravidez da vítima. Pois o fato é que seu eventual resultado em gravidez tende mesmo a acarretar para a gestante um permanente retorno mental à ignomínia do ato em que foi brutalizada. Uma condenação do tipo ad perpetuam rei memoriam (para a perpétua memória da coisa), no sentido de que a imposição do estado de gravidez em si e depois a própria convivência com um ser originário do mais indesejado conúbio podem significar para a vítima do estupro uma tão perturbadora quanto permanente situação de tortura. Daí que vedar à gestante a opção pelo aborto caracterize um modo cruel de ignorar sentimentos que, somatizados, têm a força de derruir qualquer feminino estado de saúde física, psíquica e moral (aqui embutida a perda ou a sensível diminuição da auto-estima). Sentimentos, então, que se põem na própria linha de partida do princípio da dignidade da pessoa humana. Que é um princípio de valiosidade universal para o Direito Penal dos povos civilizados, independentemente de sua matriz também de Direito Constitucional. E que ainda exibe uma vertente feminina que mais e mais se orienta pela máxima de que “o grau de civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade da Mulher”, conforme oracular sentença de Charles Fourier (“Jornal o Capital” — Ano XIV — nº 131, p. 2, Fevereiro de 2005, Aracaju (SE).

26. Pois bem, estados psico-físico-morais desse mesmo teor e magnitude costumam recobrir todo o processo da gravidez do tipo anencéfalo, desde a comprovação da anomalia. Anomalia que, se não está na conjunção carnal de que proveio o concepto, está no próprio fruto da concepção. Ele, ser ainda alocado no ventre “materno”, é que padece de uma teratologia tal que antecipa esta dilacerante certeza: a certeza de que dele nem sequer é possível dizer que tem hora marcada para morrer… porque já vai nascer cerebralmente morto! Com o que se despedaçam por antecipação os mais dourados sonhos, as mais alentadoras expectativas, os mais afetivos planos, as mais lúdicas fantasias que soem permear o encantado universo da mulher às vésperas de ser mãe.

27. É nesse panorama que se dá a analogia com a gestação resultante de estupro. Nesta, a forçosa lembrança da monstruosidade do intercurso sexual. Na anencefalia, a subjetiva estupefação pela “monstruosidade” em si de todo o processo de concepção, gravidez e parto de um ser que já se sabe prometido ao túmulo, antes mesmo de conhecer o berço(5). A natureza a rivalizar com o homem no que este exibe de pior. Como na comparação entre o recente maremoto (tsunami) do sudoeste asiático e a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki. Que são fatos distintos em suas causas e ontologia, é verdade, mas equiparáveis nos seus devastadores efeitos. O que tem forçado o gênero humano a refletir, de longa data, sobre a dicotomia básica natureza/cultura, como nestes escritos do literato e jusfilósofo sergipano TOBIAS BARRETO DE MENEZES (1839/1889): “Realmente eu digo que o característico da sociedade é lutar contra a luta natural pela existência, tratando sobretudo de corrigir seus maus efeitos. Ser natural não livra de ser ilógico, falso e inconveniente. As coisas que são naturalmente regulares, isto é, que estão de acordo com as leis da natureza, tornam-se pela mor parte outras tantas irregularidades sociais; e como o processo geral da cultura, inclusive o processo do direito, consiste na eliminação dessas últimas, dará o antagonismo entre a seleção artística da sociedade e as leis da seleção natural “Assim, e por exemplo, se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não seja motivo de estranheza (…) Há até espécies de formigas, como a Polyerga rubescens, que são escravocratas; porém é cultural que a escravidão não exista” (citação de Miguel Reale, p. 40, prefaciando a obra tobiática “ESTUDOS DE DIREITO I”, Editora RECORD, patrocínio do Governo de Sergipe e organização do historiador e ensaísta Luiz Antônio Barreto, sem os caracteres negritados).


