O beijo é livre

Shopping terá de reparar casal gay por discriminação

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22 de abril de 2005, 12h41

“Em nosso ordenamento são livres a orientação sexual e, por conseqüência, as manifestações de afeto entre as pessoas”. Com esse entendimento, a 3ª Vara Cível de São Paulo condenou o shopping Frei Caneca a reparar o casal homossexual que foi repreendido por um segurança ao se beijar com um “selinho” na entrada do prédio. O shopping pode recorrer da decisão.

Os argumentos de defesa do Frei Caneca, segundo os quais, o beijo foi um ato lascivo e portanto obsceno, previsto no artigo 233 do Código Penal, foram rechaçados pela Justiça. De acordo com a sentença, a prova apresentada não “representa qualquer conduta criminosa”.

Para o julgador, pelo contrário, a atitude do shopping foi abusiva e contrária aos valores do sistema jurídico-legal – o que configura ato ilícito civil. “O conseqüente dano moral é inegável”, dizem os autos. “Censurados na expressão de sentimento mútuo, [eles] sofreram ofensa à honra subjetiva”.

A 3ª Vara fixou, assim, o dano moral de 100 salários mínimos a ser pago ao casal João Paulo Xavier e Rodrigo Rocha.

Isso porque, de acordo com a decisão, “vivemos num Estado Democrático de Direito, laico, fundado na dignidade da pessoa humana, e com o objetivo de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O caso de Xavier e Rocha ganhou repercussão na imprensa e resultou num protesto intitulado “beijaço”, durante o qual centenas de casais gays se reuniram no Frei Caneca para se beijarem. O shopping também já havia sido punido com advertência pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.

Para a advogada Sylvia Mendonça do Amaral, a decisão representa um avanço na pavimentação do respeito aos homossexuais no país. Segundo ela, “resta o socorro ao Poder Judiciário” já que o projeto de lei admitindo a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo tramita “há dez anos na Câmara dos Deputados, sem ser aprovado por pressões, em especial, de bancadas evangélicas”.

Leia a sentença

Trata-se de ação reparatória de dano moral. Aduziram os autores, em suma, que são homossexuais e mantém relacionamento afetivo. No dia 6 de julho de 2003, encontraram-se no hall de entrada do estabelecimento-réu e cumprimentaram-se, com um abraço e um beijo efêmero, vulgarmente conhecido como “selinho”. Foram repreendidos pela segurança, exclusivamente em razão de sua orientação sexual. Comunicaram o fato à autoridade policial e à Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania.

O réu foi apenado com advertência, nos termos do art. 6º, inc. I, da Lei Estadual 10.948/01. Alegaram discriminação (Constituição da República, art. 1º, inc. III e 5º, inc. I) e postularam cem salários mínimos (com reversão de trinta por cento a duas entidades especificadas), mais obrigação de afixar (fazer) em local visível retratação, por pelo menos trinta dias.

Em resposta (fls. 126-143) se alegou que o beijo era lascivo. Quanto à matéria de direito, inconstitucionalidade da Lei Estadual 10.948/01, em face do disposto no art. 22, inc. XIII, da Constituição da República. Ainda, o ato de seus prepostos visou prevenir a ocorrência de ato obsceno (Código Penal, art. 233), portanto exercício regular de direito (Código Civil, art. 188, inc. I). Por fim, num fim de semana posterior houve manifesto homossexual nas dependências do shopping, divulgado na imprensa, e denominado “beijaço”.

Houve réplica (fls. 247-267). Saneado o feito (fl. 309), nenhuma prova foi colhida em audiência, por desistência das partes (fls. 335-336). Não foi provido agravo tencionando modificação do valor da causa (fls. 326-329).

Esse o relatório.

Fundamento e decido.

Não entra em dúvida que em nosso ordenamento são livres a orientação sexual e, por conseqüência, as manifestações de afeto entre as pessoas.

Vivemos num Estado Democrático de Direito, laico, fundado na dignidade da pessoa humana, e com o objetivo de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Constituição da República, arts. 1º, inc. III e 3º, inc. IV).

Por certo sabedor dessa realidade normativa, em sua defesa o Shopping não questionou o direito de expressão dos não heterossexuais em geral e dos autores em particular. Todavia, os elementos reunidos nos autos convergem racionalmente no sentido de que os autores foram injustamente admoestados na entrada do cinema pela segurança.

