Perdas e ganhos

Reforma sindical prejudicará a negociação coletiva

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25 de abril de 2005, 16h12

Para o cidadão comum, o Direito do Trabalho é aquele pacote de direitos mínimos que a ordem jurídica assegura aos empregados. A imensa maioria dos assalariados conhece os pontos básicos deste sistema: salário, FGTS, aviso-prévio, férias, descanso semanal remunerado, registro em CTPS etc. Quando se fala em Reforma Trabalhista, o povo sabe que pretendem mudar as leis que lhes garantem estas condições fundamentais.

No entanto, há um segmento da ordem jurídica em que a República delega seus poderes aos atores do mundo do trabalho para que eles mesmos produzam as leis que vão regular suas relações na atividade da produção. Para tal finalidade, o sistema desenha um conjunto de pessoas jurídicas que tem o poder de representar os campos dos empregados e dos patrões e articula um conjunto de ritos para que estas duas partes possam produzir leis de caráter contratual.

A discussão que se trava hoje em torno da chamada Reforma Sindical, é concernente às propostas de modificação deste segmento da ordem jurídica e é algo extremamente ininteligível para o cidadão comum que, naturalmente, não concebe sequer a existência de leis que não sejam expedidas pelo Estado e desconhece totalmente os mecanismos que viabilizam este tipo de produção normativa.

Nos últimos tempos, a discussão a respeito do tema tem ficado centrada nas propostas de mudança substancial quanto à natureza destes entes representativos. A organização atual ocorre em torno de grupos profissionais pulverizados e as classes dominantes estão propondo que seja extinta toda esta malha de entidades que deve ser reconstruída em torno de grupos muito mais concentrados. Os múltiplos segmentos hoje denominados de categorias vão ser obrigados pelo Estado a reunirem-se em blocos, poucos e grandes que serão denominados de ramos. A discussão já vai acesa quanto a tal reestruturação.

Todos estes entes, contudo, organizados por categorias ou por ramo, tem por finalidade básica, como dito acima, a produção de leis contratuais que vão estabelecer condições de trabalho tão obrigatórias como aquelas expedidas pelo Estado. O processo de produção destas leis contratuais tem sido chamado de negociação coletiva e é o objeto do presente estudo, já que, no calor destas polêmicas, constitui um ângulo que não tem sido muito investigado.

No Brasil, a negociação coletiva sempre ficou relegada ao papel principal de ser o território de confronto em que se definia a massa de salários. Com efeito, ao estabelecer aquele pacote mínimo de direitos individuais já acima mencionado, o sistema estabeleceu um patamar de sustento na relação de emprego. A negociação coletiva cuidava de buscar suprir as lacunas e insuficiências deste pacote mas, apenas, como efeito colateral. Basicamente, ela operava no terreno do confronto em torno da distribuição da riqueza.

Com efeito, antes, durante e depois da ditadura militar, ainda que em graus diferentes de intensidade, o grande instrumento de transferência de renda dos empregados para os patrões, na maior parte do tempo, foi a política estatal de financiar o crescimento econômico através da inflação. O ponto nevrálgico da negociação coletiva consistia em negociar um ajuste para reposição total ou parcial da perda de valor real que a inflação produzia nos salários.

Como funciona isto que denominamos de negociação coletiva? Os sindicatos aprovam em assembléias dos seus representados qual é a pretensão que pretendem seja acolhida pelos empregadores e, depois, iniciam conversações com o patronato para tentar obter aquilo que os trabalhadores tem como objetivo.

Durante a ditadura militar este processo existia somente no papel. O Estado assumiu o monopólio de fixar a taxa de reposição da inflação (índices para o aumento coletivo de salários) e os trabalhadores não podiam promover greves para forçar o patronato a aceitar a reivindicação. Caso infringissem esta vedação, a Justiça do Trabalho avocava a decisão do conflito e determinava que se aplicasse o índice de reajuste coletivo anualmente fixado pelo governo federal, impondo a volta ao trabalho.

Este mecanismo denominado, à época, de Arrocho Salarial, foi eficaz para conter os conflitos coletivos enquanto a ditadura conseguiu manter a inflação sob controle. O recrudescimento deste problema tornou a situação insustentável produzindo um momento de ruptura com grande intensidade de tensão e violência, terminando por fazer estalar o mecanismo legal restritivo.

As classes dominantes, então, reestruturaram este sistema, criando dois reajustes automáticos a cada doze meses (Lei 6708/89) mas, tal mecanismo não deu conta contenção da escalada inflacionária e, conseqüentemente, permitiu uma espiral de conflitos coletivos que foram obrigando a recuos cada vez maiores, até o desabamento final do regime autoritário.