28. Nessa mesma linha tobiática de pensar, é de se trazer a lume recente entrevista do sociólogo e psicanalista junguiano Roberto Gambini, que, ainda a propósito do tsunami há pouco referido, verbalizou com toda ênfase: “Percebemos, assustados, que a natureza cria e destrói os nossos paraísos. Ela não é ética, mas nós temos que ser! A natureza não escolhe entre criação e destruição. Nós podemos escolher. (…) Um sábio percebe que a árvore se enche de brotos, mas tem consciência que depois pode surgir uma nuvem de gafanhotos ou uma tempestade de neve… e pronto, acabou. A natureza é tão dadivosa quanto terrível, ela é regida por forças que desconhecemos” (“Revista Cláudia”, Editora Abril, fevereiro de 2005, pp. 78/81, negritos à parte).

29. Em suma, no que interessa aos fundamentos da analogia in mellius aqui exposta, a anencefalia é coisa da natureza. Embora como um desvio ou mais precisamente um desvario, não há como recusar à natureza esse episódico destrambelhar. Mas é cultural que se lhe atalhe aqueles efeitos mais virulentamente agressivos de valores jurídicos que tenham a compostura de proto-princípios, como é o caso da dignidade da pessoa humana. De cujos conteúdos fazem parte a autonomia de vontade e a saúde psico-físico-moral da gestante. Sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada pelo compositor Chico Buarque de Hollanda (“A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu”), pois o fruto de um parto anencéfalo não tem sequer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus.

30. Agora resta perguntar: essa descoincidência de significações normativas para um mesmo bloco de dispositivos penais já tem o peso do seu formal reconhecimento em decisões judiciais? Decisões singulares e colegiadas, inclusive? A resposta é afirmativa. Confira-se:

I — decisões pela inocorrência de aborto, por falta de objeto material, na hipótese de antecipação terapêutica de feto inviável (nãoincidência do art. 124 do CP: a) “Não importa tenha havido prática tipicamente abortiva, para a configuração do art. 124 do Código Penal, se o laudo pericial conclui que a gravidez não era apta a produzir uma vida. Consoante os ensinamentos dos mestres da medicina legal, a formação da mola carnosa ocorre quando há concepção frustrada, gerando embrião degenerado, inapto a produzir nova vida. E nesse caso não pode haver aborto” (RT 397/101); b) “Sem a prova plena e segura da gravidez e inclusive da viabilidade do feto não há falar em aborto” (RJTEJSP 145/281);

II — Decisão que tem a antecipação do parto de feto portador de anencefalia como conduta criminosa ou perfeitamente ajustada à definição legal do aborto. Conduta punível, por conseguinte: “HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA (…). INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO. 1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro (…) 3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindose interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto (…)” STJ HC 32.159, Rel. Min. Laurita Vaz”.

III — Decisão que vê a provocada ou consentida interrupção da gravidez de feto anencéfalo como delito ou fato típico, sim, porém


insuscetível de punibilidade: “A lei admite expressamente a realização do aborto terapêutico ou sentimental, por gravidez produto de estupro (RT 703/333), mesmo quando o feto é sadio e perfeito, para preservar os sentimentos da mãe! Estes, com muito mais razão, devem ser garantidos, porque a tanto ela tem direito líquido, certo e até natural, que independe de norma jurídica positiva, no caso de aborto eugênico ou necessário, em decorrência da má formação congênita do feto, em geral anencefalia, evitando-se, dessa forma, a amargura e o sofrimento físico e psicológico, por cerca de cinco meses, no mínimo, à mãe que já sabe que o filho não tem qualquer possibilidade de viver, e aos demais membros da família…” (TJSP, 1ª Ccrim — MS 309.340-3)

31. Pois muito bem. Foi justamente na base dessa empírica e relevante diversidade de entendimentos que a Associação-autora requereu a presente Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). E o fez com a pretensão de vê-la operacionalizada pelo uso da técnica de controle de constitucionalidade que toma o conhecido nome de interpretação conforme a Constituição. Técnica já de longa data aceita por este colendo Tribunal como de franca aplicabilidade em qualquer dos dois sistemas de fiscalização de constitucionalidade.