Para conhecimento do fato as partes assentiram em tomar como emprestada a prova oral coligida em processo administrativo instaurado perante a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, que culminou com a pena de advertência, nos termos do art. 6º, inc. I, da Lei Estadual nº 10.948/01 (fls. 214-218 e 288-290).

Posto que a alegação não infirma o direito dos autores, visto que advindo dos princípios gerais do Estado Brasileiro, não se vislumbra inconstitucionalidade da aludida lei. A competência privativa da União (Constituição da República, art. 22, inc. XIII) é para legislar sobre cidadania stricto sensu (basicamente capacidade eleitoral ativa e passiva) e não elimina, a priori, iniciativa dos Estados-membros que colime abolir quaisquer formas de discriminação em órgãos públicos ou simplesmente abertos ao público.

Estão integrados ao feito, de toda sorte, os depoimentos colhidos pela Comissão Processante Permanente, quando então foram assegurados o contraditório e a ampla defesa ao ora réu. Lá e também aqui a contestação foi baseada em comportamento ilícito dos autores: sendo lascivo o beijo, tipificaria ato obsceno (Código Penal, art. 233).

No entanto, a prova não revela qualquer conduta criminosa. A afirmação dos funcionários do réu, além de ser valorada com reserva pelo vínculo hierárquico, é absolutamente insuficiente para concluir pela existência de infração no âmbito penal. O fato de estarem os autores “se amassando”, em beijo prolongado, não deve ter mais a conotação de outrora, sobretudo pela evolução natural dos costumes verificada no século passado.

Em verdade, prevalece o testemunho prestado por advogado que freqüenta o local, sem relação com qualquer das partes, de que os autores se cumprimentaram com um “selinho”, um beijo efêmero, não atentatório à moralidade média. Além disso, nem é verossímil que o Shopping tenha adotado a mesma postura repressora contra casais que se beijassem mais demoradamente, como é próprio da juventude, antes de assistir a um filme.

Logo, é forçoso concluir que a atitude do réu foi abusiva, contravindo a valores do sistema jurídico-legal e por isso mesmo configurando ilícito civil. O conseqüente dano moral é inegável. Decorre do fato em si, prescindíveis maiores indagações. É compreensível a indignação padecida pelos autores. Censurados na expressão de sentimento mútuo, sofreram ofensa à honra subjetiva.

Porém, inviável o acolhimento do pedido em toda sua extensão. Tocante ao equivalente pecuniário – R$ 100.000,00 – os autores trouxeram um caso que não pode servir de paradigma (fls. 75-98). Esse mesmo quantum foi definido em situação diversa. A vítima tinha vida pública e a injúria foi veiculada em meio de comunicação. Nos demais também sobrelevou a repercussão do fato (fls. 99-101).

Convém anotar que a divulgação do episódio decorreu do protesto organizado dias depois na praça de alimentação, denominado “beijaço”. Aliás, essa manifestação coletiva deve influir negativamente na liqüidação, pois compreendida como uma forma peculiar e democrática de reparação in natura, ainda que sem a iniciativa dos autores ou do réu.

Obviamente a reunião ali promovida pouco tempo depois alentou o espírito dos autores. Subsiste como legítima, mesmo assim, a obrigação de reparar, sobretudo pelo aspecto punitivo que lhe vem sendo reconhecido, para desestimular condutas contrárias ao Direito.

Considerando as circunstâncias e a capacidade financeira dos envolvidos, afigura-se razoável, para cada qual dos autores, cinqüenta salários mínimos. Por fim, não tem cabida a obrigação de fazer exigida cumulativamente (afixar retratação escrita no estabelecimento), pois implicaria num bis in idem. E a destinação do valor (doação a entidades beneficentes ou defensoras de minorias) é da estrita conveniência dos autores.

Pelo exposto, julgo procedente o pedido e condeno o réu no pagamento de cinqüenta salários mínimos a cada um dos autores, vigentes em julho de 2003 e atualizados pela tabela de débitos judiciais, com juros moratórios de doze por cento ao ano (Código Civil, arts. 406 e 407 c.c. Código Tributário Nacional, art. 161, § 1º) contados desde então (Súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça), pondo fim ao processo com fundamento no art. 269, inc. I, do Código de Processo Civil.

Condeno o vencido no recolhimento das custas e despesas atualizadas e no pagamento de honorários advocatícios (Lei 8.906/94, art. 23), ora fixados em dez por cento sobre o total devido, não caracterizada sucumbência parcial pela inexistência de critérios legais explícitos para liqüidação. P.R.I.

Foro Central / 3ª Vara Cível

Processo: 000.04.008453-1

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