Dali para a frente, os governos democráticos buscaram solucionar esta tensão regulando a negociação coletiva com dois instrumentos: a manutenção de reajustes salariais automáticos que acompanhassem a cadência da inflação (indexadores) e a renovação sistemática dos contratos coletivos através de uma reformulação do papel do judiciário trabalhista.

Nessa linha foram tentados diversos mecanismos de indexação que não contiveram a instabilidade do confronto entre Capital e Trabalho, até o advento do chamado Plano Real que organizou uma saída para o impasse em favor do Capital. A contenção da inflação foi obtida financiando-se a manutenção do valor da moeda com o uso dos recursos financeiros do Estado (âncora cambial e aumento da dívida pública interna).

A negociação coletiva nesta nova realidade desembarcou em outro cenário. Além da redução da inflação a níveis infinitamente menores, foram suprimidas normas legais que asseguravam a reposição automática das perdas e a renovação automática dos contratos coletivos. O judiciário trabalhista foi novamente convocado a servir de instrumento de intervenção, reprimindo as greves e negando a reposição das perdas e a renovação dos contratos. O chamado poder normativo da justiça do trabalho que, inicialmente, supria a intervenção destas garantias suprimidas foi, na prática, revogado pelo próprio judiciário através da malsinada instrução normativa n. 4 do Tribunal Superior do Trabalho.

Emasculada a negociação coletiva como instrumento para manter as vantagens obtidas nos anos anteriores e para obter reposição de perdas, iniciou-se um novo e formidável processo de transferência de renda através da qual a participação do Capital na renda nacional subiu de 50% para 64%, no período de 1993 a 2003.

A negociação coletiva deixou de ser o território em que se definia a divisão de renda porque esta não se exibia em conflitos coletivos de trabalho mas, numa profunda reorganização das relações individuais de trabalho, mediante novas formas de deterioração dos postos de trabalho (precarização, terceirização, informalização, cooperfraudes, fornecimento de mão de obra, etc.) e de eliminação de postos de trabalho (polivalência, cambam, kaizen, automação, etc..).

Em resumo, a transferência de renda do Trabalho para o Capital deixou de ser um fenômeno visível que se manifestava na arena da negociação coletiva, ou seja, nos embates dos conflitos coletivos de trabalho. A batalha essencial transferiu-se de modo sutil e discreto para outro território. Não é possível, portanto, pensar a reformulação da negociação coletiva proposta nos anteprojetos de Reforma Sindical, sem levar em consideração esta nova realidade.

A verdadeira operação de transferência de renda deu-se na batalha travada no campo do desmonte dos direitos individuais acima citado, ocorrido nos últimos vinte anos, sendo que reputados economistas estimam que o preço da derrota dos assalariados foi uma transferência de renda no importe de cerca de 1,3 trilhão de reais em favor das classes dominantes.

Esta batalha parece ter sido travada nas sombras, não foi visível em greves, passou ao largo do campo da negociação coletiva. Os projetos colocados em discussão pelo governo federal, contudo, não colocam em questão os mecanismos que produziram este desastre, não propõem sequer a restauração dos indexadores e do direito à manutenção das cláusulas coletivas.

O perigo mora ao lado, ou seja, é no setor vizinho que o terreno vai sendo devastado mas, no entanto, parece que todos se fazem de cegos a esta discrepância. A grande vitória das classes dominantes nesta nova batalha já está consumada: conseguiu colocar no centro do debate justamente aquilo que não é a grande ameaça aos seus interesses.

O desenrolar dos acontecimentos, por outro lado, demonstra que o governo que as serve, providenciou para que não surja qualquer perigo nesta arena em ebulição. Com efeito, o anteprojeto elaborado como pólo central da discussão trata o conflito coletivo de trabalho como sendo um mero problema a ser resolvido através da engenharia jurídica. Com o sinal trocado, é um erro similar ao cometido pela ditadura militar: a regulação jurídica desta arena, seja autoritária, seja democrática, não tem a menor importância concreta porque, no fim de contas, o que define o resultado deste atrito é a correlação de forças entre os oponentes no conflito.

Isto não ocorre porque haja um decréscimo de combatividade dos dirigentes sindicais. A verdade é que não há necessidade de extensa fundamentação para defender a tese de que a correlação de forças nestes conflitos, em princípio, favorece ao patronato, em face da natureza da relação de poder entre as partes.