32. Com efeito, a interpretação em conformidade com a Constituição é um modo especial de sindicar a constitucionalidade dos atos do Poder Público. Especialidade, essa, que particularmente vejo como uma exclusiva “declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”, na qual “se explicita que um significado normativo é inconstitucional sem que a expressão literal sofra qualquer alteração” (ministro Gilmar Ferreira Mendes, m “Direitos Fundamentais e Controle de Constituicionalidade”, Editora Saraiva, p. 267, ano de 2004). Logo, trata-se de uma técnica de fiscalização de constitucionalidade que se tipifica por um mais reduzido teor de interferência no dispositivo-objeto, pois sua real serventia não está na possibilidade de recusar eficácia a tal dispositivo-alvo, nem mesmo em sede cautelar; ou seja, a interpretação conforme nem se destina a suspender nem a cassar a eficácia do texto-normativo sobre que se debruça. Ela serve tão-só para descartar a incidência de uma dada compreensão (ou mais de uma) que se possa extrair do dispositivo infraconstitucional tido por insurgente. Que significação? Aquela (ou aquelas) em demonstrada rota de colisão com a Magna Carta Federal.

33. Ora, com esse tônus operacional de menor extensão quanto aos seus efeitos, a interpretação conforme se revela um modus operandi eminentemente conciliador, na medida em que une o necessário ao desejável; quer dizer, ela atinge o seu objetivo de defender a pureza dos comandos constitucionais (fim necessário), sem, contudo, recusar ao ato sindicado a virtude de prosseguir eficaz (fim desejável). Do que resulta permanecer o Ordenamento Jurídico tal como se encontrava, pois colocado a salvo da perturbação de ter um dos seus espécimes privado de eficácia(6).

34. Acontece que esse modo conciliador de velar pela integridade da Constituição passa por um pressuposto de admissibilidade. E esse pressuposto consiste em que o particular significado do ato estatal insurgente, ou os particulares significados desse ato oficial discordante da Constituição, provenham de elementos encontradiços neles próprios. Equivale a dizer: quando se trata de aplicar a técnica da interpretação conforme, não há que se obter a compreensão de um dado texto normativo inferior pelo imediato cotejo entre ele e a Constituição Federal. Ainda não, porque se tal imediatidade comparativa ocorresse, a interpretação conforme deixaria de ser um mecanismo de controle de constitucionalidade para se transformar em mais um centrado método de hermenêutica do Direito em geral. Com o grave inconveniente de estimular o juiz-intérprete a “forçar” a adaptação da norma inferior à normatividade constitucional, na perpetração de um tipo de corrigenda ou inovação de conteúdo que implicaria vulneração ao princípio da Separação dos Poderes(7). Princípio de que deflui um insuperável limite exógeno ao Poder Judiciário, somente legitimado a atuar como “legislador negativo” ou contralegislador, em sede de controle de constitucionalidade, porém jamais na condição de legislador positivo (como tantas vezes tem proclamado este Supremo Tribunal de Justiça)(8).

35. A ilação que daqui se desata é evidente: toda compreensão de um dado texto normativo subconstitucional se faz à luz dele mesmo e por comparação apenas com o diploma normativo com que veio ao mundo das positividades jurídicas. Esse o primeiro e endógeno limite ao juiz-intérprete. Somente depois é que se pode pretender o manejo da “interpretação conforme”, caso o resultado daquela primeira operação interpretativa venha a se traduzir numa compreensibilidade pelo menos dúplice (uma a negar a outra). É como reversamente afirmar: o requisito de procedibilidade da interpretação conforme somente se considera atendido, em princípio, se o resultado daquela primeira operação hermenêutica não implicar unicidade de entendimento normativo.