Não haveria, também, razão para gastar muito papel para explicar que a greve, depois de tantos anos como principal instrumento de luta dos trabalhadores para tentar mudar o seu destino, nos dias de hoje, no setor privado, limita-se quase que exclusivamente às paralisações decorrentes de mora salarial. Finalmente, é um tanto claro que a reestruturação do sistema de relações de produção construída pela economia da acumulação flexível, aliada ao incremento do desemprego estrutural e à automação tornaram a greve um instrumento muito menos eficaz para compelir os empregadores a atender a reivindicações.


Em função destes pressupostos, o anteprojeto gerado pelas classes dominantes prevê sofisticados mecanismos relativos a direito de informação, dever de boa fé, proteção contra atos anti-sindicais etc. Tudo tendo como pressuposto de que é na mesa de negociação que são resolvidos os conflitos coletivos de trabalho.

Este um trágico engano. As negociações chegam a bom porto em favor dos trabalhadores quando eles dispõem de capacidade de conflito, ou seja, quando os seus operadores estão respaldados pelo fato de que a entidade sindical que representam está capacitada politicamente a inviabilizar ou, ao menos, desestabilizar a produção. Esta ameaça subjacente, pairando sobre a mesa de negociação é que estabelece a diferença entre o sucesso e o insucesso dos entendimentos.

Assim, a construção de um anteprojeto de reforma sindical que se dedicasse a estruturar um modelo de relações coletivas minimamente equilibradas, deveria ter como objetivo, fortalecer esta capacidade de conflito. A ausência desta questão nos debates revela que o modelo que se pretende construir procura estruturar um mecanismo de engenharia jurídica para administrar os conflitos.

Acrescentar aos negociadores, o direito à informação sobre a realidade econômica da empresa e obrigar o patronato a agir de boa fé, não vai agregar um fator decisivo que possa viabilizar vitórias aos assalariados. No fim de contas, tudo que ocorre nestas mesas, é absolutamente inócuo e irrelevante se os participantes não estiverem conscientes de que há uma ameaça do conflito concreto vicejando no chão de fábrica.

Resta identificado, portanto, que o critério para definir o que interessa aos trabalhadores no modelo de negociação coletiva que está sendo desenhado, reside em verificar em cada item da proposta, se ela serve, ou não, a acrescentar capacidade de conflito. Nesta linha de raciocínio, podemos bem ver que a única proposta útil vinda com o anteprojeto discutido no Fórum Nacional do Trabalho é aquela que ali não foi aprovada e está sendo combatida veementemente pelo patronato: a organização por local de trabalho.

Despindo o anteprojeto de todas as suas vestes costuradas em artigos, parágrafos e alíneas, este é o único ponto com o qual se pode fazer avançar as lutas dos trabalhadores e se o mesmo não vier a concretizar-se em lei, toda a reforma não terá qualquer significado. Vejamos, contudo, que algo semelhante, embora muito mais tímido, já está inscrito na Constituição Federal (artigo 11) há dezessete anos e o Congresso Nacional não permite que entre em funcionamento mediante o singelo expediente de não aprovar uma legislação regulamentadora.

Porque este mesmo parlamento haverá mudar de posição e aprovar algo do mesmo teor mas, bem mais radical e eficaz ? Com certeza, naquele território não houve nenhuma grande mudança substancial da correlação de forças em favor das classes dominantes. Tal defasagem de poder ficou bem clara no episódio recente da eleição para a Presidência da Câmara.

O único ponto de consenso que centrais sindicais e entidades patronais aceitam e defendem com unhas e dentes é a proposta de extinção geral dos sindicatos pequenos e médios, com a concentração intensa da representação sindical. Não por acaso, o Professor José Pastore vem propalando que tal “estruturação por ramo” irá elevar o rendimento dos grandes sindicatos de R$ 680 milhões por ano para R$ 3 bilhões anuais. Enquanto isto, no terreno das negociações coletivas presenteiam os obreiros com filigranas mas, nem se toca no assunto de restaurar a indexação para a reposição das perdas e o direito à renovação das cláusulas coletivas preexistentes. Talvez, porque estes dois pontos seriam realmente úteis para resistir à transferência de renda do Trabalho para o Capital.

Em resumo, no que tange à regulação da negociação coletiva, o anteprojeto apresentado pelos servidores das classes dominantes passa ao largo do real território onde ocorre a transferência de renda, não contribui para o incremento da capacidade de conflito, omite as únicas medidas legais cuja restauração poderiam alterar o quadro em favor dos trabalhadores e apresenta como única proposta positiva a radicalização de um dispositivo que, apesar de que num formato mais tímido, as classes dominantes já vem barrando há dezessete anos.

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