36. Por argumentação metafórica, o fato em si da univocidade do espécime normativo inferior é o dobre de sinos do cabimento da interpretação conforme, tanto quanto a irreconciliável plurivocidade é a respectiva chave de ignição. Chave de ignição, no sentido de que a consistente demonstração de uma pelo menos dual e contraditória significação de texto normativo hierarquicamente inferior à Constituição é suficiente para deflagrar o mecanismo da interpretação conforme. Não assim, porém, para solver de pronto a questão de mérito, devido a que o exame da matéria de fundo somente é cabível numa segunda fase processual; qual seja, a etapa em que se dará o cotejo — agora cabe dizê-lo – entre cada qual das compreensões do texto normativo e a Constituição Federal. A etapa, como sabido, destinada não à privação temporária ou definitiva da eficácia do texto infraconstitucional por acaso tido como agressor da Constituição (tal privação eficacial somente se dá quando o dispositivo rebelde é de significação única), porém com esta precisa finalidade: recusar incidência àquele destacado entendimento normativo que se mostrar ofensivo da Magna Carta Federal. O que já corresponde a um exame de validade do diploma infraconstitucional, enfatize-se, e nunca ao originário processo intelectivo de desentranhamento e revelação do significado desse ou daquele dispositivo de hierarquia inferior. Visto que tal originário processo é puramente exegético, a incidir sobre um texto-objeto provisoriamente a salvo de questionamento quanto à sua presunção de validade.

37. Sem querer entediar os Senhores Ministros da Casa, tão mais versados no tema do que eu, permito-me pontuar uma curiosidade semântica. É que o momento processual em que já se consuma o referido exame de mérito parece autorizar a seguinte conclusão: a interpretação conforme é uma técnica de eliminação de uma interpretação desconforme… Quero dizer: o saque desse modo especial da interpretação conforme não é feito para conformar um dispositivo subconstitucional aos termos da Constituição Positiva. Absolutamente! Ele é feito para descartar aquela particularizada interpretação que, incidindo sobre um dado texto normativo de menor hierarquia impositiva, torna esse texto desconforme a Constituição. Logo, trata-se de uma técnica de controle de constitucionalidade que só pode começar ali onde a interpretação do texto normativo inferior termina. Primeiro, a interpretação do texto segundo os seus próprios elementos de compreensibilidade e por imersão no diploma com que nasceu para o Direito Positivo. Pronto! Depois é que se faz, não a reinterpretação desse texto para afeiçoá-lo à normatividade constitucional, mas tão-somente uma comparação entre o que já foi interpretado como um dos sentidos dele (texto normativo) e qualquer dos dispositivos da Constituição. Donde o nome interpretação conforme a Constituição significar, em rigor, um imediato cotejo entre duas pré-compreensões ou dois antecipados entendimentos jurídicos: o entendimento que já se tem de qualquer dos dispositivos constitucionais versus aquele específico entendimento a que também previamente se chegou de um dispositivo infraconstitucional.

38. Em remate, a interpretação conforme não se exprime num típico exercício de hermenêutica, pois o típico exercício de hermenêutica se dá é num precedente contexto de serena aceitação da validade do dispositivo sobre que recai. Ela se inscreve é entre os mecanismos de controle de constitucionalidade, como exigência do sumo princípio da supremacia material da Constituição. Por isso que, já no citado segundo momento processual de sua aplicabilidade, ela é manejada como instrumento de sindicabilidade jurídica do ato público de menor escalão hierárquico. Por conseguinte, mecanismo pelo qual se afere tanto a validade formal quanto material de um modelo jurídico-positivo posto em cotejo com a Magna Carta.

39. Tudo isso assentado, o juízo de subsunção que me cabe emitir por dever de ofício já se revela: primeiro, há mesmo uma pluralidade de entendimentos quanto ao conteúdo e alcance dos textos normativo-penais aqui referidos; segundo, essa plurivocidade se desata dos próprios dados de compreensão desses dispositivosobjeto; terceiro, o próprio dia-a-dia do Poder Judiciário brasileiro dá conta de tal polissemia em ordem a se concluir pela relevância dos fundamentos das discussões processualmente travadas. Conclusão: é de se ter por satisfeito o requisito de procedibilidade da presente ADPF.

40. Com estes fundamentos, eu acompanho o substancioso voto do ministro Marco Aurélio, relator do feito, e resolvo a questão de ordem como ele próprio resolveu: no sentido de admitir a adequação do meio processual de que se valeu a Associação Nacional dos Trabalhadores na Saúde — CNTS.


É como voto.

Notas de rodapé

1- ADPF 4, rel. min. Ellen Gracie; ADPF 33, rel. min. Gilmar Mendes.

2- Mutatis mutandis, foi o parâmetro em que me louvei para decidir na Rcl. 2.381-AgR, no que foi honrosamente seguido pelos Ministros Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa.

3- A anencefalia é definida pela mesma Enciclopédia e Dicionário Koogan/Houaiss ( p. 52) como um

fenômeno teratológico ou “monstruosidade caracterizada pela ausência de cérebro”.

4- Além do ineliminável resultado-morte, importa anotar que a gestação da espécie anencáfala costuma acarretar maior risco de vida para a gestante, como se conclui da simples e direta leitura desta opinião do referido médico José Aristodemo Pinotti: “As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado” (mesmo artigo e jornal, parte final do terceiro parágrafo).

5- “ANENCEFALIA — s.f. Monstruosidade caracterizada pela ausência de cérebro” (ENCICLOPÉDIA E DICIONÁRIO Koogan/Houaiss, Editora Guanabara Koogan, 1994, p. 52). É do conhecido cientista médico e deputado federal José Aristodemo Pinotti este depoimento sobre a questão do anencéfalo: “A manutenção da legislação atual, que precede em muitas décadas os avanços científicos que garantem o diagnóstico de certeza da anencefalia, obriga as mulheres a levarem adiante uma gestação que contém feto com morte cerebral e certeza de impossibilidade de sobrevida ao nascerem. Para essas mães, a alegria de pensar em berço e enxoval é substituída pela angústia de preparar vestes mortuárias e sepultamento.

6- Efeito colateral benéfico, esse, que tem levado alguns autores a vê-lo até como a própria justificativa da interpretação conforme (o que temos como exagero, permissa vênia), como é o caso do constitucionalista lusitano JORGE MIRANDA, in verbis: “Tema próximo do da interpretação constitucional, embora dele distinto (…).

7- É de J.J. Gomes Canotilho a advertência de que a interpretação conforme não corresponde, de modo algum, à máxima segundo a qual “uma norma não deve considerar-se inconstitucional enquanto puder ser interpretada conforme a Constituição”. (…) “daqui se conclui que a interpretação conforme só permite a escolha entre dois ou mais sentidos possíveis da lei mas nunca a revisão de seu conteúdo. A interpretação conforme à constituição tem, assim, os seus limites na ‘letra e na clara vontade do legislador’, devendo ‘respeitar a economia da lei’ e não podendo traduzir-se na ‘reconstrução’ de uma norma que não esteja devidamente explícita no texto” (em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, editora Almedina, 4ª edição, fls. 1265/1266, ano de 2000).

8- 8 É da lavra do ministro Sepúlveda Pertence a redação do acórdão proferido na ADIN 3.046, de cuja ementa faz parte este didático trecho: “(…) AO DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA LEI EM TESE, O S.T.F. — EM SUA FUNÇÃO DE CORTE CONSTITUCIONAL — ATUA COMO LEGISLADOR NEGATIVO, MAS NÃO TEM O PODER DE AGIR COMO LEGISLADOR POSITIVO, PARA CRIAR NORMA JURÍDICA DIVERSA DA INSTITUÍDA PELO PODER LEGISLATIVO”. POR ISSO, SE A ÚNICA INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL PARA COMPATIBILIZAR A NORMA COM A CONSTITUIÇÃO CONTRARIAR O SENTIDO INEQUÍVOCO QUE O PODER LEGISLATIVO LHE PRETENDEU DAR, NÃO SE PODE APLICAR O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO, QUE IMPLICARIA, EM VERDADE, CRIAÇÃO DE NORMA JURÍDICA, O QUE É PRIVATIVO DO LEGISLADOR POSITIVO

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